“Do ponto de vista ontológico os autores são angolanos no sentido de que são objetos e sujeitos da experiência angolana.”
 (Luis Kandjimbo)

A partir da leitura do conto “Mestre Tamoda” de Uanhenga Xitu, autor africano, discutiremos sob uma perspectiva política-ideológica levando em conta a interpenetração entre as culturas, as conseqüências da colonização européia em determinados espaços africanos e, especificamente, em Angola. Desse modo, será evidenciado no trabalho um aspecto bastante comum a esses países colonizados: a imposição da língua portuguesa como língua oficial. Além de tentarmos explicitar por meio do conto, acima mencionado, como a língua do invasor pode ser usada contra ele próprio.

O autor Agostinho André Mendes de Carvalho é o nome em quimbundo de Uanhenga Xitu. Nasceu no dia 29 de Agosto de 1924 em Calomboloca, Icolo e Bengo. Fez os estudos primários e secundários e o curso de enfermagem em Luanda, fazendo, também, estudos em Ciências Políticas na Alemanha. Em 1959 foi preso e foi na cadeia aconselhado por amigos de prisão como Antonio Cardoso e Antonio Jacinto que começou a escrever os seus contos tentando, assim, delinear uma literatura africana.

Conhecida como engajada esse tipo de literatura buscava denunciar as atrocidades sofridas pelo povo africano retratando, desse modo, o período colonial. Convém ressaltar que a literatura africana só começa a circular depois de 1975 quando Angola se torna uma nação independente. Por isso, antes de adentrarmos no universo lingüístico é necessário afirmar com esse trabalho que o conto é um dos gêneros mais antigos que se pode encontrar nas literaturas orais dos povos angolanos.

O conto “Mestre Tamoda” é, portanto, um texto literário africano e que apesar de fazer parte do mundo ficcional evidencia fatos reais como a imposição cultural sofrida em Angola pela força de um colonialismo português que conteve durante muito tempo a compreensão da língua quimbundo como própria ao universo textual local.  

Apesar disso, é perceptível no conto o uso concomitante do quimbundo e do português. Enquanto aquele se restringia ao emprego nas sanzalas, este era empregado em situações formais como na escola, no médico e em usos burocráticos.

Partindo da colonização portuguesa, visto que para entendermos o processo de constituição de qualquer língua, é necessário vislumbrar os aspectos históricos, políticos e sociais que formaram as nações, vemos que com a construção do império português de ultramar, a língua portuguesa faz-se presente em várias regiões da Ásia, África e América, sofrendo influências locais.

A língua portuguesa tornou-se um idioma de supremacia nos países colonizados como Angola devido a fatores diversos que abrangem o campo extralingüístico e intralingüístico comuns a todo processo cultural. Isso ocorreu, também, em virtude do poderio político-econômico de Portugal, bem como da cultura e língua que se encontravam num patamar bastante avançado. É preciso entender, então, que a imposição de uma língua implica imposição de valores, costumes, enfim de toda uma cultura.  

Desse modo,

A colonização lingüística resulta de um processo histórico de encontro entre pelo menos dois imaginários lingüísticos constitutivos de povos culturalmente distintos, línguas com memórias, histórias e políticas de sentidos desiguais, em condições de produção tais que uma dessas línguas  − chamada de língua colonizadora [portuguesa]    visa impor-se sobre a outra, colonizada [africana].  (www.labeurb.unicamp.br/elb/historia_nocoes/elb.htm)

Levando em consideração que a introdução do português nos países africanos e americanos foi por via da imposição é possível compreender os resultados drásticos para as sociedades que recebeu essa língua. Uma das conseqüências visíveis é a aculturação que as fragmenta, uma vez que o processo de aculturação é a

fusão de duas culturas diferentes que, entrando em contato contínuo, originam mudanças nos padrões da cultura de ambos os grupos. Pode abranger numerosos traços culturais, apesar de, na troca recíproca entre as duas culturas, um grupo dar mais e receber menos. Dos contatos íntimos e contínuos entre culturas e sociedades diferentes resulta um intercâmbio de elementos culturais. (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 65).

Além disso, percebe-se que o contato entre culturas diferentes pode ocasionar a perda de identidades lingüísticas e, conseqüentemente, de suas raízes, apesar de ser visto no conto que não há uma perda total, pois Tamoda não consegue se desprender da cultura africana permitindo, assim, uma mescla entre o falar português e o falar africano como exemplificado a seguir:

Eu já trabalhei como criado do Doutor Desembargador, de generais e coronéis, de médicos de grande fama no Hospital Central de Luanda, contínuo de “eminêncio”, advogados, este fintilho, mequetrefe, basbaque, cavalgadura do cipaio, ximba de merda, kabujanganga, sundéifulo a pensar que sou da igualagem por quê?... (XITU, 1984, p. 20)

Nota-se na fala acima o sincretismo cultural e a tentativa de superioridade da personagem Tamoda sob os demais personagens. Essa superioridade é de certa forma um instrumento de defesa, refletindo, assim, a estratégia do povo colonizado, pois este precisava aprender a língua do colonizador para conhecer o mundo imposto.

Percebe-se, desse modo, que Tamoda faz uso de um vocabulário rebuscado com o intuito de impressionar os seus ouvintes. Apesar de não agradar o público mais velho chama a atenção da juventude e das crianças tornando-se bastante popular. Diante de tantas inovações como a criatividade lexical, começa a incomodar as pessoas que estão ao seu redor principalmente o administrador colonial. Vale ressaltar que o português utilizado pela personagem é diferente da modalidade ensinada na escola, por isso Tamoda começa a aborrecer as autoridades e é obrigado a não ensinar a língua que aprendera e que pretendia difundir entre seu povo.

Com essa narrativa de Uanhenga Xitu é possível perceber que o português por ser uma língua já sistematizada, ou seja, por possuir um sistema sintático, morfológico, fonético completo e padronizado consegue se autodefinir e se impor em Angola, enquanto o quimbundo por possuir somente a modalidade oral deixa marcas importantes, embora não consiga a sistematização de uma escrita.

Esse processo de imposição de uma língua também é uma realidade nossa, pois com a chegada dos portugueses, aqui no Brasil, foi implantado o idioma europeu mesmo já existindo um outro sistema lingüístico como os falares indígenas. A nossa língua mais tarde foi enriquecida com os falares africanos trazidos pelos negro-escravizados em virtude do tráfico negreiro.

Faz-se necessário abordar, ainda, que, com a colonização há um encontro da língua de colonização com outras e ao mesmo tempo um “desencontro” dessa língua colonizadora com ela mesma. Parece um tanto complexa tal afirmação, mas é a real situação das línguas, uma vez que a língua portuguesa suplantou a africana sofrendo alterações singulares e necessárias ao desenvolvimento da cultura angolana.  Ainda, com relação à colonização lingüística vemos que esta

supõe o estabelecimento de políticas lingüísticas explícitas como caminho para manter e impor a comunicação com base na língua de colonização.  Delimitando os espaços e as funções de cada língua, a política lingüística dá visibilidade à já pressuposta hierarquização lingüística e, como decorrência dessa organização hierárquica entre as línguas e os sujeitos que as empregam, seleciona quem tem direito à voz e quem deve ser silenciado.

(www.labeurb.unicamp.br/elb/historia_nocoes/elb.htm)

Nessa perspectiva fica claro através do conto, que coube aos africanos, o silêncio, enquanto aos portugueses a voz de dominação que se fez presente durante todo o período colonial e que ainda ressurge nos tempos atuais. Essa situação era muito comum em espaços colonizados, pois o poder da língua dominadora funciona a partir de um princípio ativo e totalitário.

Percorrendo, ainda, as entrelinhas da narrativa é possível afirmar que, a língua do invasor pode ser usada contra ele próprio basta que nos lembremos da passagem em que Tamoda compara suas palavras para os administrados a uma arma: “foi quando lhe mandei quatro putos mais fundos que saíam como fogo de nzagi tratá-tátátátátá.” (XITU, 1984, p. 23)

Diante de tudo o que foi visto, é fato comprovável que a imposição de um povo sobre outro se dá pela imposição da língua e que, apesar do português ter prevalecido como língua oficial em algumas regiões como em Angola, os falares africanos deram e dão uma contribuição notável à sua constituição e ao seu alargamento.

Referências:

Colonização-Lingüística. In: Conceitos lingüísticos. Disponível em: <http:// www.labeurb.unicamp.br/elb/historia_nocoes/elb.htm>. Acesso em: 16 maio 2006.

KANDJIMBO, Luis. Para uma breve história da ficção narrativa angolana nos últimos cinqüenta anos. In: Revista de Filologia Românica. Anejos ISSN: 0212-999X. 2001, 11: 161-184.

MARCONI, Marina de Andrade; PRESOTTO, Zélia Maria Neves. Antropologia: uma introdução. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

XITU, Uanhenga. Mestre Tamoda e Kahitu. São Paulo: Ática, 1984.