1 INTRODUÇÃO

 

 

Não é de hoje que a criança e o adolescente no Brasil são protegidos por leis especiais que levam em conta a sua condição de ser humano em desenvolvimento. Os menores de idade são protegidos nesse país desde 1693 (mil seiscentos e noventa e três), passando-se pelo Código Mello Mattos, datado de 12.10.1927, até chegarmos ao Estatuto da Criança e do Adolescente, o famoso ECA (lei n. 8069 de 13.07.1990).

            Mas, foi com o advento da CR/88 que a questão da proteção à criança e do adolescente teve um enfoque maior, pois foi essa que possibilitou o surgimento do ECA e, foi a partir desta que o legislador constituinte originário fixou uma proteção maior à criança e ao adolescente no Brasil, não apenas por tratar-se de seres humanos em desenvolvimento, mas também,. Em respeito à valorização da dignidade humana de todas as pessoas menores de 18 (dezoito) anos, de acordo com a tendência internacional de reconhecimento jurídico da proteção integral que acabou consubstanciado na convenção internacional dos direitos das crianças.

            O Estado Democrático de Direito é presidido, entre outros, pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Sendo assim, a fixação da imputabilidade penal aos dezoito anos representa o seu compromisso com a valorização da criança e do adolescente por reconhecer tratar-se de uma fase especial de desenvolvimento do ser humano.

            Este trabalho tem por escopo analisar a impossibilidade de redução da maioridade penal por tratar-se de cláusula pétrea, tendo em vista o que reza os arts. 5º, § 2º, 60, § 4º, 227 e 228 todos da CR/88. E também, a conduta do menor infrator, definida como ato infracional, não podendo ser enquadrada no conceito tripartido do delito, tido como um fato típico, antijurídico e culpável, por faltar ao menor de idade, exatamente esta última característica. Analisaremos, pois, também a pequena participação dos menores infratores nos crimes de maior potencial ofensivo, mostrando que a redução da maioridade penal não é fator relevante para a diminuição da violência, e o desvirtuamento do Direito Penal, tido não mais como um meio de proteção fragmentária e subsidiária dos bens jurídicos relevantes, mas como um produto capaz de resolver os problemas sociais relacionados à violência.

 

 

 

 

2 A HISTÓRIA DE PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE NO BRASIL

 

 

            A proteção à criança e ao adolescente no Brasil inicia-se no Brasil desde 1693, com a publicação da Carta Régia, que ordenou ao Governador da Capitania do Rio de Janeiro que ficassem todas as crianças submetidas ao abandono sob os cuidados da Câmara e do Conselho. Este foi o marco da proteção à criança e adolescente em nosso país, fazendo surgir um vasto elenco de normas voltadas fundamentalmente para a defesa e proteção do menor abandonado, na condição de vítima de agressão ou autor de um delito.

            Referência ao menor constava nas Ordenações Filipinas, que vigoraram no período colonial de 1603 a 1830 e que dispunham no artigo 134 do Livro V:

 

Quanto aos menores, serão punidos pelos delitos que fizerem. Se for maior de 17 e menor de 20 anos, fica ao arbítrio do juiz aplicar-lhe a pena e, se achar que merece pena total, dar-lhe-á, mesmo que seja a de morte. Se for menor de 17 anos, mesmo que o delito mereça a morte, em nenhum caso lhe será dada. ( LEAL, 2001, p.185)

 

            A partir de 1830, com o advento do Código Criminal do Império, a responsabilidade penal do menor teve grande destaque. Esta foi fixada aos 14 (quatorze) anos e adotou-se o critério do discernimento, sem limite inferior, tendo como modelo central o Código Penal da França de 1810.

            Destaca-se que o discernimento, a capacidade de compreender a natureza ilícita do ato e determinar de acordo com este entendimento, foi adotado como critério por diplomas legais de inúmeros países do mundo e pretendeu substituir o cronológico, argumentando-se que a evolução da personalidade não é contínua e que a mera avaliação pela idade não é cientifica nem justa. Conforme Leal:

          Dito critério foi mantido no Código Penal da República, de 1890, que prefixou a idade de 9 anos para a responsabilidade penal, sendo que dos 9 aos 14 anos os menores somente desta se eximiam quando ficava evidenciado que teriam agido sem discernimento. (LEAL, 2001, p. 186).

 

            A partir do século XX, mais precisamente no ano de 1921, o Governo Federal, Por meio da Lei Orçamentária nº. 4.242/21, autorizou a organização do serviço de proteção e assistência à infância abandonada e delinqüente, elevando para 14 anos a idade da responsabilidade penal e extinguindo o critério do discernimento. Regulou-se então, o processo especial aplicável aos menores, com o uso de medidas de natureza reeducativa e protetora.  De acordo com Leal:

 

Até então não se cogitava de codificações das leis menoristas, uma idéia que levou o primeiro juiz de menores da América Latina, José Cândido de Albuquerque Mello Mattos, a apresentar ao Senado projeto de sua autoria, o qual, aprovado e promulgado (Decreto nº. 17.943-A, de 12.10.1927), teve o mérito de consolidar as leis esparsas existentes na época e instituir um sistema de proteção e assistência aos menores, divididos esses em dois grupos: abandonados e delinqüentes. (LEAL, 2001, p. 186).

 

            O Código Mello Mattos, como foi denominado, visava o amparo dos menores e não a punição, consagrando o poder de perdão pelo juiz, quando da prática de infração leve e não reveladora de má índole, a sentença indeterminada e a liberdade vigiada. Os procedimentos em relação aos menores delinqüentes variavam com a faixa etária: a) menor de 14 anos: improcessável; internado no caso de menor pervertido ou doente; b) maior de 14 e menor de 16 anos: processo especial; passível de tratamento médico ou internamento em escola de reforma; c) maior de 16 e menor de 18 anos: internado, uma vez constatada a periculosidade, em estabelecimento especial.

            Após o Código Mello Matos vieram à tona, novas normas referentes à proteção e assistência aos menores abandonados e delinqüentes, pois entrou em vigor o Código Penal de 1940 (que fixou em 18 anos a idade limite da responsabilidade penal, com atenuante para a faixa de 18 a 21), tornando-se necessário editar o Decreto-lei nº. 6.026/43, de 24.11.1943 (“Lei de Emergência’’), a fim de disciplinar as medidas aplicáveis aos menores pela prática de infrações penais.

            Em 10.10.1979, surgia por meio da Lei nº. 6.697, um novo Código de Menores, com 123 artigos, dividido em dois livros (parte substantiva e parte adjetiva), que entrou em vigor em 08.12.1980. Esse novo Código de Menores surgiu devido as transformações ocorridas na sociedade brasileira ao longo de cinco décadas e pela própria evolução do Direito do Menor.

            Não concordando com o uso de alguns termos pejorativos como “abandonado’’ e “delinqüente’’, presentes no Código Mello Mattos, os legisladores do novo Código passaram a usar o termo “menor em situação irregular’’, empregada pela primeira vez pelo jurista venezuelano Carlos Angarita, e adotada pelo Instituto Interamericano da Criança, organismo de consulta da OEA. O artigo 2º, relacionava seis categorias de situação irregular:

 

I – privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsáveis para provê-las; II – vítima de maus-tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsáveis; III – em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV – privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V – com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária/ VI – autor de infração penal.  (LEAL, 2001, p. 186,187).

 

            A sexta categoria remetia ao cometimento de ato previsto na legislação penal como crime ou contravenção e, neste caso, aplicavam-se aos menores de idades medidas de tratamento, como, por exemplo, a advertência, a liberdade assistida, a colocação em casa de semi-liberdade e a internação. Observa-se que essas medidas são as mesmas aplicáveis pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Com a ressalva de que a medida de internação só seria aplicada se inviáveis as demais medidas e que, em alguns casos esta poderia ser cumprida, em seção de unidade destinada a maiores, exigindo-se para tanto o isolamento do menor em instalação apropriada, visando assegurar a sua incomunicabilidade como os outros presos.

            Com o advento da Constituição de 1988, iniciou-se um movimento, baseado em seu artigo 227, caput, e que teve uma ampla participação de representantes da sociedade cível, de entidades governamentais, e o apoio de um grupo de juristas.  Conforme Leal:

 

A partir daí, propôs-se substituir o Código de Menores por uma legislação que tivesse como destinatários todas as crianças (assim nomeadas até 12 anos incompletos) e adolescentes (entre 12 e 18 anos, também por completar), sem nenhuma discriminação, os quais passariam a ser sujeitos de direito, pessoas em condições peculiar de desenvolvimento e objetos de prioridade absoluta. (LEAL, 2001, p. 188). 

 

             A CR/88 diz:

 

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de neglig6encia, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

 

            Surgiu, então, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o famoso ECA (Lei nº. 8.069, de 13.07.1990, com vigência a partir do dia 15.10.1990), que adotou a doutrina da proteção integral, defendida pela ONU, com base em 4 (quatro) instrumentos de cunho universal: Convenção Internacional das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança; Regras de Beijing (Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores); Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil; e regras de Riad (Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Menores Privados de Liberdade).

O ECA, como é habitualmente chamado, ordenou os direitos fundamentais das crianças e adolescentes e estabeleceu a municipalização do atendimento, com a participação de toda a sociedade, seja na formulação das políticas das ações, criando os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente e os Conselhos Tutelares, abrangendo-lhes as garantias constitucionais de ampla defesa, entre elas o recurso à instância superior. Na área do ato infracional, enunciou em seu art. 106 que diz:

 

Art. 106. Nenhum adolescente será privado de liberdade senão em flagrante ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. 

 

Observa-se que o art. 106 do Estatuto da Criança e do Adolescente acima citado faz uma alusão ao art. 5º, LXI, da Constituição da República que diz:

 

Art.5º, inc. LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

3 A IDADE PENAL MÍNIMA COMO CLÁUSULA PÉTREA

 

 

            A presente explanação tem o escopo de demonstrar que o artigo 228 da Constituição da República Federativa do Brasil faz parte do rol das cláusulas pétreas, sendo portanto, insuscetível de modificação pelo Poder Reformador, pois erigida a tal condição por uma opção política do Poder Constituinte. Diz o art. 228:

 

Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de 18 (dezoito) anos, sujeitos as normas da legislação especial.

 

            Devemos fazer alguns esclarecimentos prévios sobre os dados da idade penal mínima. Isso porque a mídia no Brasil solta notícias desencontradas a respeito, em especial no que se refere a outros países. E a propósito, com repasse de informações equivocadas para a CCJR da Câmara dos Deputados em alguns casos.

            Ao contrário do que é noticiado pela mídia, o Brasil não se encontra em descompasso com o mundo, ao ter estabelecido a idade de responsabilidade penal em 18 (dezoito) anos. Visando a demonstrar isso, apresenta-se um quadro comparativo com diversos países. 

            No quadro a seguir, procura-se demonstrar a partir de que idade há apuração de infração penal cometida por adolescente, ou seja, apresenta-se a idade da responsabilidade penal juvenil. No Brasil, de acordo com o estabelecido no ECA, a idade da responsabilidade penal juvenil é de 12 (doze) anos.

 

País

Idade da Responsabilidade Penal Juvenil

Maioridade Penal (Imputabilidade)

Alemanha

14

18-21*

Argentina

16

18

Arkansas/EUA

 

21

Áustria

14

19

Bélgica

16

18

Bolívia

12

16

Búlgária

14

18

Califórnia/EUA

 

21

Chile

14

18

Colômbia

12

18

Costa Rica

12

18

Dinamarca

15

18-21*

Egito

 

15

Espanha

12

18-21*

França

13

18

Grécia

13

18

Holanda

12

18

Hungria

14

18

Índia

 

15

Inglaterra

7-15

18

Itália

14

18

Paraguai

 

15

Peru

12

18

Polônia

13

17

Portugal

 

16-21*

Romênia

16

18-21*

Suécia

15

18

Suíça

7-15

18-25*

Uruguai

14

18

Wyoming/EUA

 

19**21***

* Entre as idades apontadas, aplica-se legislação especial para o jovem adulto.

** Sexo masculino. *** Sexo feminino.  

 

            A partir da exposição do quadro acima, conclui-se que, ao contrário do que é divulgado pelos meios massivos de comunicação, que o Brasil é um dos países mais rigorosos em termos de responsabilidade penal do adolescente infrator. Enquanto em muitos países da Europa a responsabilidade penal juvenil começa aos 13, 14, 15 anos de idade, no Brasil (tido equivocadamente como um país sem rigor para com os menores de idade) a responsabilidade penal juvenil começa aos 12 (doze) anos.

            Os políticos brasileiros, mesmo estando a par desses dados, ainda pensam em reduzir a maioridade penal. E aí se pergunta: se a maioridade penal fosse reduzida para 16 (dezesseis) anos, a partir de que idade se daria a apuração de infração penal cometida por adolescente? Qual seria a idade da responsabilidade penal juvenil neste país?

            Reduzindo-se a maioridade penal neste país, a responsabilidade penal juvenil que hoje é de 12 (doze) anos, poderia cair para 11, 10 ou até 8 anos de idade.

            Posto isso, é preciso citar que o amadurecimento biológico de uma pessoa em desenvolvimento não coincide com seu amadurecimento psíquico, intelectual e moral.

            A consciência moral que se adquire na puberdade, para verificação da imputabilidade, terá de atender ao atraso de dois anos na maturidade psicológica e social, o que rechaça a hipótese da imputabilidade penal aos 16 (dezesseis) anos.

            É claro, que nem todo mundo concorda que o menor infrator encontra-se em uma fase de desenvolvimento físico e mental. E dizem que no mundo globalizado de hoje é inaceitável que um jovem menor de dezoito anos não possa vir a ser responsabilizado penalmente por seus atos, por não entender o caráter ilícito do fato. É o que afirma Fernando Capez:

 

Sabemos que a maioridade penal ocorre aos 18 (dezoito) anos, conforme determinação constitucional (CRFB, art. 228). Abaixo desse limite de idade, presume-se a incapacidade de entendimento e vontade do indivíduo (CP, art. 27). Pode até ser que o menor entenda perfeitamente o caráter criminoso do homicídio, roubo, estupro, tráfico de drogas, mas a lei presume, ante a menoridade, que ele não sabe o que faz, adotando claramente o sistema biológico nessa hipótese.

 

Na atualidade, porém, temo um histórico de atos bárbaros e repugnantes, praticados por indivíduos menores de 18 anos, que não são considerados penalmente imputáveis, na forma da legislação em vigor, pois se presume que não possuem capacidade plena de entendimento e vontade quanto aos delitos cometidos.

 

Mas como afirmar, nos dias de hoje, que um indivíduo de 16 (dezesseis) anos não possui plena capacidade de entendimento e volição?

 

Em verdade, existe uma realidade para a qual estamos “vendando” nossos olhos, ou seja, o Estado vem concedendo “carta branca” para que indivíduos de 16 (dezesseis), 17 (dezessete) anos, com plena capacidade de entendimento e volição, pratiquem atos atrozes, bárbaros, pela falta da devida punição, garantindo-se, assim, o direito de matar, estuprar, traficar, de ser bárbaro, atroz. (CAPEZ, 2007, p. 37).

 

                Não é de hoje (do mundo globalizado) que o menor infrator tem plena consciência de seus atos. Um jovem qualquer há 50 (cinqüenta) anos também o tinha. É obvio que um jovem “normal”’ (sem nenhum tipo de retardamento mental) de 17 (dezessete) anos sabe que matar, roubar ou furtar, são ações que prejudicam o ser humano, prejudicam a vida em sociedade, mas, a inimputabilidade não se restringe a capacidade de entendimento do ato ilícito cometido pelo menor infrator. Como veremos mais à frente, o constituinte ao dizer que são penalmente inimputáveis os menores de 18 (dezoito) anos não adotou um critério puramente biológico.

 

 

3.1 Princípios e Estado Democrático de Direito

 

 

            Os princípios servem para estabelecer um limite ao direito. São em última instância um exercício de cidadania.

            Há que se deixar bem claro que uma possível mudança da CR/88, sem que isso altere a sua essência, passa, necessariamente, pelo exame do papel fundamental que os princípios exercem no Estado Democrático de Direito.

            No Estado Democrático de Direito a lei – em especial a Constituição – tem uma função transformadora. “É da sua essência a instrumentalização da lei para que o vir-a-ser de uma sociedade justa, solidária, onde a promoção da dignidade humana seja a razão da própria existência do Estado, torne-se uma realidade.” (TERRA, 2001, p.33)

            Para que o Estado Democrático de Direito possa se realizar é preciso que tenhamos uma base sólida de princípios implícitos ou explícitos que oriente a interpretação do sistema e, que lhe dê uma unidade de sentido. Conforme Terra: 

 

Sem que no ponto de partida do ordenamento jurídico – no caso a Constituição – encontre-se uma base de princípios – explícitos ou implícitos – que oriente a interpretação do sistema, que lhe dê uma unidade de sentido, o Estado Democrático de Direito não se realiza, pois o seu ordenamento transformar-se-á numa junção de preceitos, desprovido de qualquer capacidade de coordenação do todo. (TERRA, 2001, p. 33).

 

            Com a evolução do Direito, os princípios deixaram de ser fonte subsidiária de última instância, passando a assumir um papel fundamental de interpretação e aplicação no ordenamento jurídico. Segundo Terra:

 

A valorização dos princípios no nível constitucional permite a afirmação da centralidade antropológica que o Estado deve ter, servindo para que a sociedade consiga evoluir do fetichismo econômico que lhe foi imposto.(TERRA, 2001, p. 34).

 

            No grau de complexidade social em que vivemos as constituições não podem ser visualizadas como mero meio regulatório das funções estatais – no que se refere a sua organização – e tão pouco como meio de defesa da sociedade contra o Estado, como apoiado pelo liberalismo predominante no início do constitucionalismo moderno.

            A histórica mudança social gerou alterações no plano jurídico. As normas jurídicas, em sua integralidade, deixaram de adotar um caráter que as impregnava, ou seja, não mais estabeleciam uma determinada conduta de acordo com um padrão previamente estabelecido.

            A evolução histórica exige uma nova postura. Conforme Terra:

 

A regulação que no presente é requisitada ao Direito assume um caráter finalístico, e um sentido prospectivo, pois, para enfrentar a imprevisibilidade das situações a serem reguladas – precisa-se de normas que determinem objetivos a serem alcançados . (TERRA apud FILHO, 2001, p. 35).

 

            Assim, os princípios passam a assumir um papel de grande importância no ordenamento jurídico. “No Direito Constitucional, tornam-se ferramentas essenciais para a interpretação e aplicação da normativa constitucional.” (TERRA, 2001, p. 35,36). Os princípios nos trazem a percepção de que a magna carta é, no seu todo, uma norma jurídica obrigatória, com o abandono da classificação em enunciados preceptivos e programáticos. Essa só servia para afastar a obrigatoriedade aos preceitos ditos programáticos; segundo a concepção civilista – privatística – dos princípios.

            A importância reconhecida aos princípios estabeleceu de forma definitiva as normas   constitucionais. “Em apertada síntese, como um dado certo e preliminar, pode-se afirmar que a importância reconhecida aos princípios estabeleceu, definitivamente, a força obrigatória de todas as normas constitucionais (princípios ou regras), independentemente de sua estrutura.” (TERRA, 2001, p.36)

            Uma ordem constitucional proclamadora do Estado Democrático de Direito, deve ter  obrigatoriamente, um sistema normativo aberto, composto de regras e princípios. (TERRA, 2001, p. 36).

            O sistema tem que ser aberto, tendo em vista “intenção” de perpetuação das normas constitucionais. A busca do Estado Democrático de Direito jamais será atingido se não houver a possibilidade de atualização dos conteúdos das normas constitucionais. Conforme Terra:

 

A normativa constitucional mantém-se porque aprende com a realidade, incorporando novos sentidos ao seu conteúdo – que exerce uma função interpretativo-diretiva, que se espalha por todo ordenamento jurídico. Vale dizer, ao buscar no ser-do-mundo novos significados de verdade e de realização de justiça – que não são estáticos, pois refletem a pauta de valores da sociedade que evolui – a Constituição ganha vida e força para continuar a ser a conformadora do Estado e da vida social. (TERRA, 2001, p. 36,37).

 

            Não se pode, também, distanciar-se da condição de um ordenamento de princípios e regras. Conforme Terra: 

 

Primeiro, porque um sistema constitucional fundado somente em princípios teria uma grande dimensão axiológica, porém seria de grande indeterminabilidade, em vista do caráter mais geral e abstrato dos princípios. E sendo um conjunto de conteúdos abstratos, não exerceria a sua função normativa, pois ficaria quase que exclusivamente na esfera axiológica (juízos de valor), perdendo a sua função normativa que outorgue segurança jurídica. Em segundo lugar, porque a função da regra é densificar princípios, tornando-os de mais fácil realização ou otimização. Além disso, um sistema somente de regras padeceria de falta de unidade interpretativa, pois lhe faltaria o fio condutor de ligação entre as diversas regras, sendo que tal elo de concatenação é feito pelos princípios. (TERRA, 2001, p. 37). 

 

            O ordenamento do texto constitucional feito pelos princípios, no que se refere aos objetivos a serem alcançados pelo Estado e sociedade no Estado Democrático de Direito dão a orientação de conformação do ordenamento jurídico regulado pela Constituição. “Por serem a base da Lei Maior, sem a qual não há um sistema organizado, funcionam como vetores de interpretação de toda ordem jurídica.” (TERRA, 2001, p. 38). A nível constitucional, é preciso estabelecermos qual o princípio que deve prevalecer no caso concreto de aplicação de uma norma; em relação à normatividade infraconstitucional, para verificarmos o seu ajuste ao sistema principiológico da Constituição. Caso não esteja em conformidade, será afastada a sua incidência, por presente vício insanável, o da inconstitucionalidade. 

            Os princípios também exercem um outro papel fundamental na Constituição, qual seja: dar a esta um padrão sistêmico, fazendo a integração, de suas diversas normas, interligando-as em conexões de sentido. Tendo uma estrutura normativa referenciada entre si é que será possível uma perfeita interpretação, que, necessariamente, tem de ser sistêmica.

            Assim, os princípios funcionam também, como verdadeiros identificadores do núcleo político essencial da Constituição.

            A CR/88 assinala em seus artigos 1º a 4º, os princípios fundamentais. Nesses artigos é possível verificar quais são os Princípios explícitos – isto é, expressos na Lei Magna –  tidos como fundamentais para a caracterização do núcleo essencial (inalterável, melhor dizendo) da Constituição.   

            Além dos princípios citados acima, outros surgem de diferentes pontos da Constituição ou decorrem daqueles. Assim podemos afirmar que a proteção jurídica à criança e ao adolescente é uma explicitação do princípio da dignidade humana. Conforme Terra: 

 

Sem a menor dúvida, pode-se afirmar que a proteção normativa outorgada à infância e juventude é uma explicitação do princípios da dignidade humana. Mas o Constituinte acrescentou um plus, tornou a consecução plena de tal princípio prioritária em relação à criança e ao adolescente. E nesse acréscimo – mesmo tendo ocorrido fora das disposições do Titulo I – erige a total preferência estabelecida como princípio fundamental, integrativo do núcleo essencial da Constituição. (TERRA, 2001, p. 39)

 

            Tem-se ainda, a possibilidade de princípios implícitos integrarem o núcleo essencial da Constituição, conforme se extrai do art. 5º, § 2º, da Lei Maior que diz:

 

Art. 5º, § 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

 

            “A ordem constitucional não se restringe à soma dos dispositivos descritos na Carta Magna.” (TERRA, 2001, p. 39). Tendo-se um sistema aberto, é perfeitamente possível a localização de princípios que não estão enunciados formalmente.

            É claro, que tais princípios não podem ser criados ao livre arbítrio de eventual intérprete, surgindo do nada. “A descoberta, necessariamente, passa por uma interpretação ciosa, que leve em conta todo o sistema constitucional, sendo de extrema importância, na revelação dos princípios implícitos, o trabalho da doutrina e da jurisprudência.”(TERRA, 2001, p.40).

             Sendo identificado o princípio implícito deve-se verificar se este possui natureza fundamental, sendo essa característica primordial para a preservação da Constituição. Presente tal caráter, sem a menor dúvida que integra o núcleo essencial da Lei Magna. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

4 A LIMITAÇÃO MATERIAL DE REFORMA DA CONSTITUIÇÃO 

 

 

            Os limites materiais à reforma da Constituição podem ser definidos como impedimentos – explícitos e implícitos – estabelecidos pelo constituinte originário dentro do próprio texto constitucional, tornando  impossível a modificação de determinadas matérias de seu conteúdo. 

            “A existência de conteúdos imutáveis numa Constituição tem recebido críticas, sob a alegação de que não é possível uma Constituição imodificável, pois acarretaria seu imobilismo, gerando um descompasso normativo com a sociedade” (TERRA, 2001, p. 41). O que poderia implicar num desprestígio do texto constitucional.. 

            Segundo Canotilho:

 

A resposta tem de tomar em consideração a evidência de que nenhuma Constituição pode conter a vida ou parar o vento com suas mãos. Nenhuma lei constitucional evita o ruir dos muros dos processos históricos e, conseqüentemente, as alterações constitucionais, se ela já perdeu a sua força normativa. Mas há também que assegurar a possibilidade de as constituições cumprirem a sua tarefa e esta não é compatível com a completa disponibilidade da Constituição pelos órgãos de revisão, designadamente quando o órgão de revisão é o órgão legislativo ordinário.  [...] assegurar a continuidade da Constituição num processo histórico em permanente fluxo implica, necessariamente, a proibição não só de uma revisão total [...], mas também de alterações constitucionais aniquiladoras de uma ordem constitucional histórico-concreta. Se isso acontecer é provável que se esteja perante uma nova afirmação do poder constituinte, mas não perante uma manifestação do poder de revisão. (TERRA apud CANOTILHO, 2001, p. 41).  

 

            É preciso entendermos a existência de limites materiais para a reforma de uma Constituição. Essa distinção passa pela possibilidade de compreendermos o que vem a ser o poder constituinte originário e poder constituinte derivado (poder reformador). 

            O poder constituinte originário é aquele que realizou toda a obra do texto constitucional, e por isso possui natureza política, se manifestando somente, nos momentos de proclamação de uma nova constituinte. Conforme Terra:

 

O poder Constituinte originário é de natureza política, existindo fora da Constituição e acima dessa – pois o texto constitucional é a obra que realiza. É um poder de natureza excepcional, manifestando-se somente em momentos de viragem histórica de um povo. (TERRA, 2001, p. 42).

 

            O poder reformador é um poder limitado em relação as alterações que pode vir a fazer no texto constitucional. Conforme Terra: 

 

         De outra banda, o poder reformador tem natureza eminentemente jurídica. Inserido na Constituição, tem nessa o contorno de sua atuação, bem como de sua limitação. É um poder de exercício normal, pois existe para funcionar nos períodos de normalidade constitucional. (TERRA, 2001, p. 42).

 

            Com base nessa concepção, o poder reformador deve respeitar as limitações fixadas pelo poder constituinte originário, que podem ser explícitas quando indicadas no próprio texto constitucional (cláusulas pétreas) e, também, implícitas, proveniente dos princípios que presidem a nossa Lei Magna e que existem pela necessidade de preservação da essência do núcleo político básico da Carta Maior.

            “A atividade reformatória de uma Constituição é um meio de sua vivificação, pois é pela reforma que se conserva renovando uma carta constitucional. A modificação de um texto constitucional jamais poderá servir como caminho para o seu fenecimento.” (TERRA, 2001, p. 43). Nesse entendimento afirma Bonavides:

 

O constituinte que transpuser os limites expressos e tácitos de seu poder de reforma estaria usurpando competência ou praticando ato de subversão e infidelidade aos mandamentos constitucionais, desferindo, em suma, verdadeiro golpe de Estado contra a ordem constitucional. (TERRA apud BONAVIDES, 2001, p. 43). 

 

            O que se pretende com a inclusão dos limites à reforma da Constituição é impossibilitar a subversão dessa por meio de reforma constitucional, mantendo-se as suas características e princípios fundamentais que lhe são estruturantes.

            As claúsulas pétreas referem-se as matérias enunciadas no texto constitucional que não podem ser modificadas pelo poder reformador. Logo, se conclui, que as cláusulas pétreas não podem ser alteradas, mas tão somente criadas ou destruídas pelo poder constituinte originário. E o chamamento do poder constituinte originário, somente vem a ocorrer de tempos em tempos, ou, a partir do momento em que há uma mudança de fato profunda em uma determinada sociedade.

            “Fazendo-se um levantamento das Constituições brasileiras, verifica-se que a atual Carta Magna é a que mais estabelece limites expressos para a reforma constitucional.” O rol de limites expressos encontra-se no artigo 60, § 4º, em que é vedada qualquer deliberação sobre a forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes, e os direitos e garantias individuais.

            As limitações expressas ao poder de reforma, visam a proteger os princípios básicos e essenciais da Constituição, bem como as “implicações e desdobramentos”.

            Em relação às vedações expressas, seria inviável, ao poder reformador, qualquer possibilidade de alteração. Segundo Streck:

 

O obstáculo do parágrafo 4º faz desses princípios – que lhe são estruturais, básicos e fundamentais rigidíssimos, supraconstitucionais, no sentido de que não podem ser solapados, reduzidos, diminuídos, mesmo pelos mais conspícuos poderes constituídos: o Congresso, como órgão de reforma constitucional. (TERRA apud STRECK, 2001, p. 44-45).  

 

            Assim como os limite materiais expressos, existem também, os limites implícitos ao poder de reforma, que apesar de não serem articulados na Constituição, extraem-se do próprio texto constitucional. De acordo com Terra citando Streck:

 

Além dos limites formais/explícitos [...] há aqueles que decorrem da sistematicidade da Carta Política. Tais vedações – implícitas – são limitações de reforma produzidas pela própria estrutura do discurso pelo qual se expressa a Constituição. São aqueles que se originam dos paradigmas adotados pelo próprio sistema jurídicos e que definem, com alguma clareza, quais as normas que a ele pertençam ou possam pertencer. (TERRA apud STRECK, 2001, p. 45). 

 

            Sendo assim, podemos falar que as limitações implícitas são disposições intangíveis de uma Constituição, servindo para garantir determinados valores fundamentais desta, que não devem estar necessariamente expressas ou em instituições concretas, pois vigem como implícitas, imanentes ou inerentes à Constituição. “A proibição de reforma produz-se a partir do “espírito” ou telos da Constituição, sem uma proclamação expressa em uma proposição jurídico-constitucional.” (TERRA, 2001, p. 45,46) 

            O entendimento de que a dificuldade em estabelecer quais seriam os limites materiais implícitos de reforma implica a inexistência desses. Segundo Canotilho:

 

Para esta doutrina, os limites materiais seriam apenas os expressamente previstos no texto constitucional; só os limites textuais expressos seriam autentico limites de revisão. Embora se possa admitir que esta doutrina tem ainda a seu favor a presunção de modificabilidade de normas anteriores por normas posteriores do mesmo grau, não devem minimizar-se os resultados a que ela conduzirá quando levada até às últimas conseqüências. As constituições que não previssem limites textuais expressos transformar-se-iam em meras leis provisórias, em constituições em branco,  totalmente subordinadas à discricionariedade do poder de revisão. Mas, a aceitarem-se limites imanentes deduzidos a partir do telos constitucional, então terá de exigir-se que esses limites não sejam meros postulados, mas autênticas imposições da Constituição, verdadeiros limites impostos por vontade da Constituição. (TERRA apud CANOTILHO, 2001, p.46).  

 

            Diante do que já foi dito sobre os limites materiais implícitos à reforma de uma Constituição,conclui Terra:  

 

 pode-se concluir que os mesmos só podem ser considerados e visualizados a partir de uma ordem constitucional determinada. Seria impossível tentar delimitar quais são os limites tácitos de reforma da Constituição de uma maneira abstrata, pois sempre serão variáveis, já que devem estar de acordo com os princípios fundamentais que cada normativa constitucional consagrar. Identificadas as vedações implícitas perante uma Constituição, ficam essas no mesmo patamar dos limites materiais expressos, uma vez que também preservam a ordem constitucional de um desvirtuamento que implique ruptura. (TERRA, 2001, p.47). 

 

            Diante do que já foi dito, cumpre-nos agora verificar, ainda que brevemente, qual o âmbito da proteção concedida pelas limitações materiais reformatórias da Constituição.

            As cláusula intangíveis, previstas no artigo 60, § 4º, incisos I e IV, da Constituição e, também, os limites implícitos tem o poder de impedir a reforma do texto constitucional.  Conforme Streck:

 

O processo de mudança constitucional nada tem a ver com as conveniências dos políticos – os partidos ou chefe do governo – para se soltar dos freios da lei suprema, visto que a Constituição, enquanto produto de um jogo de forças que se estabeleceram na Assembléia Nacional Constituinte, tem uma sistematicidade e uma materialidade que não podem ser ignoradas. A Constituição, em seu sentido amplo, não é uma máscara do jogo do poder que se possa abandonar quando se chega lá. ( TERRA apud   STRECK , 2001, p. 48). 

 

            O que devemos ter em mente é o alcance das limitações materiais que impedem possíveis alterações na Constituição. De acordo com Terra: 

 

A grande questão é visualizar até que ponto as limitações materiais impedem qualquer modificação na Constituição. E isso tem grande relevância – não para as situações de puro casuísmo político em que modificações são pretendidas para atendimento do governo de plantão ou de algum interesse específico menos sério – mas para aquelas circunstâncias em que modificações são necessárias para a adequação da norma à realidade social que avançou. Eis que tais instrumentos de garantia da Carta Política não podem servir de entrave para o seu aperfeiçoamento. É necessário chegar a uma posição intermediária: de mantença da estabilidade com não impedimentos de atualização do texto constitucional. (TERRA, 2001, p. 48).

 

            Assim, devemos entender a finalidade da imposição de limites à reforma como a mera intenção de manter o cerne da Constituição. E isso não quer dizer que esta será mantida literalmente em sua integralidade, até porque, ela, deve acompanhar as transformações sociais; mas, sim, como a manutenção e fixação dos princípios nucleares que permeiam os dispositivos tidos como imutáveis e, também, os princípios fundantes da ordem constitucional instituída. 

           

 

           

5 A IMPOSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO DA IDADE PENAL MÍNIMA COMO DIREITO DE CIDADNIA

 

 

            É evidente que a questão da  infância e juventude extrapola o campo específico do Direito, envolvendo também, questões sociais. Mas para ficarmos dentro de uma ótica jurídica, podemos estudá-la sob o prisma da crise paradigmática. Conforme Terra: 

 

 De um lado, temos o que vai convencionalmente ser chamado de velho paradigma e   representa toda a produção legislativa e seu suporte teórico a respeito da “menoridade”, que se estende até a promulgação da Constituição de 1988. E, a partir daí, surge o novo paradigma, quando ocorre uma (r)evolução conceitual e normativa no tratamento dos interesses das crianças e adolescentes. (TERRA, 2001, p. 50).

 

            Equivocadamente se pensa que a grande mudança paradigmática ocorrida no Brasil em relação a infância e juventude foi com o advento do ECA. No entanto tal pensamento é equivocado. O ECA (Lei 8.069/90) nada mais é do que a integração legislativa que estabelece a CR/88, no seu art. 227, que introduziu no Brasil a doutrina da proteção integral. De acordo com Terra:

 

 Logo, possível afirmar que, desde a vigência da atual Carta Política, toda a legislação menorista que contrariava os princípios constitucionais fixados para a infância e juventude restou derrogada. E assim é, pois, sendo o Estado Democrático de Direito um Estado principialista – como já referido, não mais subsiste a classificação de normas constitucionais meramente programáticas – não há como subsistir normativa legal que contrarie os princípios que o presidem. (TERRA, 2001, p. 50).

 

            No decorrer do processo constituinte de 1988, que foi alvo de um intenso debate processado no país desde os anos oitenta do século passado, predominou o entendimento de que a atual Carta Magna deveria trazer os vários aspectos de proteção da infância e juventude que consubstanciavam vários documentos internacionais específicos e que tinham como linha básica a proteção dos direitos humanos.

            O conteúdo do artigo 227 da CR/88 introduziu a síntese da doutrina de proteção integral, que acabou fixada na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada por unanimidade pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 20.11.1989.

            “A preocupação deixa de ser com o “menor” delinqüente-abandonado, para existir em relação a toda infância, à qual é assegurado, de forma prioritária, o exercício de seus direitos básicos e fundamentais, em face da condição de ser humano em desenvolvimento.” (TERRA, 2001, p. 52). 

            Sendo assim, a preocupação agora é com toda população infanto-juvenil, que deverá ter seus direitos garantidos, afastando-se o foco de segregação e repressão da doutrina a situação irregular.

            Conforme Terra:

 

          O alvo de ação não será mais o “menor” desviante, pois não é a criança que precisa de controle e reintegração, uma vez que não se encontra irregular. A irregularidade, agora, está nas condições precárias para a sua sobrevivência e desrespeito de seus direitos fundamentais. A ordem é agir para assegurar à criança condições de uma vida digna, e para isso deverá estar voltada a ação do Estado, da família e da sociedade.  (TERRA, 2001, p. 52).

 

            Visualizando-se o campo da infração penal, nota-se que não mais persiste a ótica    criminalizadora do Código de Menores. O que temos agora, é um procedimento para apuração de atos infracionais, em que fica assegurado o amplo direito de defesa, sem uma pré-concepção do “menor” como infrator potencial a ser ressocializado. Acaba o estigma e a lógica da segregação como meta. A privação de liberdade passa a acontecer somente em casos excepcionais. Devendo se considerar, para essa espécie de medida (internação/prisão), caso venha a ser aplicada, a condição do menor como ser humano em desenvolvimento.

            Foi dentro do contexto de acolhimento da doutrina da proteção integral, que assegurou direitos à infância e juventude e, no campo da infração penal, estabeleceu a apuração de eventual responsabilidade dentro de um sistema que oferece garantias processuais, que a Constituição assegurou a idade da inimputabilidade em 18 (dezoito) anos.

            Conforme Terra:

 

          Os defensores da diminuição da idade da imputabilidade penal cometem um grande equívoco, não reconhecendo que a sua fixação foi uma opção política do Constituinte de 1987/1988. Logo, toda e qualquer discussão com base na teoria do discernimento, como vem sendo travada, é desfocada. O critério para estabelecer a idade penal mínima foi político, não tendo relação com a capacidade ou incapacidade de entendimento.

            

             Aceitar-se que a fixação constitucional da imputabilidade penal baseia-se na falta de compreensão do caráter ilícito ou anti-social de uma conduta criminosa implica equiparar adolescentes a insanos mentais, e isso, à evidência, é algo que padece de um mínimo de coerência. Ninguém tem dúvida de que o jovem e mesmo a criança, têm plena capacidade de entender que é reprovável furtar, danificar, matar etc. 

 

          Também não se pode falar na adoção, pelo Constituinte, de um critério puramente biológico. A decisão foi no sentido de valorização da dignidade humana de todas as pessoas menores de dezoito anos, de acordo com a tendência internacional de reconhecimento jurídico da doutrina da proteção integral, que acabou consubstanciada na Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Em outras palavras, sendo o Estado Democrático de Direito presidido, entre outros, pelo princípio da dignidade da pessoa humana, a fixação da imputabilidade penal aos dezoito anos representa o seu compromisso com a valorização da adolescência por reconhecer tratar-se de uma fase especial do desenvolvimento do ser humano. (TERRA, 2001, p. 53).

 

            Sendo fruto de opção política, não podemos falar que a idade penal mínima não deveria ter sido erigida à condição de norma constitucional, pois não há um critério para definir o que pode ou não ser constitucionalizado, até porque, em uma democracia pluralista, tudo tem potencial político.

            Sobre o entendimento de que o art. 228 da Constituição é um direito fundamental, faremos algumas considerações gerais a respeito dessa espécie de direito.

            Os direitos fundamentais exercem um papel no Estado Democrático de Direito, qual seja: promover a proteção do cidadão com individualidade e, também, a solidariedade social, visando a um pleno desenvolvimento da comunidade como um todo. Conforme Terra:

 

 Em outras palavras, os direitos fundamentais garantem o respeito dos direitos individuais e a promoção social baseada na valorização da dignidade humana, cumprindo a função de descortinar o horizonte emancipatório a alcançar no Estado Democrático de Direito, o que decorre do seu compromisso antropológico. (TERRA, 2001, p. 54)  

 

            O art. 5º da Constituição Federal estabelece o rol de direitos e garantias individuais da pessoa humana, sendo desnecessário discutir se são ou não amparados pelo § 4º do art. 60, pois expressamente definido na Carta Magna.

            Levando em conta o papel que desempenham, os direitos fundamentais gozam, em nosso ordenamento jurídico, de um reforço de efetividade, pois, de acordo com o § 1º do artigo 5º da Constituição, “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” (TERRA apud CR/88, 2001, p.255). Essa disposição implica em uma espécie de juridicidade reforçada, que é uma característica comum e diferenciada dos direitos fundamentais. Além disso, os direitos fundamentais não podem ser excluídos da constituição, já que são protegidos pela intangibilidade fixada no artigo 60, § 4º, inciso IV, da Carta Magna:

 

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta.

§ 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

                                            Inciso IV.  Os direitos e garantias individuais.

 

            “Os processos histórico-evolutivos dos direitos fundamentais demonstram a sua concepção materialmente aberta, pois sempre permite emergência de novos direitos ou a agregação de novos conteúdos aos já existentes, que passam a ter uma nova conotação.” (TERRA, 2001, p.55).

            A CR/88 em seu art. 5º, § 2º, inclui um caráter aberto dos direitos fundamentais,  permitindo localizar tais direitos em todo o seu texto, e não só aqueles que estão elencados no catálogo que apresenta (Título II). Autoriza também, o reconhecimento de outros direitos fundamentais que não estejam no texto constitucional, desde que decorram do regime e princípios por ela adotados, bem como de tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte. “Vale dizer, o rol de direitos fundamentais elencados na Constituição não é exaustivo, permitindo a localização de outros.” (TERRA, 2001, p. 56). 

            Diz o § 2º do art. 5º da CR/88:

 

Art. 5º, § 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. 

 

            “A fundamentabilidade material de um direito decorre de sua imbricação direta com a pessoa humana, valorizando a sua dignidade, e resulta, também, da concepção de Constituição dominante, da idéia de Direito, do sentimento jurídico coletivo.” (TERRA, 2001, p. 56). O  princípio da dignidade humana sempre estará no centro, ou vinculado à existência de um direito fundamental fora do catálogo, mesmo sendo em outro lugar da Constituição.  Conforme Neto:

          Assim este parágrafo nos traz duas certezas: a primeira, que a própria Constituição Federal admite que encerra em seu corpo, direitos e garantias individuais, e que o rol do art. 5º não é exaustivo. A segunda, que direitos e garantias concernentes com os princípios da própria Constituição e de tratados internacionais firmados pelo Brasil, integram referido rol, mesmo fora de sua lista. (NETO,2001, p. 82).

 

                        “A idade penal mínima é autêntico direito fundamental localizado fora do catálogo elencado pela Constituição no título II, pois inequivocamente vinculado ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.” (TERRA, 2001, p. 57). 

            Os direitos fundamentais fora do catálogo e com caráter de cláusula pétrea, não são reconhecidos apenas em sede doutrinária. O STF já deixou isso bem claro, ao apreciar a ADIN nº. 939/93, questionadora da constitucionalidade de Emenda Constitucional nº. 3, de 17.03.1993, que instituía a arrecadação do Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras – IPMF – a partir de agosto daquele ano, conforme estabeleceu a Lei Complementar nº. 77, de 13.07.1993, que também foi objeto da argüição de inconstitucionalidade.

            O STF, ao julgar a ADIN nº. 939, não só exerceu o papel de guardião da Constituição, como também, impediu que o sistema de direitos e garantias fundamentais fosse descaracterizado.

            De acordo com Terra:

 

          Fazendo uma suma da posição majoritária adotada no julgamento da ADIn nº. 939, pode-se assentar que: a) restou inquestionável a possibilidade da existência de direitos fundamentais fora do catálogo; b) a unidade sistêmica da Constituição deve ser preservada, pois os princípios e direitos fundamentais apresentam íntima ligação, não podendo ocorrer uma visão da Constituição que não abranja o seu todo, devendo haver respeito incondicional aos princípios que informam a Carta Magna; c) os limites materiais de reforma não podem ser minimizados pela existência de exceções previstas no próprio texto constitucional; d) todas as exceções feitas pelo Constituinte originário são no exercício de uma competência  incondicionada e que são se transfere ao Poder Reformador, pois este é, por natureza, subordinado; e) a abrangência da cláusula de intangibilidade do art. 60, § 4º, IV é ampla, pois vai além dos direitos e garantias estritamente pessoais, açambarcando, pelo menos, os chamados direitos de primeira e segunda gerações ou dimensões; f) a possibilidade de alteração do núcleo essencial de direito fundamental que constitui cláusula pétrea tem de ser vista de forma restritiva, sob pena de esvaziamento do direito por novas e sucessivas reformas; g) toda emenda constitucional, por não emanar de poder originário, é suscetível de controle de constitucionalidade. (TERRA, 2001, p.58,59).

 

            O STF apenas destacou a necessidade de conservar a obra do constituinte originário, único legitimado a excepcionar a incidência de princípios ou garantias instituídas em favor do cidadão.

            Não é a posição topológica de um direito inserido na CR/88 que irá determinar a sua fundamentabilidade material. “A sua caracterização depende da relevância que lhe foi atribuída e da sua imbricação com direito ou princípio que integre o núcleo essencial da Carta Magna.” (TERRA, 2001, p. 60). E se o STF assim agiu ao apreciar uma questão de matéria tributária, da mesma forma não deixaria de reconhecer a impossibilidade de supressão de qualquer direito Fundamental que seja diretamente vinculado ao princípio da dignidade da pessoa humana.  

            Conforme Terra:

 

         O art. 228, da Constituição Federal de 1988, ao estabelecer a idade mínima para imputabilidade penal, assegura a todos os cidadãos menores de dezoito anos uma posição jurídica subjetiva, qual seja, a condição de inimputável diante do sistema penal. E tal posição, por sua vez, gera uma posição jurídica objetiva: a de ter a condição de inimputável respeitada pelo Estado. (TERRA, 2001, p. 60).

 

            Em relação a todo cidadão menor de dezoito anos, trata-se de garantia asseguradora do direito de liberdade. Em outras palavra, pode ser descrito como o alcance que tem o direito de liberdade em relação aos menores de dezoito anos. Exercendo uma barreira entre estes e o Estado, que fica proibido de proceder a persecução penal.

            É nada mais, que uma garantia individual assegurada pela CR/88. Conforme Terra:

 

Trata-se, portanto, de garantia individual, com caráter de fundamentabilidade, pois diretamente ligada ao exercício do direito de liberdade de todo cidadão menor de dezoito anos. E não se pode olvidar que a liberdade sempre está vinculada ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, especialmente em relação às crianças e adolescentes, pois foram reconhecidos como merecedores de absoluta prioridade da atenção da família, da sociedade e do Estado, em face da peculiar condição de seres humanos em desenvolvimento. (TERRA, 2001, p. 61,62).

  

            O constituinte originário de forma livre e soberana optou pela fixação da imputabilidade penal aos dezoito anos, estabelecendo um maior grau de liberdade perante o Estado até tal idade, não cabendo ao Poder Reformador mudar esse contexto, pois afetaria diretamente o núcleo essencial do direito de liberdade, no que diz respeito ao cidadão com idade inferior àquela fixada na Carta Magna. 

            Conforme Terra:

 

          As obrigações para com a infância e a adolescência estão diretamente vinculada à plena promoção da dignidade humana de tal categoria de cidadãos. A Lei Maior determina um atendimento amplo e digno a todas crianças e adolescentes, nas mais diversas áreas, a fim de que se tornem, na idade adulta, cidadãos conscientes e socialmente integrados. Vale dizer, não se quer uma infância e juventude marginalizada, pois isso gerará cidadãos adultos excluídos do processo social, e, assim, não cumprirá o Estado Democrático de Direito a sua função de promover a dignidade, a igualdade e a solidariedade. (TERRA, 2001, p.61).      

 

            Assim, é inegável que a maioridade penal até os dezoito anos de idade integra o direito de livre desenvolvimento da personalidade, permitindo uma abertura maior de proteção ao ser humano em desenvolvimento e formação.

            Conforme Terra:

 

         A idade de imputabilidade penal fixada na lei Maior, portanto, tem um caráter híbrido – ou uma dupla dimensão. É, por um lado, garantia do direito individual de liberdade dos menores de dezoito anos, e, de outra banda, ao balizar até quando vai a adolescência, estabelece condição de possibilidade para ser titular dos direitos a prestações – nos sentidos amplo e restrito – em caráter preferencial, que são assegurados às crianças e adolescentes pela doutrina da proteção integral acolhida pela ordem constitucional. (TERRA, 2001, p. 62).  

 

                        A impossibilidade de modificação da idade penal mínima, por força do disposto no § 2º do artigo 5º  deve merecer mais atenção.

            A partir da Constituição de 1988, houve uma forte intensificação do direito internacional e do direito interno, que fortaleceram a sistemática de proteção dos direitos fundamentais.

            Não é de hoje que vivemos em um mundo globalizado, e a cada que se passa há uma interação maior entre direito interno e direito intencional. A entrada na CR/88 da doutrina da proteção integral e, também, da fixação da imputabilidade penal aos dezoito anos, decorreu da internalização da vertente protetora dos direitos humanos de caráter internacional, dos quais a proteção da criança e do adolescente é uma das facetas. “Tanto é assim, que o disposto no art. 227 da Constituição Federal é reconhecido como síntese das diretrizes fixadas pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança.” (TERRA, 2001, p. 63). O Brasil ao confirma a Convenção – e fez isso sem qualquer ressalva de reserva – assumiu a obrigação de cumpri-la integralmente. 

            Sendo assim, não cabe ao Estado brasileiro tomar qualquer iniciativa que venha a tornar ineficaz ou contrariar qualquer dispositivo da Convenção sobre os Direitos da Criança,  que tem status de norma constitucional, graças ao art. 5º, § 2º da CR/88. Isso porque a Carta Magna de 1988, passou a considerar as normas de tratados de direitos humanos como de hierarquia constitucional.

            Conforme Terra:

 

O tratado em referência, inequivocamente, tem conteúdo de proteção dos direitos humanos. A Convenção, em seu art. 41, estabelece que nenhum de seus signatários poderá tornar sua normativa interna mais gravosa em vista do que dispõe o tratado. (TERRA, 2001, p. 63,64).

 

            Não pode portanto o Brasil descumprir o que foi estabelecido no tratado, sob o risco de ser responsabilizado internacionalmente por ser Estado-parte da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, em respeito ao que estabelece a Constituição, que conferiu estatura constitucional aos direitos e garantias decorrentes de tratados internacionais de que o Brasil seja parte, fica inviabilizada qualquer possibilidade de alteração da idade penal mínima. 

            Então, em respeito ao que estabelece a CIDC que adquiriu estatura constitucional conferida pela CR/88, mais precisamente pelo seu art. 5º, § 2º, o Brasil não poderá alterar a idade penal mínima para 16 (dezesseis) anos ou menos. Conforme conclui Terra:

 

Pode-se concluir, portanto, que, enquanto o Brasil for Estado-parte da Convenção Internacional dos Direitos das Crianças, em respeito ao que estabelece a Constituição, que conferiu estatura constitucional aos direitos e garantias decorrentes de tratados internacionais de que o Brasil seja parte, fica inviabilizada qualquer possibilidade de alteração da idade penal mínima. (TERRA, 2001, p. 64).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

6 A APURAÇÃO DE ATO INFRACIONAL

 

 

            O ECA prevê a forma de apuração do ato infracional atribuído a adolescentes (entre doze e dezoito anos incompletos), não alcançando os atos cometidos por crianças abaixo de 12 (doze) anos. Tratando-se de criança abaixo da idade prevista pelo ECA,  a competência é do Conselho Tutelar e, na falta deste, da autoridade judiciária, que poderá investigar os fatos, ouvindo-se o Ministério Público, nos termos do artigo 153 do ECA que diz:

 

Art. 153. Se a medida judicial a ser adotada não corresponder a procedimento previsto nesta ou em outra lei, a autoridade judiciária poderá investigar os fatos e ordenar de ofício as providências necessárias, ouvido o Ministério Público.

 

 

6.1 Procedimento na fase policial

 

 

            Dependendo da forma como o adolescente é apreendido, estabelece a lei uma nítida distinção no procedimento a ser adotado: a) se a apuração for decorrente de ordem judicial, o adolescente será, desde logo, encaminhado à autoridade judiciária; b) se ocorrer em flagrante, será, desde logo, conduzido à autoridade policial competente.

            Na hipótese do ato infracional ter sido praticado em co-autoria com maior ambos serão encaminhados de início à unidade policial especializada (delegacia de menores) e só depois, tomadas as providências cabíveis, será o adulto encaminhado à repartição policial própria. 

            “O certo é que o adolescente não poderá ser levado com o maior a uma delegacia comum para, em seguida, ser transferido a uma especializada. Como anuncia a lei, prevalecerá a atribuição desta.” (LEAL, 2001, p. 197).

            Não havendo repartição especializada, o que é comum no interior do Brasil, deverá adolescente será encaminhado a uma delegacia comum, onde aguardará a apresentação em dependência separada daquela que se destina à maiores, não podendo, em qualquer hipótese, exceder o prazo de 24 horas.

            Havendo flagrante, deverá a autoridade policial: Conforme Leal.

 

 a) se o ato infracional for cometido mediante violência ou grave ameaça à pessoa, esta deverá lavrar o auto de apreensão, ouvindo as testemunhas e o adolescente; apreender o produto e os instrumentos da infração; requisitar os exames de perícias necessárias à comprovação da materialidade e autoria da infração; b) nas demais casos, o termo circunstanciado de ocorrência poderá substituir a lavratura do auto.   (LEAL, 2001, p.196,197).

 

            Não podendo o adolescente ser liberado de imediato, cuja possibilidade é examinada desde logo e sob pena de responsabilidade, a autoridade policial, evidenciada a gravidade do ato infracional, deverá encaminha-lo ao membro do MP, juntamente com a cópia de apreensão ou boletim de ocorrência.

            Não sendo possível a apresentação do menor ao membro do MP, a autoridade policial o encaminhará a uma entidade de atendimento (sendo vedada a sua condução em “camburões” ), e o dirigente desta, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas fará a apresentação do adolescente ao membro do MP. 

Caso não haja uma entidade de atendimento, a apresentação do menor ao membro do MP terá que ser feita pela própria autoridade policial. “Advertindo-se, consoante já realçado, que a eventual permanência do adolescente em delegacia comum deverá ser em dependência separada da destinada a maiores.” (LEAL, 2001, p. 198). 

Podendo o menor ser liberado, deverá a autoridade policial encaminhar ao membro do MP cópia do auto de apreensão ou boletim de ocorrência.

 

            Se o menor não houver sido flagrado na prática de ato infracional, deverá a autoridade policial fazer chegar às mãos do membro do MP relatório das investigações e demais documentos.

 

 

6.2 Procedimento do Ministério Público

 

 

Nas hipóteses do adolescente ter sido liberado antes, ou mantido sob custódia, nos termos da lei estatutária, será apresentado ao membro do MP, a quem caberá, de imediato, proceder, sem formalidades, à sua oitiva e, se possível, à dos pais ou responsável, vitimas e testemunhas.

O Ministério Público, após a análise do auto de apreensão, boletim de ocorrência ou relatório policial, terá, como dominis litis, as seguintes opções: Conforme Leal:

 

a) promover o arquivamento dos autos; b) conceder a remissão (a qual não prevalece para efeito de antecedentes e pode incluir eventualmente a aplicação de qualquer medida, excetuando-se a colocação em regime de semi-liberdade e a internação); c) representar à autoridade judiciária para aplicação de medida socioeducativa. (LEAL, 2001, p. 199). 

 

Nas duas primeiras opções, exige-se uma fundamentação dos fatos, para que os autos sejão conclusos à autoridade judiciária para homologação. Podendo a homologação, por parte da autoridade judiciária, ocorrer ou não. Conforme Leal:

 

 Se ocorrer, a autoridade judiciária determinará o cumprimento da medida. Se não ocorrer, isto é, se houver discordância, fará remessa dos autos ao Procurador Geral de Justiça, autoridade superior do Ministério Público, mediante despacho fundamentado, e este tomará uma das seguintes providências: oferecerá representação; designará outro membro do MP para apresentá-la; ou ratificará o arquivamento ou a remissão que só então estará a autoridade judiciária obrigada a homologar. (LEAL, 2001, p. 199). 

 

Na terceira opção, haverá a representação ministerial independente de prova pré-constituída da autoria e da materialidade; e o membro do MP proporá a instauração de procedimento para aplicação da medida socioeducativa que se afigure a mais conveniente.  “Nela o representante do MP não deve especificar a medida a ser aplicada, uma vez que só na continuidade do procedimento, depois da apresentação do laudo da equipe interprofissional, é que se terá noção da medida que mais se ajusta ao adolescente.” (LEAL, 2001, p.199).  

 

 

6.3 Procedimento na fase judicial

 

 

            Após o membro do MP oferecer a representação, a autoridade judiciária designará audiência de apresentação do adolescente. Essa audiência é de fundamental importância para que o juiz possa tomar conhecimento das características da personalidade do adolescente, e sua situação familiar.  O prazo para que o juiz decida sobre a decretação ou manutenção da internação provisória, é de 45 (quarenta e cinco) dias. Se esse prazo for excedido, caracterizar-se-a o constrangimento ilegal ensejador de reparação mediante habeas corpus.

O ECA possibilita que o adolescente e seus pais ou responsáveis sejão certificados do conteúdo da representação e notificados a comparecer à audiência acompanhados de advogado. “A presença dos pais ou responsável é uma recomendação das Regras de Beijing e da Convenção sobe os Direitos da Criança.” (LEAL, 2001, p. 200). Poderá também, ser indicado Curador Especial ao adolescente se os seus pais ou responsável não forem localizados. Não sendo o próprio adolescente localizado, poderá a autoridade judiciária expedir mandado de busca e apreensão, determinando o sobrestamento do feito, até a efetiva apresentação do mesmo. Estando internado o adolescente, requisitar-se-á sua apresentação, sem prejuízo da notificação dos pais ou responsável.

Conforme Leal:

 

Com o comparecimento do adolescente, de seus pais ou responsável, a autoridade judiciária procederá à sua oitiva, podendo solicitar parecer de profissional qualificado (o qual poderá integrar ou não a equipe interprofissional). Não comparecendo o adolescente, injustificadamente, será designada nova data, determinando sua condução coercitiva.(LEAL,  2001, p. 201).

 

A autoridade judiciária, então, examinará se cabe ou não conceder a remissão.

Conforme Leal: 

 

Se lhe parecer que esta é adequada, ouvirá o representante do Ministério Público e proferirá a decisão. Entendendo diferentemente e sendo fato grave, passível de aplicação de medida de internação ou colocação em casa de semi-liberdade, a autoridade judiciária, certificando-se de que o adolescente não possui advogado constituído, nomeará defensor, designando, desde logo, audiência em continuação, podendo determinar a realização de diligência e estudo do caso. (LEAL, 2001, p. 201, 202).

 

            Em alusão ao procedimento ordinário do processo penal, na justiça da infância o advogado constituído ou defensor nomeado também terão três dias, contados da audiência de apresentação, para oferecer defesa prévia e rol de testemunhas.

            Na audiência após serem ouvidas as testemunhas arroladas na representação e na defesa prévia e, depois de cumpridas as diligências e juntado o relatório da equipe interdisciplinar, será dada a palavra ao membro do MP e ao defensor, sucessivamente, pelo prazo de 20 minutos para cada um, podendo ser prorrogado por mais dez, a juízo da autoridade judiciária que, em seguida, proferirá decisão.

Antes de proferir a sentença, poderá o juiz, em qualquer fase do procedimento, optar pela remissão como forma de extinção ou suspensão do processo. Conforme Barros:

 

 A aplicação da medida, por sua vez, não se fará se na sentença se reconhecer: estar provada a inexistência do fato; não haver prova de existência do fato; não constituir ato infracional; não existir prova de ter o adolescente concorrido para o ato infracional. (LEAL, 2001, p. 202).  

 

            Se o adolescente estiver internado, será, então, posto em liberdade.

            Se o juiz decidir pela internação ou regime de semiliberdade, a intimação da sentença será feita na pessoa do adolescente e ao seu defensor; quando não for encontrado o adolescente, a seus pais ou responsável, sem prejuízo do defensor. Sendo aplicado ao menor aplicação outra espécie de medida, a intimação far-se-á unicamente na pessoa do defensor.

            “Se a intimação recair na pessoa do adolescente, este deverá manifestar se quer recorrer ou não da sentença.” (LEAL, 2001, p. 202).

            Estando o menor disposto a recorrer, o sistema recursal, nos procedimentos afetos à Justiça da Infância e da Juventude, é o do Código de Processo Civil e suas alterações ulteriores, com as adaptações referidas pelo artigo 198 do ECA que diz:

 

Art. 198. Nos procedimentos afetos à justiça da Infância e da Juventude fica adotado o sistema recursal do Código de Processo Cível, aprovado pela Lei nº. 5.869, de 11 de janeiro de 1973, e suas alterações posteriores, com as seguintes adaptações.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

7 TEORIA GERAL DO CRIME

 

 

7.1 Conceito de Crime

 

 

            Analisando-se a Lei de Introdução ao Código Penal brasileiro (Decreto nº. 3.914/41), observa-se que o crime não é analisado sob o seu aspecto tripartido, mas tão somente sob o aspecto punitivo, diferenciando crime de contravenção, conforme se extrai do seu art. 1º, que diz:

 

Art. 1º. Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.

 

            O Decreto-lei n. 3.914/41), sem nenhuma preocupação científico-doutrinária, apenas ordenou as características que distinguem as infrações penais consideradas crimes daquelas que constituem contravenções penais, as quais, como se percebe, restringem-se à natureza da pena de prisão aplicável. Conforme Bitencourt:

 

 Ao contrário dos Códigos Penais de 1830 (art. 2º, § 1º) e 1890 (art. 7º), o atual Código Penal (1940, com a Reforma Penal de 1984) não define crime, deixando a elaboração de seu conceito à doutrina nacional. As experiências anteriores, além de serem puramente formais, eram incompletas e defeituosas, recomendando o bom senso o abandono daquela prática. (BITENCOURT, 2003, p. 145).

 

            A punibilidade não pode ser incluída no conceito analítico de crime, porque não faz parte do crime, sendo apenas sua conseqüência. A pena criminal, como sanção específica do Direito Penal, ou a possibilidade de sua aplicação, não pode ser elemento constitutivo, isto é, estar dentro do conceito de crime.”(BITENCOURT apud ASSIS TOLEDO, 2003, p. 146). Assim, a exclusão da punibilidade, seja pela falta de uma condição objetiva ou pela presença de uma escusa absolutória, não desfaz o conceito de crime.

            Essa é a definição de crime no Brasil adotada pela LICP. Uma definição incapaz de conceber a natureza do delito.

 

 

 

7.2 Antecedentes da Moderna Teoria do Crime

 

 

            Elaborando um breve sobre a evolução da moderna teoria do delito, analisaremos brevemente três fases desse desenvolvimento: o conceito clássico de crime, o conceito neoclássico de crime e conceito finalista de delito.

            O conceito quadripartido do delito, concebido como ação, típica, antijurídica e culpável, “essa concepção pode ser definida como tripartida, considerando somente os predicados da ação, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade,” (BITENCOURT, 2003, p. 138), é produto de construção recente, mais precisamente, do final do século passado. Anteriormente, o Direito comum conheceu somente a distinção entre imputatio facti e imputatio uuris. De acordo com Welzel, citado por Bitencourt:

 

A dogmática do Direito Penal tentou compreender, primeiro (desde 1884), o conceito do injusto, partindo da distinção: objetivo, subjetivo. Ao injusto deviam pertencer, exclusivamente, os caracteres externos objetivos da ação, enquanto que os elementos anímicos subjetivos deviam constituir a culpabilidade. (BITENCOURT apud WELZEL, 2003, p. 138).

 

            A atual definição de crime originou-se da elaboração inicial da doutrina alemã, a partir da segunda metade do século XIX sob a influência do método analítico, que é usado no pensamento científico; e teve a contribuição de outros países, como Itália, Espanha, Portugal, Grécia, Áustria e Suíça.

 

 

7.3 O Conceito Clássico de Crime

 

 

            O conceito clássico de delito, foi elaborado por Von Litz e Beling, sendo representado por um movimento corporal (ação), produzindo uma modificação no mundo exterior (resultado). “Essa estrutura simples, clara e também didática, fundamentava-se num conceito de ação eminentemente naturalístico, que vinculava a conduta ao resultado através do nexo de causalidade.” (BITENCOURT, 2003, p. 139). 

            A estrutura clássica do delito tinha como partes absolutamente distintas o aspecto objetivo, representado pela tipicidade e antijuridicidade, e o aspecto subjetivo, representado pela culpabilidade.

            Conforme Bitencourt:

 

O conceito clássico de delito foi produto do pensamento jurídico característico do positivismo científico, que afastava completamente qualquer contribuição das valorações filosóficas, psicológicas e sociológicas. Essa orientação, que pretendeu resolver todos os problemas jurídicos nos limites exclusivos do Direito positivo e de sua interpretação, deu um tratamento exageradamente formal ao comportamento humano que seria definido como delituoso. Assim, a ação, concebida de forma puramente naturalística, estruturava-se com um tipo objetivo-descritivo, a antijuricidade era puramente objetivo-normativo e a culpabilidade, por sua vez, apresentava-se subjetivo-descritiva. (BITENCOURT, 2003, p. 139,140). 

 

            No conceito clássico de delito, seus quatro elementos estruturais eram entendidos da seguinte forma:

Ø      Ação – Era um elemento puramente descritivo, naturalista e causal, valorativamente neutro. Puramente objetivo, se sustentando na origem da vontade, não se preocupava com o conteúdo desta, mas tão-somente com o aspecto objetivo da ocorrência do resultado externo.

Ø      Tipicidade – O tipo e a tipicidade compreendiam o caráter externo da ação, valorizando os aspectos objetivos do fato descrito na lei. Aqui ficam fora do tipo e da tipicidade as circunstâncias subjetivas ou internas do delito, que pertenceriam à culpabilidade.

Ø      Antijuridicidade – Constitui-se por um elemento objetivo, valorativo e formal. A constatação da antijuridicidade implica um juízo de desvalor, uma valoração negativa da ação.

Ø      Culpabilidade – Foi assumida de início como o aspecto subjetivo do crime, e tinha um caráter puramente descritivo, se limitando a comprovar a existência de um vínculo subjetivo entre o autor e o fato. A diversidade de intensidade desse nexo psicológico faz surgir as formas de culpabilidade, dolosa e culposa. 

 

 

7.4. O Conceito Neoclássico de Crime

 

 

            A formulação clássica do conceito de delito, atribuída a Liszt e Beling, teria sofrido profunda transformação, mas, sem abandonar por inteiro seus princípios fundamentais, justificando-se, dessa forma, a denominação de conceito neoclássico.

            Conforme Bitencourt:

 

O conceito neoclássico corresponde à influência no campo jurídico da filosofia neokantiana, dando-se especial atenção ao normativo e axiológico. Foi substituída a coerência formal de um pensamento jurídico circunscrito em si mesmo por um conceito de delito voltado para os fins pretendidos pelo Direito Penal e pelas perspectivas valorativas que o embasam (teoria teleológica do delito).( BITENCOURT, 2003, p. 141). 

 

            Diante dessa nova orientação, todos os elementos do conceito clássico do crime sofreram uma mutação, principalmente o conceito de ação, cuja concepção, puramente naturalística, era o ponto mais frágil do conceito clássico de crime, principalmente nos crimes omissivos, nos crimes culposos e na tentativa. Com relação a tipicidade, o descobrimento dos elementos normativos, finalizando um conteúdo de valor, e o reconhecimento da existência dos elementos subjetivos do tipo, afastaram definitivamente uma concepção clássica deste, determinada por fatores puramente objetivo. Já a antijuridicidade, que representava uma contradição formal a uma norma jurídica, passou a ser concebida sob um aspecto material, exigindo-se uma determinada danosidade social. Esse novo entendimento permitiu graduar o injusto de acordo com a gravidade da lesão produzida. “Dessa forma, onde não houver lesão de interesse algum, o fato não poderá ser qualificado de antijurídico.” (BITENCOURT, 2003, p.141).   

            De acordo com Bitencourt:

 

Com essa reformulação, o tipo, até então puramente descritivo de um processo exterior, passou a ser um instituto pleno de sentido, convertendo-se em tipo de injusto, contendo, muitas vezes, elementos normativos, e, outras vezes, elementos subjetivos. A antijuridicidade deixou de ser concebida apenas como a simples e lógica contradição da conduta com a norma jurídica, num puro conceito formal, começando-se a trabalhar um conceito material de antijuridicidade, representado pela danosidade social. O conceito material de antijuridicidade permite a introdução de considerações axiológicas e teleológicas, que facilitam a interpretação restritiva de condutas antijurídicas. A culpabilidade também foi objeto de transformações nesta fase teleológica, recebendo de Frank a “reprovabilidade” pela formação da vontade contrária ao dever, facilitando a solução das questões que a teoria psicológica da culpabilidade não pode resolver. A evolução definitiva da culpabilidade foi propiciada pelo finalismo welzeliano, que redimensionou todos os conceitos da teoria do delito. 

 

Enfim, a teoria neoclássica do delito caracterizou-se pela reformulação do velho conceito de ação, nova atribuição à função do tipo, pela transformação material da antijuridicidade e redefinição da culpabilidade, sem alterar, contudo, o conceito de crime, como a ação típica, antijurídica e culpável. (BITENCOURT, 2003, p. 142).

 

 

7.5. O Conceito Finalista de Crime

 

            Desvirtuando-se do conceito causal de ação e, especialmente, à separação entre a vontade e seu conteúdo, Welzel elaborou o conceito finalista. “A teoria final da ação tem o mérito de eliminar a injustificável separação dos aspectos objetivos e subjetivos da ação e do próprio injusto, transformando, assim, o injusto naturalístico em injusto pessoal.” (BITENCOURT, 2003, p. 143). 

            A vinda do finalismo foi um dos mais importantes para a evolução da teoria do delito.  Com a chegada do finalismo, todos os elemento subjetivos que integravam a culpabilidade foram retirados, nascendo, então, uma concepção puramente normativa. Conforme Bitencourt: 

 

O finalismo deslocou o dolo e a culpa para o injusto, retirando-os de sua tradicional localização – a culpabilidade -, levando, dessa forma, a finalidade para o centro do injusto. Concentraram na culpabilidade somente aquelas circunstâncias que condicionam a reprovabilidade da conduta contrária ao Direito, e o objeto da reprovação situa-se no injusto. Essa nova estrutura sustentada pelo finalismo trouxe tipos dolosos e culposos, dolo e culpa não mais como elementos ou formas de culpabilidade, mas como integrantes da ação e do injusto pessoal, além da criação de uma culpabilidade puramente normativa. (BITENCOURT, 2003, p. 143.) 

 

            Para o finalismo, crime continua sendo a ação típica, antijurídica e culpável. 

 

 

7.6. O Conceito Analítico de Crime

 

 

            Embora tenhamos os conceitos formal (crime é toda a ação ou omissão proibida por lei, sob a ameaça de pena) e material (crime é a ação ou omissão que desrespeita os valores ou interesses da sociedade, exigindo sua proibição com a ameaça de pena),  é necessário que adotemos um conceito analítico de crime. “Os conceitos formal e material são insuficientes para permitir à dogmática penal a realização de uma análise dos elementos estruturais do conceito de crime.” (BITENCOURT, 2003, p. 144).

            O primeiro conceito analítico de crime começou com Carmignani (1833), embora encontre antecedentes em Deciano (1551) e Bohemero (1732). Segundo Bitencourt:

 

Para Carmignani, a ação delituosa compor-se-ia do concurso de uma força física e de uma fora moral. Na força física estaria a ação executora do dano material do delito, e na força moral situar-se-ia a culpabilidade e o dano moral do delito. Essa construção levou ao sistema bipartido do conceito clássico de crime, dividido em aspectos objetivos e subjetivos. A Construção do conceito analítico do delito, no entanto, veio a completar-se com a contribuição decisiva de Beling (1906), com a introdução do elemento tipicidade. Embora a inicialmente confusa e obscura definição desses elementos estruturais, que se depuraram ao longo do tempo, o conceito analítico, predominante, passou a definir o crime como a ação típica, antijurídica e culpável.  ( BITENCOURT apud  CARMIGNANI e BELING, 2003, P. 144).

 

 

            No Brasil, a primeira obra finalista surgiu com João Mestieri, em 1970, onde analisando os crimes contra a vida, fez a divisão entre tipo objetivo e tipo subjetivo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

8 CLASSIFICAÇÃO DAS INFRAÇÕES PENAIS

 

 

8.1 Classificação Tripartida e Bipartida

 

 

            Diversos países, como Alemanha, França e Rússia, se utilizam de uma divisão tripartida na classificação das infrações penais, dividindo-as em crimes, delitos e contravenções, segundo a gravidade que apresentam. Porém a divisão mais usada, inclusive pela legislação penal brasileira, é a bipartida ou dicotômica, que divide as infrações penais  em crimes ou delitos (como sinônimo) e contravenções, que seriam espécies do gênero infração penal. 

            Conforme Bitencourt: 

 

          Ontologicamente não há diferença entre crime e contravenção. As contravenções, que por vezes são chamadas de crimes-anões, são condutas que apresentam menor gravidade em relação aos crimes, por isso sofrem sanções mais brandas. O fundamento da distinção é político-criminal e o critério é simplesmente quantitativo ou extrínseco, com base na sanção assumindo caráter formal. (BITENCOURT, 2003, p. 146).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

9 DA CULPABILIDADE

 

 

            Para o dicionário Rideel, culpabilidade significa: s. f. Qualidade, estado de culpável. Partindo desse entendimento não conseguimos ter uma noção completa deste vocábulo. Passemos a analisar então, a etimologia dessa palavra. Culpabilidade, como a própria palavra já indica, origina-se de culpa, que quer dizer: s. f. 1 Falta contra a lei ou a moral. 2 ato criminoso; delito; crime. 3 ação repreensível; pecado. Analisando-se todos esses entendimentos sobre essa palavra, devemos explicitar sobre qual culpabilidade nos referimos. Sobre a culpabilidade como elemento psicológico (dolo), subjetivo, juízo de censura, ato censurável, ou seja, como o juízo de reprovação que as pessoas fazem de determinado comportamento humano ou a culpabilidade como elemento normativo (culpa) do crime, culpabilidade objetiva, elemento integrante da divisão tripartida do crime, que sem o qual esse não vem a existir. Analisaremos, pois, a seguir, esses dois aspectos da culpabilidade.

 

 

9.1 Teoria Psicológica da Culpabilidade

 

 

            A teoria psicológica da culpabilidade correlaciona-se com o naturalismo-causalista, fundamentando-se ambos no positivismo do século XIX. “Nesses termos, culpabilidade é a responsabilidade do autor pelo ilícito que realizou, ou , em outras palavras, é a relação subjetiva entre o autor e o fato.” (BITENCOURT, 2003, p. 287).

            Nesse entendimento, o dolo e a culpa além de ser as duas únicas espécies de culpabilidade, eram também a sua totalidade, na medida em que esta não apresentava nenhum outro elemento constitutivo. A imputabilidade era o seu único pressuposto, sendo entendida como capacidade de ser culpável. Conforme Bitencourt:

 

 Ora, essa concepção partia da distinção entre a parte exterior do fato punível – objetivo –, que era representada pela tipicidade e antijuridicidade, e sua parte interior, isto é, seus componentes psíquicos – subjetivo – , representada pela culpabilidade. Segundo essa teoria, “culpabilidade é uma ligação de natureza anímica, psíquica, entre o agente e o fato criminoso”, contendo somente elementos anímicos. Em termos bem esquemáticos, culpabilidade era o vínculo psicológico que unia o autor ao resultado produzido. (BITENCOURT, 2003, p.285, 286).

 

            De acordo com a teoria psicológica, em sua originalidade, a culpabilidade só seria afastada em casos de eliminação do vínculo psicológico. Essas causas seriam o “erro”, que eliminava o elemento intelectual, e/ou a “coação”, que cessava o elemento volitivo do dolo, que, para essa teoria, era puramente psicológico.

            A teoria psicológica prevaleceu durante o século XIX, e parte deste, quando cedeu lugar para a teoria normativa ou psicológico-normativa. Conforme Bitencourt:

 

 A necessidade de sistematizar os elementos da construção estrutural do delito determinou o progressivo abandono daquela teoria, que teve destacada sua insuficiência conceitual-dogmática, basicamente, diante da culpa inconsciente, da omissão e das causas de exculpação. (BITENCOURT, 2003, p. 288).

 

 

9.2 Teoria Psicológica - Normativa da Culpabilidade

 

 

            A teoria psicológica-normativa da culpabilidade iniciou-se no contexto cultural de superação do positivismo-naturalista e sua substituição veio por meio da metodologia neokantiana do chamado “conceito neoclássico de delito”. Resumindo o que aconteceu em toda a evolução da teoria normativa da culpabilidade ocorre algo semelhante ao que aconteceu com a teoria do injusto. Conforme Bitencourt:

 

 No injusto, àquela base natural-causalista acrescentou-se a teoria dos valores: ao positivismo do século XIX somou-se simplesmente o neokantismo da primeira metade do século XX. Na culpabilidade, a uma base naturalista-psicológica acrescenta-se também a teoria dos valores, primeiro com Frank, de forma vaga e difusa, posteriormente, com maior clareza, com Goldschmidt e Freudenthal. Com isso, se superpõe na culpabilidade um critério de caráter eticizante e de nítido cunho retributivo. (BITENCOURT, 2003, p. 292).

 

            A partir dessa teoria normativa, dolo e culpa passam a integrar os elementos da culpabilidade, embora não suficientes. Deixando de ser considerados apenas como espécie de culpabilidade, ou como a culpabilidade. “Em outros termos, poderá existir dolo, sem que haja culpabilidade, como ocorre nas causas de exculpação em que a conduta, mesmo dolosa, não é censurável.” (BITENCOURT, 2003, p. 292).

            A teoria psicológico-normativa, enxerga a culpabilidade não mais como um vínculo entre o agente e o fato, mas sim, como algo que se encontra fora do agente, ou seja, essa teoria faz um juízo de valoração a respeito do agente. Conforme Bitencourt:

 

Em vez de o agente ser o portador da culpabilidade, de carregar a culpabilidade em si, no seu psiquismo, ele passa a ser o objeto de um juízo de culpabilidade, que é emitido pela ordem jurídica. Há, então, uma reprovação, uma censura, que recai sobre o sujeito, sobre o agente autor de um fato típico e ilícito, que se condiciona, no entanto, à existência de certos elementos, o primeiro já existente desde o surgimento da culpabilidade, que é a imputabilidade, que, aliás, na teoria psicológica, era vista como um pressuposto da culpabilidade. A imputabilidade continua sendo indispensável na teoria psicológico-normativa, mas como seu elemento; o dolo ou a culpa, que de formas da culpabilidade são transformados em seus elementos, no caso, psicológico-normativo. E, por último, aquele elemento que foi incluído no conceito, na estrutura da culpabilidade, por Freudenthal, que é a exigibilidade de outra conduta, o conhecido “poder agir de outro modo”. Enfim, sintetizando a culpabilidade psicológico-normativa compõe-se dos seguintes elementos: a) imputabilidade; b) elemento psicológico-normativo (dolo ou culpa); c)exigibilidade de conduta conforme ao Direito.

 

Nessa concepção o dolo, que era puramente psicológico, passa a ser também um dolo normativo, o dolus malus, constituído de vontade, previsão e consciência da ilicitude, os dois primeiros elementos psicológicos e o último, normativo. Dessa forma, o dolo passa a constituir-se dos seguintes elementos: a) um elemento intencional, volitivo, a voluntariedade; b) um elemento intelectual, a previsão do fato; c) um elemento normativo, a consciência atual da ilicitude. (BITENCOURT, 2003, p. 292, 293).

 

9.3 Teoria Normativa Pura da Culpabilidade

 

 

            A antijuridicidade se perfaz na relação entre ação e o ordenamento jurídico, expressando a desconformidade da primeira com o segundo, sendo assim, a realização da vontade não corresponde diretamente aos mandamentos da ordem jurídica. Conforme Bitencourt:

 

Em outros termos, a conduta realizada pelo agente não se ajusta aos mandamentos jurídicos, embora pudesse ter evitado essa ação contrária às exigências do dever ser do Direito, pois dele se espera uma motivação concorde com a norma legal. A culpabilidade, por sua vez, não se esgota nessa relação de desconformidade entre ação e ordem jurídica, mas ao contrário, a reprovação pessoal contra o agente do fato fundamenta-se na não-omissão da ação contrária ao Direito ainda e quando podia havê-la omitida.

 

A essência da culpabilidade radica nesse “poder em lugar de...” do agente referentemente à representação de sua vontade antijurídica, e é exatamente aí onde se encontra o fundamento da reprovação pessoal, que se levanta contra o autor por sua conduta contrária ao Direito. (BITENCOURT, 2003, p.298).

 

            Toda culpabilidade é resultante de vontade, ou seja, somente se pode reprovar ao agente, em termos de culpabilidade, naquilo em que ele agir voluntariamente. Segundo Welzel, citado por Bitencourt: “Culpabilidade é a reprovabilidade da configuração da vontade”. (BITENCOURT apud WELZEL, 2003, p.298).

9.4 Elementos da Culpabilidade Normativa Pura

 

 

            De acordo com a concepção finalista, os elementos que integram a culpabilidade são: 1) imputabilidade de conhecimento da ilicitude do fato; 2) possibilidade de conhecimento da ilicitude do fato; 3) exigibilidade de obediência ao direito.

 

 

9.4.1 Imputabilidade

 

 

            De alguma forma, a culpabilidade finalista, em seu conteúdo material, tem como base a capacidade de livre autodeterminação. Segundo Welzel:

 

A culpabilidade é a reprovabilidade do fato antijurídico individual, e o que se reprova é a resolução de vontade antijurídica ao fato individual, (BITENCOURT apud WELZEL, 2003, p.300).

           

            Na orientação finalista, a imputabilidade deixou de ser um pressuposto prévio da culpabilidade e transformou-se em condição central da reprovabilidade. De acordo com Bitencourt:

 

A razão disso assenta-se no fato de que o núcleo da culpabilidade já não se centraliza na vontade defeituosa, mas nas condições de atribuibilidade do injusto e ditas condições aproximam-se da idéia do “poder atuar de outro modo”, conceito sobre o qual Welzel situou a essência da imputabilidade. Assim, sem a imputabilidade entende-se que o sujeito carece de liberdade e de facilidade para comportar-se de outro modo, com o que não é capaz de culpabilidade, sendo, portanto, inculpável. (BITENCOURT, 2003, p.301, 302).

 

 

9.4.2 Possibilidade de conhecimento da ilicitude do fato

 

 

            Para que uma infração possa ser reprovada ao autor, se faz necessário que este conheça ou possa conhecer as circunstâncias que pertencem ao tipo e à ilicitude. “Por isso, ao conhecimento da realização do tipo deve-se acrescentar o conhecimento da antijuridicidade.” (BITENCOURT, 2003, p. 302).

            Conforme Bitencourt: 

 

A corrente tradicional, causalista, ao situar o dolo na culpabilidade, considerava a consciência da antijuridicidade como integrante do dolo. No entanto, na nova concepção, o dolo passa para o injusto como dolo natural (psicológico), excluindo, dessa forma, o conhecimento da proibição, que, na teoria causalista, integrava o chamado dolus malus (dolo normativo). Essa é uma das diferenças mais marcantes que a corrente finalista apresenta em relação à causalista. (BITENCOURT, 2003, p. 302). 

 

            Na orientação finalista, a falta de conhecimento da proibição não possibilita o afastamento do dolo natural, mas exclui a culpabilidade – caso do erro de proibição inescusável. No entanto, em caso de um erro de proibição escusável, a culpabilidade atenua-se, caso não se trate de um erro grosseiro, ou, melhor dito, de um simulacro de erro. Nesse sentido afirma Welzel:

 

Entre erro de tipo e erro de proibição: o erro de tipo é aquele que se dá sobre circunstância objetiva do fato do tipo legal. Aqui se exclui o dolo da realização típica (dolo do tipo), havendo a possibilidade de que o autor seja castigado pelo fato culposo quando para este haja previsão legal. Por sua vez, o erro de proibição é aquele que se dá sobre a antijuricidade do fato, com pleno conhecimento da realização do tipo, (BITENCOURT apud WELZEL, 2003, p. 302).

 

Desse modo, o autor sabe o que faz, mas presupõe erroneamente que estaria permitido. Desconhece a norma jurídica ou não a conhece bem ou supõe, equivocadamente, que concorre uma causa de justificação.

 

 

9.4.3. Exigibilidade de obediência ao Direito

 

 

            Segundo Welzel:

 

Uma vez configuradas a imputabilidade e a possibilidade de conhecimento do injusto, fica caracterizada materialmente a culpabilidade, o que não quer dizer, no entanto, que o ordenamento jurídico-penal tenha de fazer a reprovação de culpabilidade. Em determinadas circunstâncias, poderá renunciar a dita reprovação e, por conseguinte, exculpar e absolver o agente. (BITENCOURT apud WELZEL, 2003, p. 303). 

 

            O simples conhecimento do injusto, não se faz suficiente, para reprovar a resolução de vontade. Isto irá ocorrer efetivamente, quando o autor, numa situação concreta, puder adotar sua decisão de acordo com esse conhecimento. 

            “Um dos elementos mais importantes da reprovabilidade vem as ser exatamente essa possibilidade concreta que tem o autor de determinar-se conforme o sentido em favor de conduta jurídica.” (BITENCOURT, 2003, p. 303).

 

 

9.5. Da Culpabilidade como Predicado do Crime

 

 

            Antigamente o entendimento majoritário era de que a culpabilidade deveria ser tratada como pressuposto da pena, e não como integrante da teoria do delito. Nesse entendimento afirmava Jesus: “A culpabilidade não é requisito do crime, que apresenta duas facetas: fato típico e ilicitude. Ela funciona como condição da resposta penal”. (JESUS, 1995, p. 398). 

            Quando o CP refere-se as causas excludente da antijuridicidade emprega expressões como “não há crime” conforme art. 23, caput, do CP que diz:

 

Art. 23: Não há crime quando o agente pratica o fato:

I – em estado de necessidade

II – em legítima defesa

III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

 

No entanto, quando cuida de causa excludente da culpabilidade usa expressões diferentes: “é isento de pena” conforme arts. 26, caput e 28, § 1º, do CP que rezam respectivamente:

 

Art. 26: é isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

 

Art. 28: não excluem a imputabilidade penal:

 

§ 1º: é isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era ao tempo da ação ou da omissão inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. 

 

            Conforme Jesus:

 

Só é punível o autor da coação ou da ordem (art. 22, do CP, pelo que se entende que “não é punível o autor do fato”). Qual a razão da diferença? Existindo uma causa de exclusão da ilicitude não há crime, pois um fato não pode ser ao mesmo tempo lícito e antijurídico; quando, porém, incide uma causa de exclusão da culpabilidade o crime existe, embora não seja efetivo, não em si mesmo, mas em relação à pessoa do agente declarado não culpável. O crime existe por si mesmo com os requisitos “fato típico” e “ilicitude”, mas para que o crime seja ligado ao agente é necessária a culpabilidade. É por isso que o CP, no art. 23, embora empregue a expressão “não há crime” (as causas de exclusão da antijuridicidade excluem o crime); nos arts. 26 caput, e 28, § 1º, emprega a expressão “é isento de pena” significa “não é culpável”, subentende-se que o código considera o crime mesmo quando não existe a culpabilidade em face do erro de proibição (art. 21, caput, 2º parte). É como se o código dissesse: “não é culpável quem comete o crime”. Assim, o “legislador penal separou, de forma bem patente, a ilicitude, a parte objecti, da culpabilidade, a antijuridicidade objetiva da relação subjetiva com o fato, do juízo de valor sobre a culpa em sentido lato. Entende assim o código pátrio que havendo fato típico e antijurídico, configurado se encontra o ilícito penal. E mais: a receptação pressupõe receber, adquirir ou ocultar coisa produto de crime (art. 180, caput, do CP). Suponha-se que o agente haja receptado coisa furtada por sujeito inimputável, nos termos do art. 26, caput. Ele responde por receptação. Ora, o agente inimputável, nos termos do art. 26, caput, não é culpável: o fato típico e ilícito não apresenta a culpabilidade do agente. Então a coisa não seria produto de crime se a culpabilidade fosse requisito ou elemento do delito. Mas o art. 180, § 2º, diz que “receptação é punível, ainda que isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa”. Assim, o pressuposto da receptação é um fato em que não se exige a culpabilidade do agente. Em suma: para o legislador brasileiro existe crime sem culpabilidade. (JESUS, 1995, p. 405).

 

            Posto isso, entendi-se, que quando o nosso Código Penal entrou em vigor, a culpabilidade era tratada como pressuposto da pena e não requisito ou elemento do crime.

            Com a chegada e propagação das idéias do finalismo welzeliano, não só a tipicidade e a antijuridicidade, mas também a culpabilidade passou a ser vista como predicado de um substantivo, que é a conduta humana definida como crime.

            Segundo afirmação de Ariel Dotti: 

 

O crime como ação tipicamente antijurídica é causa da resposta penal como efeito. A sanção será imposta somente quando for possível e positivo o juízo de reprovação que é uma decisão sobre um comportamento passado, ou seja, um posterius destacado do fato antecedente (BITENCOURT apud DOTTI, 2003, p. 278). 

 

Conforme Bitencourt:

 

Essa afirmação de Dotti leva-nos, inevitavelmente, a fazer algumas reflexões: a) seria possível a imposição de sanção a uma ação típica, que não fosse antijurídica? b) poder-se-ia sancionar uma ação antijurídica que não se adequasse a uma descrição típica? c) a sanção penal (penas e medidas) não é uma conseqüência jurídica do crime?  (BITENCOURT, 2003, p. 278).

 

            De acordo com Bitencourt:

 

          Seguindo nessa reflexão, perguntamos: a tipicidade e a antijuridicidade não seriam também pressupostos da pena? Ora, na medida em que a sanção penal é conseqüência jurídica do crime, este, com todos os seus elementos, é pressuposto daquela. Assim, não somente a culpabilidade, mas igualmente a tipicidade e a antijuridicidade, são pressupostos da pena, que é sua conseqüência. (BITENCOURT, 2003, p. 279).

 

            Welzel, a seu tempo, preocupado com questões semânticas, pela forma variada com que penalistas referiam-se à culpabilidade normativa, frisou: “A essência da culpabilidade é a reprovabilidade”. (BITENCOURT apud WELZEL, 2003a, pag.279).

Destacou ainda que muitas vezes, também se denomina a reprovabilidade, reprovação da culpabilidade e a culpabilidade juízo de culpabilidade. Isto não é nocivo, prossegue Welzel:

 

Se sempre se tiver presente o caráter metafórico destas expressões e se lembrar que a culpabilidade é uma qualidade negativa da própria ação do autor e não está localizada nas cabeças das outras pessoas que julgam a ação, (BITENCOURT apud WELZEL, 2003, p.279).

 

            Na verdade, a expressão “juízo de censura” utilizada como sinônimo de “culpabilidade” tem levado a equívocos, justificando, inclusive, a preocupação de Welzel, conforme acabamos de citar. Conforme Bitencourt:

 

É preciso destacar, com efeito, que censurável é a conduta do agente, e significa característica negativa da ação do agente perante a ordem jurídica. E “juízo de censura” - estritamente falando – é a avaliação que se faz da conduta do agente, concebendo-a como censurável ou incensurável. Essa avaliação sim – juízo de censura – é feita pelo aplicador da lei, pelo julgador da ação; por essa razão se diz que está na cabeça do juiz. Por tudo isso, deve-se evitar o uso metafórico de juízo de censura como se fosse sinônimo de censurabilidade, que, constituindo a essência da culpabilidade, continua um atributo do crime. O juízo de censura está para a culpabilidade assim como o juízo de antijuridicidade está para a antijuridicidade. Mas ninguém afirma que a antijuridicidade está na cabeça do juiz. (BITENCOURT, 2003, p. 281).

 

            Rosenfeld, em sua crítica contundente à teoria normativa, afirmou: “A culpabilidade de um homem não pode residir na cabeça dos outros” (BITENCOURT apud ROSENFELDE, 2003, p.280).

Mezger, respondendo a essa objeção de Rosenfeld, reconhece que:

 

O juízo pelo qual se afirma que o autor de uma ação típica e antijurídica praticou-a culpavelmente refere-se, na verdade, a uma determinada situação fática da culpabilidade, que existe no sujeito, mas ao mesmo tempo esta situação considerando-a como um processo reprovável ao agente. Somente através desse juízo valorativo de quem julga se eleva a realidade de fato psicológica ao conceito de culpabilidade, (BITENCOURT apud MEZGER, 2003, p.280).

 

Por derradeiro, para não deixar dúvida sobre a natureza e localização da culpabilidade, defendida por Welzel, invocamos suas próprias palavras sobre sua concepção de delito:

 

O conceito da culpabilidade acrescenta ao da ação antijurídica – tanto de uma ação dolosa quanto de uma não dolosa – um novo elemento, que é o que a converte em delito, (BITENCOURT apud WELZEL, 2003, p.281)

 

Essa obra deixa bem claro que, se da análise dos fatos se verificar que a ação não é típica, será perca de tempo verificar se é antijurídica, e muito menos se é culpável. “Ora, é de uma clareza, uma ação típica e antijurídica somente se converte em crime com o acréscimo da culpabilidade.” (BITENCOURT, 2003, p. 281).

            Segundo Bitencourt:

 

Finalmente, também não impressiona o argumento de que o Código Penal brasileiro admite a punibilidade da receptação, mesmo quando desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa. E, quando argumentam que, como a receptação pressupõe que o objeto receptado seja produto de crime, o legislador de 1940 estaria admitindo crime sem culpabilidade. Convém registrar que em 1942, quando nosso Código entrou em vigor, ainda não se haviam propagado as idéias do finalismo Welzeliano, que apenas se iniciava. (BITENCOURT, 2003, p. 281).

 

           

9.6 Imputabilidade

 

 

            Para definirmos a inimputabilidade penal é preciso que tenhamos o conhecimento do que vem ser imputabilidade, pois, esta é a origem etimológica da primeira.

            Confome Carrara:

 

A imputabilidade é o juízo que fazemos de um fato futuro, previsto como meramente possível; a imputação é o juízo de um fato ocorrido. A primeira é a contemplação de uma idéia; a segunda é o exame de um fato concreto. Lá estamos diante de um conceito puro; aqui estamos na presença de uma realidade, (BITENCOURT apud CARRARA, 2003, p. 305).

 

            “Imputabilidade é a capacidade de culpabilidade, é a aptidão para ser culpável. Imputabilidade não se confunde com responsabilidade, que é o princípio segundo o qual a pessoa dotada de capacidade de culpabilidade (imputável) deve responder por suas ações.” (BITENCOURT, 2003, p.306).

            O Código Penal brasileiro não define a imputabilidade penal, a não ser por exclusão, ao estabelecer os motivos que a afastam, definindo, a inimputabilidade de quem, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (art. 26 do CP).

            A doutrina reconhece três sistemas definidores dos critérios que fixam a inimputabilidade: o biológico, o psicológico e o biopsicológico. Mas, aqui, acrescentamos mais um, qual seja, a valorização da dignidade humana dos menores de 18 (dezoito) anos. O sistema biológico condiciona a responsabilidade á saúde mental. O método psicológico não observa se há uma perturbação mental mórbida: apenas irá declarar a irresponsabilidade do agente se, ao tempo do crime, estava abolida neste, seja qual for a causa, a faculdade de apreciar a criminalidade do fato (momento intelectual) e de determinar-se de acordo com essa apreciação (momento volitivo). O método biopsicológico é hibrido, pois, sua formação se dá por meio da reunião dos dois primeiros: a responsabilidade só é excluída, se o agente, em razão da enfermidade ou retardamento mental, era, no momento da ação, incapaz de entendimento ético jurídico e autodeterminação e o método da dignidade humana dos menores de 18 (dezoito) anos consistiu, como já dissemos anteriormente, numa opção política do constituinte originário no sentido de reconhecer e valorizar dentro do Estado Democrático de Direito a valorização da adolescência por tratar-se de uma fase especial do desenvolvimento do ser humano.

           

 

9.7 Excludentes de Culpabilidade

 

 

9.7.1 Inimputáveis

 

 

            A imputabilidade estará presente, toda vez que o agente apresentar condições de normalidade psíquica e maturidade psíquica. Conforme Bitencourt:

 

A falta de sanidade mental ou a falta de maturidade mental (ser humano em desenvolvimento), que é a hipótese da menoridade 18 (dezoito) anos, podem levar ao reconhecimento da inimputabilidade, pela incapacidade de culpabilidade. Podem levar, dizemos, porque a ausência dessa sanidade mental ou dessa maturidade mental constitui um dos aspectos caracterizadores da inimputabilidade. Embora a imaturidade mental, isoladamente, esgote o conceito de inimputabilidade, porque, por presunção legal, o menor de 18 (dezoito) anos é mentalmente imaturo e, consequentemente, incapaz de culpabilidade, ou, na velha terminologia, irresponsável penalmente. (BITENCOURT, 2003, p. 307). 

 

            Na hipótese de sanidade mental, a questão é mais complexa, porque, além de não ser mentalmente são, ou não possuir desenvolvimento mental completo,  tendo sido gerado por doença ou perturbação mental, é necessária a conseqüência desse distúrbio. O que se exige, na verdade é, que tal distúrbio – doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado – produza uma conseqüência determinada, qual seja, a falta de capacidade de discernir entre o certo e o errado, comparando seus atos com a ordem normativa. Nesse sentido afirma Bitencourt:

 

O agente é incapaz de avaliar o que faz, no momento do fato, ou então, em razão dessas anormalidades psíquicas, é incapaz de autodeterminar-se no momento do fato, (BITENCOURT, 2003, p.307)

 

            Então em caso de anormalidade psíquica, devem estar reunidos dois aspectos essenciais: um aspecto biológico e outro psicológico.

            Segundo Bitencourt:

 

Para o reconhecimento da existência de incapacidade é suficiente que o agente não tenha uma das duas capacidades: de entendimento ou de autodeterminação. É evidente que, se falta a primeira, ou seja, não tem a capacidade de avaliar os próprios atos, de valorar sua conduta, positiva ou negativamente, em cotejo com a ordem jurídica, o agente não sabe e não pode saber a natureza valorativa do ato que pratica. Faltando essa capacidade, logicamente também não tem a de autodeterminar-se, porque a capacidade de autocontrole pressupõe a capacidade de entendimento. (BITENCOURT, 2003, p.308).  

 

            Outra três causas biológicas, além da menoridade, podem levar à inimputabilidade do agente: doença mental, desenvolvimento mental incompleto e desenvolvimento mental retardado.

 

 

9.7.2 Menoridade

 

            Diz o art. 27 do CP:

 

Art. 27: os menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial.

 

            A imputabilidade, por presunção legal, inicia-se aos dezoito anos. Razões de política criminal e para dar um parâmetro ao direito, o legislador brasileiro optou pela presunção absoluta de inimputabilidade do menor de dezoito anos. Aliás, a Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, que adotava essa orientação, justificava afirmando:

 

Os que preconizam a redução do limite, sob a justificativa da criminalidade crescente, que a cada dia recruta maior número de menores, não consideram a circunstância de que o menor, ser ainda incompleto, é naturalmente anti-social na medida em que não é socializado ou instruído. O reajustamento do processo de formação do caráter deve ser cometido à educação, não à pena criminal. (BITENCOURT, 2003, p. 308).

 

            Sendo assim, os menores de dezoito anos, autores de atos infracionais, terão suas responsabilidades reguladas pelo ECA, que prevê as medidas adequadas à gravidade dos fatos e à idade do menor infrator (Lei nº. 8.69/90).

            No Brasil, esta em pauta a necessidade ou conveniência de estabelecer a responsabilidade penal aos dezesseis anos, acrescentando-se aos argumentos conhecidos o fato de, a partir da constituição de 1988, ser possível a esse menor alistar-se eleitoralmente. Como se o voto no Brasil fosse tão importante a ponto de compará-lo a imputação penal. Segundo Bitencourt:

 

Convém lembrar, para reflexão, que o Código Penal da Espanha, que entrou em vigor em maio de 1996 (Ley Orgánica n. 10/95), constituindo-se, portanto, no Código Penal europeu mais moderno, elevou a idade do menor, para atribuir-lhe responsabilidade penal, de dezesseis para dezoito anos (art. 19). Portanto, não podemos adotar a idéia de que só o Brasil, por ser um país de terceiro mundo, tem a imputabilidade penal estabelecida em 18 (dezoito) anos. Muitos países da Europa e também outros de primeiro mundo adotam esse critério, ou mesmo, uma idade maior para a caracterização da imputabilidade. (BITENCOURT, 2003, p. 309).

 

            Afirma Bitencourt:

 

          Em primeiro lugar, é indispensável que se afaste qualquer possibilidade de referidos menores virem a cumprir a sanção penal juntamente com os delinqüente adultos. Em segundo lugar, faz-se necessário que as sanções penais sejam executadas em estabelecimentos especiais, onde o tratamento ressocializador, efetivamente individualizado, fique sob a responsabilidade de técnicos especializados, para que se possa realmente propiciar ao menor infrator sua educação, além de prepará-lo para o mercado de trabalho. (BITENCOURT, 2003, p.309).

9.7.3 Coação irresistível

 

 

             A coação irresistível, que afasta a culpabilidade, é a coação moral, a famosa ameaça, uma vez que a coação física exclui a própria ação, não havendo, conseqüentemente, conduta típica. Conforme Bitencourt:

 

Coação irresistível é tudo o que pressiona a vontade impondo determinado comportamento, eliminando ou reduzindo o poder de escolha. A coação física, vis absoluta, por sua vez, exclui a ação por ausência de vontade. Nesse caso, o executor é considerado apenas um instrumento de realização da vontade do coator, que, na realidade é o autor mediato. (BITENCOURT, 2003, p. 314). 

 

            Existe vontade na coação moral, embora seja viciada. Sendo a ameaça irresistível, não lhe é exigível que se oponha a essa ameaça para se manter em conformidade com o Direito.

            De acordo com Bitencourt:

 

          A irresistibilidade da coação deve ser medida pela gravidade do mal ameaçado. Essa gravidade deve relacionar-se com a natureza do mal e, evidentemente, com o poder do coator em produzí-lo. Na verdade, não pode ser algo que independa da vontade do coator, alguma coisa que dependa de um fator aleatório, fora da disponibilidade daquele. Nesse caso, deixa de ser grave o mal ameaçado, deixa de ser irresistível a coação, porque se trata de uma ameaça cuja realização encontra-se fora da disponibilidade do coator. Ameaças vagas e imprecisas não podem ser consideradas suficientemente graves para configurar coação irresistível e justificar a isenção de pena. Somente o mal iminentemente grave tem o condão de caracterizar a coação irresistível prevista pelo art. 22 do CP. (BITENCOURT, 2003, p. 315).

 

            Em caso de irresistibilidade, a solução legal cabível é considerar punível, exclusivamente, o coator, que, no caso, é o autor mediato, uma vez que o executor é mero utensílio, agindo sem culpa. Não há que se falar em concurso de pessoas, mas, simples autoria mediata: o coator é o único responsável pelo fato, do qual tinha o domínio final. 

 

 

9.7.4Obediência hierárquica

 

 

            A obediência hierárquica, previs na segunda parte do art. 22 do CP, requer uma relação de direito público. A hierarquia na esfera privada, não é abrangida por esse dispositivo.

            Devido a essa subordinação hierárquica, o subordinado cumpre ordem do superior, desde que essa ordem não seja manifestamente ilegal, podendo, no entanto, ser apenas ilegal. Conforme Bitencourt:

 

Porque, se a ordem for legal, o problema deixa de ser de culpabilidade, podendo caracterizar causa de exclusão de ilicitude. Se o agente cumprir ordem legal de superior hierárquico, estará no exercício de estrito cumprimento de dever legal. O cumprimento de ordem legal não apresenta nenhuma conotação de ilicitude, ainda que configure alguma conduta típica; ao contrário, caracteriza a sua exclusão art. 23, III do CP. (BITENCOURT, 2003, p. 316).

 

            A ordem deve ser ilegal, mas não manifestamente ilegal, não flagrantemente ilegal. Conforme Bitencourt:

 

Quando a ordem for ilegal, mas não manifestamente, o subordinado que a cumpre não agirá com culpabilidade, por ter avaliado incorretamente a ordem recebida, incorrendo numa espécie de erro de proibição. Agora, quando cumprir ordem manifestamente ilegal tanto o superior hierárquico quanto o subordinado são puníveis. (BITENCOURT, 2003, p. 316). 

 

            Enfim, essas são as duas últimas situações que excluem a culpabilidade, em razão da inexigibilidade de comportamento diverso, previstas pelo art. 22 do CP, que diz:

 

Art. 22: Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

10 A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NÃO REDUZIRIA A VIOLÊNCIA!

 

 

            A redução da maioridade penal para 16 (dezesseis) anos não seria um indicador de redução da violência no Brasil. Isso porque, a participação dos menores de 18 (dezoito) anos nos crimes de maior potencial ofensivo é baixa. Para se ter uma idéia da pequena participação dos menores de idade nos crimes mais graves, segundo Bianchini e Gomes (2007), a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo revelou que, de janeiro a outubro de 2003, os menores participarão de apenas 1% (um por cento) dos homicídios dolosos; 1,5% (um vírgula cinco por cento) dos roubos e 2,6% (dois vírgula seis por cento) dos latrocínios. 

            Esses dados provam que maioria a dos crimes, considerados de maior potencial ofensivo são praticados por adultos, cidadãos com mais de 18 (dezoito) anos de idade. 

            Surpreendentemente em uma pesquisa realizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), segundo Dantas (2007), ficou demonstrado que mais de 60% (sessenta por cento) dos juízes são favoráveis à redução da maioridade penal. Ora, é imperioso pensar que aqueles que aplicam as leis nesse país, em sua maioria, são favoráveis a redução da maioridade penal, como se essa mudança na legislação, caso fosse possível, pudesse trazer algum benefício a sociedade.

            Dizer que diante da atual “crise” social por qual passamos, a redução da maioridade penal se torna inevitável devido a dificuldade ou a impossibilidade que tem o atual Estado Brasileiro de levar a todos os seus cidadãos os direitos sociais garantidos pela CR/88, é darmos aos menores infratores a condição de vítimas e ao Estado a de réu, pois, a falta de educação, trabalho, lazer e moradia são fatores que notadamente elevam os índices da criminalidade.

            E preciso que a sociedade brasileira repense o que realmente será eficaz para ela. Porque segundo dados do instituto de pesquisa Datafolha, divulgados pelo jornal Folha de São Paulo em 13.08.06, 84% (oitenta e quatro por cento) da população defendiam a redução da maioridade penal. Ora, a maioria das pessoas influenciadas pela grande mídia, pensam que a redução da maioridade penal reduziria os índices de violência. A sociedade brasileira deve ter em mente que a simples redução da maioridade penal não traria nenhum benefício para ela, pelo contrário, só traria futuros problemas, pois, estaríamos trancafiando um ser humano em desenvolvimento que se tratado adequadamente teria todas as possibilidades de ressocializar-se, juntamente com bandidos de alta periculosidade que influenciariam ou forçariam esses menores a estarem praticando, cada vez mais, ações delituosas. Fazer com que a sociedade brasileira pense de forma contrária a redução da maioridade penal, não é querer fazer, com que a mesma “passe a mão na cabeça” do menor infrator, e sim, fazer com que esta enxergue que tentar ressocializar um jovem infrator, com toda perspectiva de futuro, é muito mais fácil do que tentar ressocializar um sujeito que passou 5 ou 10 anos dentro da prisão, aprendendo todas as artimanhas do crime, e a partir daí, enxergando sobre o seu ponto de vista caótico, que o crime no Brasil é algo recompensador. 

            É claro que as ações delituosas cometidas por menores de 18 (dezoito) anos devem ser punidas, mas, essa punição deve se dar respeitando-se o princípio da isonomia, onde devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.

            Eventualmente mudanças na CR/88, no que diz respeito à idade da imputabilidade penal, caso fosse possível, seria caracterizada como um direito penal emergencial e simbólico. Pouca ou nenhuma eficácia prática apresentaria.

            Sendo assim, fica-se sabendo desde logo, que a redução da maioridade penal não diminuirá os índices de violência, cuja prática quase sempre tem como protagonistas maiores de 18 (dezoito) anos.          

            Para reduzirmos os índices de violência nesse país é preciso pensar em soluções que venham a resolver as causas dessa, e não apenas em idéias que possam resolver problemas imediatos. É preciso atacarmos o cerne da violência e não apenas os seus efeitos, pois enquanto existir a gigantesca desproporção social e cultural nesse país, esta continuará nos aterrorizando.

            E para acabarmos com as causas da violência, é preciso que este país respeite os seus habitantes enquanto cidadãos detentores de direitos e deveres e, que faça valer todas as normas da CR/88, investindo-se maciçamente em educação, saúde, emprego, lazer, pois só assim, estaremos atacando as causas da violência e não apenas os seus efeitos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

11 A DESVIRTUAÇÃO DO DIREITO PENAL E O PROBLEMA DO MENOR INFRATOR

 

 

            A alteração da legislação penal em momentos de crise popular e midiática aguda tende a não atender os fins legítimos do direito penal (proteção fragmentária e subsidiária de bens jurídicos relevantes). Ao contrário, retrata uma norma à qual se atribui um papel pervertido, porque relega a eficaz proteção de bens jurídicos em prol de fins psicossociais alheios. Ou seja, não visa dissuadir o potencial infrator da prática de crimes, e sim acalmar o cidadão.

            Um direito penal com tais características carece de legitimidade, porquanto manipula a opinião pública, que reage com rigor desproporcional a delitos determinados e seus autores, mediante a introdução, no ordenamento jurídico, de disposições excepcionais, mesmo diante da impossibilidade de seu cumprimento, o que mina o poder intimidador da norma.

            O uso desvirtuado do direito penal vem se acentuando nos últimos anos. Retratadas como um “produto espetacular” pela mídia, que as mercadeja em autênticos melodramas diários, a criminalidade e a persecução penal banalizaram-se de tal modo que, também, os políticos delas se utilizam em suas campanhas e discursos no Parlamento, apenas para lembrar os efeitos aparentes.

            No imaginário popular brasileiro difundiu-se, equivocadamente, a idéia de que o menor não se sujeita a nenhuma medida repressiva. Isso não é correto. O ECA em seu art. 112 prevê várias providências socioeducativas contra o menor infrator, dentre elas a internação, que nada mais é do que a privação da liberdade do menor, sujeita aos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Assim dispõe o art. 112 do ECA:

 

Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:

I – advertência;

II – obrigação de reparar o dano;

III – prestação de serviços à comunidade;

IV – liberdade assistida;

V – internação em regime de semiliberdade;

VI – internação em estabelecimento educacional;

VII – qualquer uma das prevista no art. 101, I a VI

 

            Não obstante essas medidas socioeducativas previstas pelo ECA em seu art. 112, o mesmo deveria flexionar o período de internação dos menores de acordo com a gravidade do ato infracional por ele cometido. Assim entendem Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini:

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente não é razoável quando fixa um único limite máximo de internação (três anos), como regra geral e inflexível válida para todas as situações. (BIANCHINI; GOMES, 2007, p. 32).

 

 

            A flexibilização do tempo de internação do menor infrator de acordo com a gravidade do delito cometido, não estaria desrespeitando os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, no sentido de manter a imputabilidade penal em 18 (dezoito) anos, tendência que se consolida no mundo democrático.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

12 CONCLUSÃO

 

 

            Enquanto muitos países de primeiro mundo estão pensando em aumentar a maioridade penal, como é o caso da Espanha que tem a mais nova e moderna legislação penal da Europa, e que passou a maioridade penal de 16 (dezesseis) para 18 (dezoito) anos, o Brasil pensa em reduzir a maioridade penal, como se os atos infracionais cometidos pelos menores infratores fossem um dos pilares da violência nesse país.

            Nos últimos tempos a imprensa tem noticiado crimes de comoção nacional envolvendo a participação de menores de idade, como foi o caso do menino João Hélio Fernandes, de seis anos de idade, no início de fevereiro de 2007. Casos como esse, não deveriam conduzir a perigoso e eletrizante clamor popular e midiático, que emocional e desesperadamente propugna pela adoção de medidas radicais e emergenciais, como se fosse imprevisível e inesperada a violência juvenil. Um exemplo clássico de legislação surgida nesses momentos de clamor popular é a lei de crimes hediondos, que apenas agravou a pena para determinados crimes, mas, não reduziu em nada os índices de violência.

            Se o nosso ordenamento jurídico englobasse a possibilidade de redução da maioridade penal, e essa medida fosse aplicada a partir de uma nova norma, estaríamos apenas agravando as medidas aplicáveis aos que hoje são considerados menores de idade. E aí estaríamos criando uma norma de efeitos análogos à lei de crimes hediondos, ou seja, agravam-se as penas, mas os índices de violência continuam aumentando. Não podemos aderir a teses simplistas, como a mera redução da maioridade penal ou a tolerância com respostas que não encontram guarida no ordenamento constitucional.

            Com o advento da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, subscrita por mais de 180 países (incluindo o Brasil), não há dúvida de que se transformou em consenso mundial a idade de 18 anos para a imputabilidade penal. Mas isso não pode ser interpretado, simplista e apressadamente, no sentido de que o menor não deva ser responsabilizado por seus atos infracionais. O menor deve ser responsabilizado por seus atos sim, mas, levando-se em consta a sua condição biológica de desenvolvimento e, sobretudo, os princípios da dignidade da pessoa humana previsto pela CR/88, e para isso existe o ECA no Brasil.

            A maioridade penal fixada em 18 (dezoito) anos, foi uma escolha política do constituinte originário, não cabendo ao poder reformador alterá-la. Essa escolha foi baseada em diretrizes internacionais, que já apontavam a idade penal mínima em dezoito anos e, também para proteção e integração do princípio da dignidade da pessoa humana em relação as crianças e adolescente desse país. É claro que essa escolha não foi ao bel prazer do constituinte originário, levou-se em conta, além do critério biológico o princípio da dignidade da pessoa humana. 

            Fica inviabilizada a redução da maioridade penal nesse país, por tratar-se de cláusula pétrea, inalterável, prevista pelo art. 60, § 4º da CR/88 e, também pelo fato, da conduta praticada pelo menor infrator não se encaixar no modelo tripartido do delito, adotado pelo CP, sendo assim, o menor praticaria uma conduta típica, antijurídica, mas não culpável.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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