INTRODUÇÃO

            Desde o início da história humana, sempre houve uma relação de superioridade de adultos em relação a crianças e adolescentes. Através dos tempos, a violência contra as crianças e adolescentes impera, chegando, em certas épocas históricas, a não serem reconhecidos como sujeitos com direitos.

            Nos dias atuais a violência não recuou. No Brasil está em constante crescimento. A cidade de Fortaleza é líder em violência contra crianças e adolescentes, chegando a registrar um aumento de 119,5% nos números de homicídios contra crianças e adolescentes de 0 a 19 anos nos últimos dez anos, segundo dados do Mapa da Violência 2010 - Anatomia dos Homicídios no Brasil. A violência sexual praticada contra vítimas dessa faixa etária acompanha esse crescimento (WAISELFISZ, 2010).

Ao se observar as diferentes formas de se conceber a criança no decorrer da história e a evolução da legislação e das políticas públicas no sentido de protegê-la, pode-se enxergar um caminho que, muito embora tenha suas conquistas, ainda está longe de ser o ideal para a efetivação dos direitos da criança e do adolescente definidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e na Declaração Universal dos Direitos da Criança e do Adolescente.

            O cenário das mudanças sociais ocorridas no país nos últimos anos, especialmente nesta área, serve como pano de fundo para a visualização de possibilidades de efetivação concreta do ECA para garantir os Direitos Fundamentais da Criança e do adolescentes no Brasil. E, dentro de tais possibilidades, surge a proposta do Depoimento sem Dano (DSD), que visa alterar o tratamento processual dispensado aos crimes sexuais contra crianças e adolescentes, criando um padrão para inquirição de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência ou abuso sexual, objetivando a redução de danos psíquicos ocasionados pela atuação do sistema legal, melhorando a prova produzida e garantindo a proteção integral das vítimas.

            Todas as crianças possuem necessidades físicas e psicológicas que precisam ser atendidas para proporcionar um crescimento e desenvolvimento saudáveis. As necessidades psicológicas mais comuns entre todas elas é a de se sentirem amadas e queridas pelos seus pais. Dentre as necessidades físicas podemos salientar o bem-estar, saúde, alimentação e abrigo.

Existem medidas legais de proteção e instituições de acolhimento de crianças e adolescentes, representando espaços de enfrentamento a um problema que diz respeito a todos.

            O abuso ou maltrato infantil pode ser considerado como o abuso físico e/ou psicológico sofrido por uma criança, praticado por seus pais, sejam biológicos ou adotivos, por outro adulto que possui a guarda da criança, ou mesmo por terceiros próximos à criança, como parentes e professores.

            Prova importantíssima nos processos de crimes dessa natureza são as oitivas das testemunhas e o depoimento da vítima, que auxiliam o juiz a formar sua convicção e, posteriormente, o seu julgamento, sendo, por vezes, a única prova possível de ser produzida em processos em que não há outros indícios. Atualmente, as formas de tomada de depoimento no Brasil são as mesmas tanto para vítimas maiores ou menores de idade, fato questionado por profissionais de diversas áreas, tendo em vista as condições especiais de desenvolvimento de crianças e adolescentes.

            É importante ressaltar que ser vítima de violência sexual, na maioria das vezes praticada por pessoas com as quais a criança ou adolescente tem fortes vínculos, é uma experiência dolorosa que pode deixar marcas vitalícias, prejudicando ou até mesmo impedindo o desenvolvimento do caráter e da personalidade da vítima.

Assim, é dever do estado oferecer proteção e tratamento digno e adequado para proporcionar às crianças e adolescentes a efetivação de seus Direitos Fundamentais e a devida proteção, para que danos colaterais causados pelo processo judicial não tornem ainda maiores os danos causados pela violência de que foram vítimas. E o Depoimento sem Dano pode ser uma importante ferramenta para a consecução deste objetivo.

A proposta do projeto Depoimento Sem Dano é ser medida auxiliar no processo de formação da convicção necessária ao Magistrado, atuando como ferramenta fundamental para a consecução da prova que servirá de embasamento da decisão a ser proferida, tornando o depoimento da criança ou adolescente vítima de violência muito mais verdadeiro, ao fazer com que esta se sinta mais segura para falar e, assim, tornando mais eficaz e contundente esta prova.

No Brasil, o método do Depoimento sem Dano começou a ser utilizado em 2003, no Rio Grande do Sul, servindo de modelo para os demais estados. No Senado Federal um projeto de lei que incorpora o depoimento sem dano à legislação, foi aprovado no dia 17 de março de 2010 na Comissão de Constituição e Justiça.

A estratégia adotada para a abordagem do tema consiste em expor e discutir as teorias de referência que estruturam a análise da violência contra crianças e adolescentes.

Não se pretendeu elaborar uma revisão exaustiva de todos os contributos teóricos que tratam da problemática, mas apenas mobilizar dados de referência bibliográfica pertinentes para a compreensão do objeto de estudo de um ponto de vista jurídico-sociológico. Neste sentido, adotou-se o método de pesquisa bibliográfica para a coleta de informações sobre o tema tratado, com a finalidade de que sejam analisadas e apresentadas as conclusões que deles forem extraídas.

            O primeiro capítulo deste trabalho busca localizar o projeto Depoimento sem Dano (DSD) no ordenamento jurídico brasileiro, conceituando o projeto e percorrendo toda a história da criança na sociedade, que serviu como base para a forma em que o projeto foi pensado. Além de comentar as normas legais que servem como base para a aplicação do projeto.

            A definição das condutas consideradas nocivas à criança e ao adolescente e os casos em que o projeto DSD pode ser aplicado é feita no segundo capítulo, onde também são exemplificados os tipos penais previstos no ECA como crimes praticados contra a criança e o adolescente e a forma procedimental do projeto em sua aplicação.

            Finalmente, no terceiro capítulo são apresentadas as opiniões dos profissionais diretamente ligados ao projeto, como Psicólogos e Magistrados, contrapondo os prós e os contras às formas de atuação do projeto Depoimento Sem Dano nos casos concretos, destacando os efeitos produzidos, sejam eles benéficos ou não.

            Após todas as informações colhidas e apresentadas, é pretensão deste trabalho concluir sobre a importância do projeto DSD para a produção da prova nos processos que envolvam crianças vítimas ou testemunhas de violência, se o método utilizado pelo projeto é compatível ou não com o ordenamento jurídico brasileiro.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


CAPÍTULO I - O DEPOIMENTO SEM DANO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

1.1 Conceito

            O Depoimento sem Dano, idealizado pelo Magistrado Antônio Daltoé Cezar, é descrito no Projeto de Lei Nº 4.126, de 2004, de autoria da Deputada Maria do Rosário (PT/RS), e visa incorporar um novo artigo ao Código de Processo Penal e alterar o capítulo do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que trata do acesso à Justiça, inserindo neste uma nova seção dispondo sobre a forma de inquirição de testemunhas e produção antecipada de prova quando se tratar de crimes que contenham vítima ou testemunha criança ou adolescente.

O objetivo é promover a proteção psicológica de supostas vítimas, possibilitando a realização de uma instrução criminal tecnicamente mais apurada; a produção antecipada de prova no processo penal; e evitar a revitimização da criança com sucessivas inquirições nos âmbitos administrativo, policial e judicial.

O projeto recebeu menção honrosa na 3ª Edição do Prêmio Innovare, que visa identificar, premiar, sistematizar e disseminar práticas pioneiras e bem sucedidas de gestão do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria pública que estejam contribuindo para modernização, desburocratização, melhoria da qualidade e eficiência dos serviços da Justiça.

            A proposta do Depoimento sem Dano se baseia na alegativa de que muitas vezes o depoimento da vítima é a única prova possível de se produzir contra o acusado que pratica crime contra vítima criança ou adolescente. Tal prova não é fácil de ser constituída no meio forense, visto não haver capacitação para Juízes, Promotores ou Advogados para a inquirição de crianças ou adolescentes traumatizados, sofrendo o risco de um dano psicológico secundário ao fazer a vítima vivenciar novamente o momento da agressão.

            O projeto Depoimento sem Dano visa se tornar medida auxiliar no processo de formação da convicção do Juiz, atuando como ferramenta na produção da prova antecipada de forma a tornar tal prova mais eficaz e contundente, promovendo ainda a proteção psicológica da criança, fazendo cumprir o que determina o ECA em seu artigo 4º:

Art. 4º - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;

b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;

c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;

d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

A 1ª e a 2ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre vêm, desde 2003, utilizando a metodologia do Depoimento sem Dano na inquirição de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência ou abuso sexual.

O projeto prevê que a escuta do depoimento da criança ou adolescente deve ser realizada por um assistente social ou um psicólogo em uma sala especialmente preparada para receber as crianças e equipada com câmera de vídeo conectada à sala de audiência, onde permanecem o juiz, o promotor, o réu e o advogado de defesa. O depoimento é gravado para fazer parte do processo; a criança ou adolescente entrevistada é consultada na permanência do réu na sala de audiências e, durante o depoimento, o juiz transmite seus questionamentos e os das partes ao técnico para que sejam repassados para a criança.

            Segundo José Antônio Daltoé Cezar (2007, p.61-62), Juiz de Direito da 2ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre e idealizador do projeto, o projeto Depoimento sem Dano pode ser desenvolvido da seguinte forma:

Quando dos depoimentos das vítimas de abuso sexual, crianças e adolescentes, retirá-las do ambiente formal da sala de audiências, transferindo-as para sala especialmente projetada para tal fim, devendo esta estar devidamente ligada, por vídeo e áudio, ao local onde se encontram o Magistrado, Promotor de Justiça, Advogado, réu e serventuários da justiça, os quais também podem interagir durante o depoimento.

Realizar esses depoimentos de forma mais tranqüila e profissional, em ambiente mais receptivo, com a intervenção de técnicos previamente preparados para tal tarefa, evitando, dessa forma, perguntas inapropriadas, impertinentes, agressivas e desconectadas não só do objeto do processo, mas principalmente das condições pessoais do depoente.

Após o depoimento, que é gravado na memória de um computador, sua íntegra, além de ser de gravado, o áudio é juntado aos autos, é copiado integralmente em um disco e juntado na contracapa do processo, assim viabilizando que não só as partes e Magistrado possam revê-lo a qualquer tempo, afastando eventuais dúvidas que possuam, bem como que os julgadores de segundo grau, em havendo recurso da sentença, possam ter acesso às emoções presentes nas declarações, as quais nunca são passíveis de serem transferidas para o papel.      

            Nestes casos de que trata o projeto, os profissionais que atuam na oitiva da vítima de violência contra a criança ou adolescente devem estar preparados emocionalmente para perguntar e ouvir as respostas e ter conhecimentos e técnicas adequadas para lidar com esta realidade, a fim de não causarem danos secundários e, ainda, obter um relato que viabilize a formação da convicção do julgador.

            O técnico designado para a realização desta tarefa pode ter formação em psicologia e deverá ser capacitado na problemática do abuso infantil, atuando como um intérprete para a obtenção dos resultados, anteriormente citados, a que o projeto se destina.

Este modelo de inquirição de crianças e adolescentes em formação tem sido utilizada em diversas partes do mundo: na América Latina (Argentina, Peru, Colômbia, Chile, Equador, Venezuela, República Dominicana, Cuba), na Europa (Escócia, Espanha, Alemanha, Inglaterra), ainda em Israel e no Canadá. As especificidades dos procedimentos e de definição dos limites de idade e condições processuais variam conforme cada legislação. É comum em muitos casos a utilização da câmara Gesell, ou da sala de espelhos.

No Brasil, após a implantação em Porto Alegre, o DSD passou a ser utilizado em diferentes comarcas do Rio grande do Sul e em outras cidades, sendo cada vez mais difundido pelo país.

            O atual sistema processual brasileiro, tanto criminal como civil, trata de forma geral a produção da prova, não fazendo distinção em se tratando de crianças, adolescentes ou adultos, não disponibilizando modelos diversos para os diferentes níveis de maturidade e desenvolvimento de cada um. A Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, em seu artigo 12, garante o direito de expressão das crianças e adolescentes em questões que lhes digam respeito, “sendo devidamente tomada em consideração a opinião da criança, de acordo com sua idade e maturidade.” Também assegura a oitiva de crianças e adolescentes em processos judiciais que lhes sejam pertinentes, respeitando as normas processuais vigentes na legislação nacional.

            Ao seguir a norma supracitada, o Estatuto da Criança e do Adolescente estatui o direito da criança e do adolescente a ser ouvida pela autoridade competente em processos judiciais de seu interesse, bem como determina a efetivação do direito à dignidade e ao respeito, direitos estes que não podem ser atendidos quando não se observa a condição peculiar de desenvolvimento do indivíduo.

            De acordo com Cezar (2007, p.62), com a metodologia empregada pelo Depoimento Sem Dano, busca-se atender a três principais objetivos:

  • Redução do dano durante a produção de provas em processos judiciais, nos quais a criança/adolescente é vítima ou testemunha;
  • A garantia dos direitos da criança/adolescente, proteção e prevenção de seus direitos, quando, ao ser ouvida em Juízo, sua palavra é valorizada, bem como sua inquirição respeita sua condição de pessoa em desenvolvimento;
  • Melhoria na produção da prova produzida.

O autor ainda fala sobre sua motivação para o projeto:

Percebi também que, embora houvesse um maior esforço para que as inquirições em juízo se procedessem com mais tranquilidade para as vítimas, assim como com regularidade processual para os acusados, na maior parte dos casos, ante a inapropriação dos meios físicos e humanos utilizados pela justiça criminal, as informações prestadas na fase policial não se confirmavam em Juízo. Isso criava situações de constrangimento e desconforto para todos que participavam das solenidades, principalmente para as crianças e os adolescentes apontados como abusados. Dessa forma, as ações terminavam, na sua maior parte, sendo julgadas improcedentes, com base na insuficiência de provas (CÉZAR, 2007, p.59).

Diante das observações feitas, busca-se efetivar melhores condições para a criança ou adolescente, que se sentindo mais à vontade, mais segura, falará com mais confiança, produzindo prova muito mais confiável e verdadeira, que confirmará as informações produzidas no inquérito. Apoiado nesses argumentos é proposto o projeto Depoimento sem Dano.

1.2 Histórico

            Crianças e adolescentes nem sempre foram vistos como sujeitos de direitos.  Sua individualidade de sujeito aparece e desaparece em momentos da história, marcando concepções de infância diferenciadas e conferindo-lhes um tratamento específico.

            Embora haja divergência sobre qual época a criança passou a ser considerada, vista e escutada como uma pessoa diferente dos adultos, detentora de necessidades especiais de desenvolvimento, não existe nenhuma dúvida quanto ao fato de que os maus-tratos a elas dirigidos não é um fenômeno recente. Esta prática remonta às culturas mais antigas, pode-se até mesmo dizer que teve sua origem no surgimento da própria humanidade.

Relatos de filicídios, maus-tratos, abandonos materiais e psicológicos, negligências e abusos sexuais são encontrados na mitologia ocidental, em passagens bíblicas, em rituais de iniciação ou de passagem para a idade adulta, fazendo parte da história da cultura humana.

            No campo do direito, torna-se notório a existência de maus-tratos desde a pátria potestas do Direito Romano, que atendia apenas os interesses do chefe da família, permitindo-lhe, inclusive, vender e matar sua prole, que era tida como sua propriedade. Com o passar dos séculos, esse direito passou a ser mitigado, porém, sem perder completamente sua essência: a submissão dos interesses do filho à figura paterna.

            As diferentes etapas da vida do ser humano começaram a gerar alguma preocupação a partir da difusão da escolarização, que ocorreu nos últimos anos do século XVI. Não se reconhecia, até este ponto, a importância da infância e da adolescência como fases de desenvolvimento de cada pessoa.

Era considerada infância apenas a fase mais frágil da vida do homem, quando precisava de auxílio para se locomover, comer e não conseguia se comunicar com os demais. A partir do momento que este obtinha algum desembaraço físico, era logo misturado aos adultos e assim considerado, saltando várias fases importantes do seu desenvolvimento.

            Apenas no final do século XVII a família passou a se desenvolver em torno da criança e lhe dar o mínimo de importância necessária para que esta fosse constituída como sujeito de direitos. Segundo Locke (2002, p. 53) o poder tido pelos pais em relação aos seus filhos advém do dever de cuidado destes àqueles incumbido, “não lhes exigindo o que ainda não podem: é disto que precisam os filhos, e que os pais estão obrigados a fazer”.

Mesmo que a sociedade tenha dado os seus primeiros passos para o reconhecimento da criança como indivíduo dotado de particularidades próprias, na verdade, devido à lentidão do processo histórico, séculos precisaram transcorrer para que tal reconhecimento fosse colocado em prática de forma satisfatória, e os maus-tratos passassem a ser combatidos de forma eficaz e universal.

Na cultura européia, por exemplo, ainda no século XVIII começa a repressão ao abuso sexual, porém, as agressões físicas, psicológicas e a negligência ainda eram toleradas pela sociedade.

Desde o final do século XIX até meados do século XX, o papel da criança na sociedade vem se tornando alvo dos olhares de vários campos do saber, para entender a diferenciação entre a infância e a idade adulta, a fim de prever modificações de comportamento que confirmariam ou negariam as teses evolucionistas.

Fica evidente que maus tratos, violência e abandono marcaram a trajetória da infância pobre também no Brasil. Crianças e adolescentes foram inseridos em um processo sociopolítico de trabalho precoce ao invés de preparação para o futuro, o qual é subordinado a outros como conseqüência, disciplina e obediência vigiada.

Ao olhar de hoje, esse quadro se mostra completamente inadequado para o desenvolvimento de uma infância e adolescência saudáveis. Somente no século XX, a “doutrina da proteção integral” trouxe alguma resposta a esses problemas, conferindo lugar mais efetivo para crianças e adolescentes nas relações de cidadania.

Tal proteção se encontra expressa no texto do artigo 5º do ECA, que reflete a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989:

Art. 5º. Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

O papel das crianças na sociedade vem sofrendo mudanças geradas principalmente pelos processos sociais e econômicos que sustentam a consolidação do capitalismo. Inicialmente, porque ocorre uma mudança significativa no valor econômico dos filhos, que são vistos pelas classes média e alta como aqueles que deverão dar continuidade a seus projetos de acumulação econômica. A medida que os pobres, forçados a abandonar a vida no campo e migrar para as cidades, vivem com o peso da necessidade de conseguir recursos para alimentar seus filhos, diferentemente do tempo em que viviam da agricultura e usavam suas crianças como força de trabalho em suas pequenas propriedades.

A criança se torna, então, objeto da preocupação das sociedades que almejam investir no presente para preparar seu futuro, criando novas expectativas sobre os futuros cidadãos cuja inserção na sociedade reflete significados distintos, respondendo a oportunidades e limites econômicos.

Os adultos se tornaram menos abusadores e começaram a colocar em enfoque a educação das crianças, prosseguindo até o sistema de educação infantil visto hoje, no qual a maioria dos pais e adultos tenta ajudar a criança a alcançar seus objetivos com amor e aceitação; porém isto não significa dizer que os maus-tratos contra crianças não existam atualmente, sendo ainda diárias as ocorrências reiteradas em várias partes do mundo.

Com a criação da Declaração Universal dos Direitos da Criança, defendendo que à criança devem ser destinados atenção e cuidados especiais, a criança deixou de ser considerada extensão de sua família, passando a ter direitos próprios, oponíveis, inclusive, aos de seus pais ou aos de qualquer outra pessoa. 

É uma prática recente na história processual brasileira a tomada de depoimento de crianças e adolescentes em processos civis ou criminais. Mesmo que tal prática seja permitida pelo Código de Processo Penal de 1940, crianças e adolescentes eram raramente inquiridos.

O reconhecimento e a denúncia de atos de violência ou abuso sexual contra crianças e adolescentes eram dificultados ou até mesmo impedidos pela administração da justiça juvenil e o arcabouço institucional existentes especialmente na vigência do último Código de Menores (1979 – 1990). Embora houvesse denúncias e instalação de processos, crianças e adolescentes não tinham nenhuma credibilidade, suas falas não eram levadas em consideração.

O Código de Menores adotou a Doutrina da Proteção ao Menor em Situação Irregular, que abrangia crianças abandonadas e já envolvidas em práticas de atos ilícitos, desvios de conduta e falta de assistência ou representação legal. Não prevenia essas situações, apenas protegia os menores que já se encontravam em “situação irregular”, que era definida no art. 2º do Código de Menores (BRASIL, 1979):

Art. 2º - Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor:

I – privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de:

a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsáveis;

b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las.

II – vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;

III – em perigo moral, devido a:

a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes;

b) exploração em atividade contrária aos bons costumes.

IV- privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável;

V – com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária;

VI – autor de infração penal.

Parágrafo único. Entende-se por responsável aquele que, não sendo pai ou mãe, exerce, a qualquer título, vigilância, direção ou educação de menor, ou voluntariamente o traz em seu poder ou companhia, independentemente de ato judicial.

Houve uma alteração nesta situação com a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990), quando crianças e adolescentes passaram a ter atributos de sujeito de direitos com prioridade absoluta definida pela Constituição Federal em seu artigo nº 227:

Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O início da vigência do ECA em 1990 marcou o abandono do Direito de Menores e deu início a adoção do chamado Direito da Infância e da Juventude. A opção teve como fundamento o abandono da doutrina da situação irregular, em favor de um sistema de proteção integral, já contido nos texto da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança da ONU (1989) e Declaração Universal sobre os Direitos da Criança (1959).

A Constituição Brasileira, o Estatuto da Criança e do Adolescente e Normas Internacionais têm como base a teoria da universalidade dos direitos humanos e os direitos peculiares à pessoa em desenvolvimento, onde estão inseridas crianças e adolescentes. O artigo 227 da Constituição e o artigo 4º do ECA definem os direitos da população infanto-juvenil brasileira, bem como os responsáveis por garanti-los.

Institucionalmente, o ECA previu a criação dos conselhos tutelares, que possibilitam a recepção de denúncias e o conseqüente encaminhamento para providências legais em razão da sua proximidade com a comunidade. Também contribuíram para tanto, a ampliação das funções do Ministério Público pela Constituição Federal de 1988 e a criação de delegacias especializadas e políticas de atenção às vítimas de violência, principalmente mulheres e crianças.

Nos últimos anos crianças e adolescentes tem sido regularmente inquiridos como vítimas ou testemunhas em delegacias de polícia e em tribunais pelo Brasil; são ouvidos na presença do juiz, promotor, advogados, cuja formação técnico-jurídica não os capacita para a compreensão e condução do depoimento de acordo com o universo infanto-juvenil.

O projeto “Depoimento sem Dano” foi idealizado por José Antônio Daltoé Cezar, Juiz da 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, e era, inicialmente, uma experiência individual da referida Vara, tendo seu nascimento em maio de 2003, ainda utilizando equipamentos rudimentares para este tipo de procedimento. Apenas uma câmera de segurança, microfones, um computador e uma placa para captura de áudio e vídeo, bem como uma sala para sua instalação. O custo inicial foi de quase quatro mil reais, sendo rateados pelo Juiz, o Promotor, e os recursos da Vara da Diretoria do Foro, com a permissão do Diretor à época.

A ideia surgiu quando Cezar, ao observar que a maioria das ações eram julgadas improcedentes pela insuficiência de provas, passou a analisar o processo de produção de provas, como elas eram produzidas e como poderia melhorar o procedimento de produção das mesmas. Ao observar a inquirição da vítima ou testemunha menor, constatou que esta não se sentia a vontade para falar nos meios tradicionais de inquirição da Justiça Criminal, fazendo com que o depoimento prestado não correspondesse com as informações obtidas no inquérito policial.

A verdade é que durante a inquirição da vítima ou testemunha pelo método tradicional há muita pressão sobre a pessoa inquirida. Muitas vezes, o advogado de defesa exerce uma pressão maior, tentando desacreditar a vítima ou testemunha. Mas, ao se tratar de uma criança ou adolescente, essa pressão exercida pode ser interpretada pela vítima ou testemunha como uma ameaça, ainda mais quando ela mesma se encontra em uma sala repleta de presenças masculinas desconhecidas, que não lhe transmitem nenhuma segurança ou conforto e podem se mostrar insensíveis quanto a situação da criança ou adolescente, além de serem incapazes de lidar com a problemática do abuso sexual infantil de forma diferenciada.

Soma-se isto a perguntas maliciosas, impertinentes e até agressivas que, mesmo que indeferidas pelo Juiz, só o simples fato de serem ouvidas pela criança ou adolescente já foram capazes de causar um mal que, por vezes, pode ser irremediável, visto a falta de maturidade da vítima ou testemunha para compreender e assimilar o conteúdo da pergunta ouvida. 

            A primeira audiência utilizando esta técnica ocorreu no dia 06 de maio de 2003, em processo infracional que tramitava perante a referida Vara da Infância e da Juventude. Os profissionais envolvidos na aplicação do projeto perceberam a conveniência deste tipo de procedimento, que refletiu na tranqüilidade demonstrada pela vítima durante todo o procedimento; e depois deste, porém, era também perceptível a necessidade de aperfeiçoar a tecnologia empregada, tendo em vista a péssima qualidade das imagens e sons obtidos com os equipamentos de que dispunham.

            Somente no ano seguinte, 2004, o projeto assumiu caráter institucional com a aquisição de novos e adequados equipamentos, permitindo a captura de imagens e sons de boa qualidade. A sala montada na 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre já estava sendo disponibilizada todas as manhãs para que os Magistrados da comarca e de comarcas do interior do Estado a utilizassem.

            Neste mesmo ano, o projeto Depoimento sem Dano foi transformado no Projeto de Lei 4.126 de 2004, de autoria da deputada Maria do Rosário e, no ano de 2007, convertido no Projeto de Lei Complementar nº 35/2007, que substituiu o Projeto de Lei anterior.

            Atualmente o Depoimento sem Dano já está em pleno funcionamento em várias comarcas não só do Rio Grande do sul, mas por todo o Brasil. Em Fortaleza o Projeto Depoimento Especial, semelhante ao Depoimento sem Dano, está ainda em fase inicial, sendo defendido pela Secretaria de Direitos Humanos de Fortaleza, através da Rede Aquarela de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes.        

1.3 Bases legais

            A prática do procedimento proposto pelo Depoimento sem Dano encontra-se respaldo na Lei 11.690 de 2008, que modifica o Código de Processo Penal e onde se acham amparadas tais mudanças que tenham por objetivo a redução de danos e constrangimentos para as vítimas. A referida lei, em seu artigo 217, faz referência à utilização de vídeo conferência para inquirição especial de vítimas e/ou testemunhas. Eis a transcrição do artigo 217 da Lei nº. 11.690/08:

 Art. 217. Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor.

            O artigo mostra claramente a forma procedimental para a inquirição da vítima ou testemunha quando a presença do réu possa causar temor, humilhação ou constrangimento que prejudique a veracidade do depoimento. Logicamente, podemos afirmar que tais sentimentos possam ocorrer a uma criança ou adolescente que foram vítimas ou testemunhas de qualquer tipo de violência ao ser colocada perante o agressor, em uma sala que, para ela, não apresenta nenhuma segurança. Tal sentimento gerado nas vítimas, sejam elas crianças ou adolescentes, pode ser explicado pelo fato de o agressor, na maioria dos casos, ser pessoa de convívio próximo a criança ou adolescente, com quem esta nutria fortes vínculos de confiança, até mesmo afetivos, e a existência de possíveis ameaças sofridas pela criança ou adolescente por parte deste agressor.

            No artigo 223 do Código de Processo Penal Brasileiro encontramos a permissão de nomeação de intérprete para ouvir estrangeiros que não entendam a língua nacional:

Art. 223 - Quando a testemunha não conhecer a língua nacional, será nomeado intérprete para traduzir as perguntas e respostas.

            Tomando como base essa premissa legal, podemos afirmar que, por analogia, também seria possível a utilização de intérpretes, com a formação necessária para enfrentar a problemática da violência sexual infantil, que pudessem “traduzir” as perguntas dos magistrados para as vítimas ou testemunhas quando estas forem crianças ou adolescentes, visto que, para a criança ou adolescente, a pouca idade e maturidade, muitas vezes, não permitem a total compreensão das perguntas do magistrado e, para os operadores do Direito, há a dificuldade em formular tais perguntas de forma a não lesar nem a intimidade da criança ou adolescente, nem a verdade dos fatos a ser esclarecida com o depoimento.

            Tal procedimento visa poupar a criança ou adolescente de perguntas embaraçosas, mal formuladas, ou mesmo, propositadamente formuladas com a intenção de causar impacto na vítima, com a finalidade de desacreditar seu depoimento e, assim, possa ser o réu favorecido. Os operadores do direito ainda não estão preparados para lidar com a presença, dentro do processo, de criança ou adolescente em situação normal, quanto menos preparados estão quando esta foi vítima de violência que lhe atingiu a esfera mais íntima de sua personalidade, causando danos considerados hediondos mesmo para uma pessoa adulta.

Um dos princípios constitucionais de sustentação da democracia, o “devido processo legal”, é traduzido no âmbito processual principalmente pela existência do contraditório e da ampla defesa, do juiz natural, das provas, dos recursos, etc. Desta forma, o objetivo da inquirição da vítima é a produção de provas, que podem assegurar ao réu e a toda sociedade uma decisão bem fundamentada que pode resultar em uma condenação justa e na garantia de ninguém ser condenado por acusações de fatos não comprovados.

Sejam em processos de delitos cometidos na ausência de testemunhas, como são os delitos sexuais na maior parte das vezes, ou mesmo pela ausência de prova material, as declarações da vítima são de suma importância para a concretização do “devido processo legal”. Sobre a inquirição da vítima ou testemunhas o Código de Processo Penal brasileiro (1940) refere:

Art. 201. Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações.

Art. 202. Toda pessoa poderá ser testemunha.

            A Convenção Internacional dos Direitos da Criança das Nações Unidas, em seu artigo 12, assegura o direito da criança ou adolescente a ser ouvida em qualquer procedimento judicial ou administrativo que lhe seja atinente, levando-se devidamente em conta sua idade e maturidade. Senão, vejamos os parágrafos 1º e 2º do referido artigo:

§1. Os Estados Membros assegurarão à criança, que for capaz de formar seus próprios pontos de vista, o direito de exprimir suas opiniões livremente sobre todas as matérias atinentes à criança, levando-se devidamente em conta essas opiniões em função da idade e maturidade da criança.

§2. Para esse fim, à criança será, em particular, dada a oportunidade de ser ouvida em qualquer procedimento judicial ou administrativo que lhe diga respeito, diretamente ou através de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais do direito nacional.

Pode-se deduzir dos dispositivos legais mencionados que a criança ou adolescente deverão ser inquiridos também no âmbito penal, nos processos em que sejam vítimas ou testemunhas. Porém, devem ser respeitados e preservados como seres humanos em formação, devendo ser dispensado a estes um tratamento diferenciado, levando em consideração sua idade e maturidade e objetivando a proteção psicológica da criança ou adolescente pela sua condição peculiar de desenvolvimento.

Embora este método de inquirição de testemunhas seja uma novidade no Brasil, já vem sendo utilizado modelo semelhante em várias partes do mundo, onde é prática processual comum. Países como a Argentina já tem o depoimento judicial com o auxílio de técnico, em moldes semelhantes aos do Depoimento Sem Dano, incorporado aos seus ordenamentos jurídicos, permitindo que as atividades sejam observadas e essas observações sejam publicadas. A aplicação deste modelo de inquirição varia de um país para o outro conforme a legislação nacional.

            Todo depoimento tomado judicialmente em uma sala de audiências é carregado de algum grau de estresse, tanto para as testemunhas, quanto para as vítimas do delito cometido. Esse grau de estresse é muito mais elevado quando se trata de agressões sexuais. Para as vítimas, a comoção é bem maior, visto que terão que reviver as lembranças traumáticas e relatar fatos que se vinculam a sua intimidade, com detalhes que por vezes são requisitados, seja por necessidades processuais ou não. Este processo traumático é observado em adultos, muito maior é a problemática em se tratando de crianças. O foco do DSD é minimizar tal estresse, aplicando uma forma de inquirição diferenciada às crianças e adolescentes, para tanto, tendo como base as normas legais supracitadas.

            Ainda existem muitas divergências entre os profissionais do Direito e da Psicologia e Assistência Social, tanto entre as categorias profissionais como entre profissionais da mesma categoria, mas isto será tratado em capítulo posterior.


CAPÍTULO II - CASOS DE APLICAÇÃO DO DEPOIMENTO SEM DANO

2.1 Aplicabilidade

Como já dito anteriormente, o Depoimento sem Dano pode ser aplicado nos casos de violência contra criança ou adolescente, seja ela sexual, física ou psicológica.

Um bom começo para compreender a questão da violência é conceituar o problema para melhor demarcar a área de atuação do Depoimento Sem Dano. Conceituar o problema é explicar a natureza do fenômeno estudado, o que pode ser feito por diferentes teorias e sob diferentes aspectos.

Inicialmente, pode-se observar a etimologia da palavra que, segundo o Dicionário do Aurélio Online (dicionário da língua portuguesa), violência é: “s.f. Qualidade ou caráter de violento. / Ação violenta: cometer violências. / Ato ou efeito de violentar. / Opressão, tirania: regime de violência. / Direito Constrangimento físico ou moral exercido sobre alguém”. Em um conceito um pouco mais abrangente, pode ser caracterizado como violência qualquer comportamento que causa dano a outra pessoa, ser vivo ou objeto, que invade a autonomia, integridade física ou psicológica e mesmo a vida de outro. É o uso excessivo de força, além do necessário ou esperado. O termo deriva do latim violentia (que por sua vez o amplo, é qualquer comportamento ou conjunto de deriva de vis, força, vigor); aplicação de força, vigor, contra qualquer coisa ou ente.

No Brasil, a teoria adotada para conceituar a violência é a teoria do poder. Todo poder implica em uma relação, mas nem todo poder é relacionado à violência. O poder é violento quando, por meio de uma relação de força, ele é exercido sobre o outro, objetivando pré-determinadas formas de lucros ou vantagens.

Pode-se, então, caracterizar como atos de violência contra a criança ou adolescente maus tratos físicos, psicológicos, negligência, abuso ou violência sexual e até crimes mais modernos, como pedofilia virtual e pornografia infantil, encaixando-se, inclusive, neste tipo de violência o turismo sexual, visto que as vítimas deste crime são mais jovens a cada estação.

            Os maus tratos físicos contra criança ou adolescente são atos violentos intencionais, praticado pelos pais, responsáveis ou pessoas próximas a criança ou adolescente, cujo objetivo é de ferir, danificar ou destruir esta criança ou adolescente, deixando ou não marcas evidentes em seu corpo. Desta forma, a polêmica “Lei da Palmada” não objetiva impedir que pais disciplinem seus filhos, mas que esta disciplina não seja física, visto que não se pode delimitar até que ponto é benéfico o emprego da “palmada” na correção da criança. O Projeto de Lei Nº 2654/2003, também de autoria da Deputada Maria do Rosário, atua com o objetivo de impedir a perpetração da violência física contra as crianças e adolescentes, ao protegê-las dos castigos físicos e, principalmente, dos excessos cometidos nestes castigos.

             A violência emocional ou psicológica é a mais silenciosa das formas de violência e, por isso mesmo, não atrai tanta atenção quanto à violência física. A violência psicológica raramente é encontrada nas estatísticas oficiais, pois segundo Cézar (2007, p. 29) "sua condição e invisibilidade manifestam-se na depreciação da criança pelo adulto através de humilhação, ameaças, impedimentos, ridicularizações que minam a sua auto-estima, e fazem com que acredite ser inferior aos demais, sem valor". A violência psicológica é geralmente caracterizada por palavras, ações ou omissões por parte do agressor com o intuito de deturpar a auto-imagem da vítima, fazendo-a pensar-se menor, menos importante e até menos digna do que seus iguais.

            Talvez este tipo de violência seja a maior responsável pelo fato de que crianças ou adolescentes sofram abusos sexuais por longos períodos, às vezes anos a fio, sem que alguém perceba ou que ela mesma fale, visto que determinados comportamentos surgem a partir deste tipo de violência, como a “Síndrome do Segredo”.

            A Síndrome do Segredo, como ficou popularmente conhecida, parte do conhecimento do agressor sobre a não aceitação da sociedade à prática do abuso sexual e, através de ameaças e outros artifícios psicológicos, ele faz com que a criança sustente uma rede de mentiras e segredos criada por ele. O abusador geralmente usa ameaças não só a integridade física da própria criança, mas também de terceiros importantes para ela e, ainda, ameaças psicológicas, fazendo a criança acreditar que perderá o amor dos pais por estar envolvida, mesmo que forçosamente, naquela prática e acaba sentindo culpa pela situação vivida, traduzindo toda esta culpa na autopunição de continuar vivendo naquelas condições.

Para que o segredo seja mantido, é comum que ocorra a “Síndrome de Munchausen por Procuração”. A Psicologia chama de Síndrome de Munchausen por Procuração o comportamento do agressor, quando este inventa doenças para justificar comportamentos não usuais da vítima, fazendo com que a própria assuma esta justificativa para seus atos incomuns ou que não se encaixem em seu padrão de comportamento, disfarçando os sinais da violência ou abuso demonstrados pela criança com falsos sintomas de enfermidade, doenças que não existem.

            O abuso ou violência sexual é expressão utilizada para designar uma série de práticas sexuais onde há o desvirtuamento de alguns pressupostos necessários para sua ocorrência, tais como a falta de consentimento, ou uso da violência, física ou moral. Consiste em qualquer tipo de interação, contato ou envolvimento da criança em atividades sexuais que ela não compreende, não necessariamente o ato sexual.  "Os atos designados como abuso sexual podem ou não envolver contato físico com a criança; por isso, não se deve esperar que essa modalidade de violência apresente, necessariamente, um sinal corporal visível" (GONÇALVES, 2005 p.293). 

Nesse tipo de violência, a criança ou adolescente se torna uma espécie de gratificação para o agressor, que obtém prazer sexual através dela. Este comportamento compulsivo de falta de controle dos impulsos diante do estímulo gerado pela criança ou adolescente é denominado “Síndrome da Adição”, ou seja, o abusador, pela sua falta de controle, usa a vítima para obtenção de excitação sexual e alívio de tensão, causando dependência psicológica e negação desta dependência, tal como nos casos de drogadição ou dependência química e toxicológica.

            Com os avanços tecnológicos da globalização, a era virtual trouxe consigo novas práticas de violência sexual contra crianças e adolescentes, como a popularmente chamada pedofilia virtual e a pornografia infantil. A pornografia infantil consiste na divulgação de fotos e/ou vídeos pornográficos de crianças e adolescentes na internet. Já a pedofilia virtual é comumente caracterizada pela relação virtual de confiança, onde adultos conquistam a amizade e tentam seduzir crianças ou adolescentes a encontros, com promessas de brincadeiras, presentes, coisas que as agradem. Porém, a intenção do adulto no encontro é abusar sexualmente da criança ou adolescente com quem mantém tal relacionamento virtual. Este último tipo de violência é muito bem exemplificado no filme “Confiar” (TRUST, 2010).

Necessário se faz incluir nesta já extensa lista de violências praticadas contra crianças e adolescentes o turismo sexual e a exploração sexual infantil, que estão intimamente ligados. O turismo sexual pode ser definido como viagens organizadas utilizando as estruturas e redes turísticas, com a intenção primária de estabelecer contatos sexuais com os residentes do destino. Turismo sexual é, portanto, caracterizado como o deslocamento transitório de pessoas, seja individualmente ou em grupos, com finalidade sexual. Indivíduos viajam para outra cidade, estado ou país, não com o intuito de se envolver em um relacionamento amoroso passageiro, mas de pagar para ter relações sexuais. Tal prática envolve uma complexa rede de agentes que utilizam o estímulo do prazer sexual somado a atividade turística, conseguindo, assim, obter ganhos financeiros consideráveis.

Segundo dados do Disque Denúncia (2010):

No ano de 2010 foram recebidas 13.783 denúncias relacionadas a crimes contra crianças e adolescentes. Destas, 2.420 eram sobre violência sexual: 1.011 denúncias sobre exploração sexual comercial e 1.409 sobre o abuso sexual. A maioria das denúncias sobre exploração remete a prostituição infantil – 776 denúncias. Nesta forma de violência, mães e pais foram identificados em 33% das denúncias como os responsáveis diretos pela exploração sexual de seus filhos, oferecendo-os à prostituição. Em 16% das denúncias, a ocorrência da exploração sexual se deu/dá em estabelecimentos como casas de prostituição (bordeis e/ou prostíbulos), bares, lan houses e até mesmo residências transformadas para tal fim.

Aqueles que tem o dever de proteção são os que negam tal direito às suas crianças. A responsabilidade de proteção é da família, do adultos que tem o poder sobre a criança ou adolescente, conforme o Ministério da Educação:

         Os adultos são socialmente responsáveis e autorizados a exercer poder protetor sobre crianças e adolescentes, cuja socialização dependa desse poder. No entanto, é ainda corrente em instituições brasileiras – família, escola, igrejas, serviços de assistência e de ressocialização – a defesa e o exercício de uma pedagogia perversa de submissão de crianças e adolescentes ao poder autoritário, arbitrário e violento dos adultos.

(...)

violência contra crianças e adolescentes é todo ato ou omissão cometido pelos pais, parentes, outras pessoas e instituições capazes de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima. Implica, de um lado, uma transgressão no poder/dever de proteção do adulto e da sociedade em geral e, de outro, numa coisificação da infância. Isto é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de serem tratados como sujeitos e pessoas em condições especiais de crescimento e desenvolvimento (BRASIL, 2007).

É de causar estranheza que, mesmo passados mais de vinte anos da entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente, estes ainda não sejam considerados sujeitos detentores de direitos, fato comprovado pelas reações contrárias aos preceitos do Estatuto.

            O Depoimento sem Dano pode ser aplicado, então, na ocorrência de qualquer crime cujo núcleo seja uma das ações descritas como violência contra a criança ou adolescente.

2.2 Tipificação penal

            A tipificação penal dos crimes praticados contra a criança ou adolescente não é limitada apenas aos artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que tratam do tema, mas pode ser encontrada também no Código Penal Brasileiro (CPB) e em Leis Específicas, como a Lei da Pedofilia (Lei Nº 11.829, de 25 de novembro de 2008). O próprio ECA em seu artigo 226 aduz que são aplicados aos crimes definidos no Estatuto as normas da parte geral do Código Penal e, quanto ao processo, as pertinentes ao Código de Processo Penal.

            No ECA, podem ser vislumbrados alguns desses crimes no título VII - Dos Crimes e Das Infrações Administrativas, no Capítulo I, Art. 225: “Este Capítulo dispõe sobre crimes praticados contra a criança e o adolescente, por ação ou omissão, sem prejuízo do disposto na legislação penal”. São listados abaixo, não de forma exaustiva, os atos tipificados como crime contra criança e adolescente no ECA. 

            Dentre os artigos que compõem o citado capítulo do ECA, alguns merecem uma atenção especial, como:

Art. 230. Privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente:

Pena - detenção de seis meses a dois anos.

Parágrafo único. Incide na mesma pena aquele que procede à apreensão sem observância das formalidades legais.

Haverá apreensão ilegal quando não houver flagrante de ato infracional ou ordem judicial de apreensão, conforme o artigo 230 do ECA. Ocorrendo qualquer forma de privação da liberdade da vítima, excetuando-se a apreensão, haverá o crime de seqüestro ou cárcere privado descritos no CPB: “Art. 148 - Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado: Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos”

É um crime comum, ou seja, pode ser praticado por qualquer pessoa, sempre com dolo e a consumação se dá com a privação da liberdade da vítima, cabendo a forma tentada.

O Artigo 233 do ECA, que tratava sobre tortura, foi expressamente revogado pela Lei de Tortura. O assunto é disciplinado no artigo 1º caput, incisos I e II e parágrafo 4º inciso II da Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997 abaixo transcritos:

Art 1º - Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

(...)

§ 4º - Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:

(...)

II - se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos;

Portanto, tortura contra criança ou adolescente não mais configura crime do ECA, e sim crime da Lei de Tortura com aumento de pena de 1/6 a 1/3.

Art. 237. Subtrair criança ou adolescente ao poder de quem o tem sob sua guarda em virtude de lei ou ordem judicial, com o fim de colocação em lar substituto:

Pena - reclusão de dois a seis anos, e multa.

Subtrair criança é retirá-la do responsável legal sem autorização ou sem o conhecimento dele. Se o responsável tem apenas a guarda de fato da criança, não há este crime.

Esse tipo penal exige uma finalidade específica, ou seja, para que ocorra este crime a finalidade deve ser a de colocar a vítima em lar substituto. Caso a subtração não tenha esta finalidade, haverá o crime de subtração de incapazes do artigo 249 do CPB: “Subtrair menor de 18 anos ou interdito ao poder de quem o tem sob sua guarda em virtude de lei ou de ordem judicial”.

Embora cabível o instituto do perdão judicial na subtração de incapazes do CPB, não cabe perdão judicial no crime previsto no artigo 237 do ECA. O perdão judicial é uma causa extintiva da punibilidade que só é cabível nos casos expressamente previstos em lei, o que ocorre no citado artigo do CPB.

O crime tipificado no Eca é comum, podendo o sujeito ativo ser qualquer pessoa que não tenha a guarda legal ou judicial do menor, mesmo que seja pai ou mãe. A consumação se dá com a subtração da vítima com a finalidade de colocá-la em lar substituto, mesmo que essa colocação não seja efetivada. A tentativa é possível quando o infrator sequer consegue subtrair a criança de quem detém a sua guarda.

O crime previsto no artigo 239 do ECA é nomeado de tráfico internacional de criança e de adolescente. Para que se configure o crime, o sujeito ativo precisa agir para a promoção ou auxílio à efetivação do envio da vítima para o exterior sem as formalidades legais ou com o fito de lucro.

Art. 239. Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro:

Pena - reclusão de quatro a seis anos, e multa.

Na primeira hipótese não há necessidade de intenção de lucro, apenas a ausência das formalidades legais já é suficiente para configurar o crime.

O crime será qualificado se o ato destinado ao envio foi praticado com violência física exercida contra a própria criança ou contra terceiros, se foi cometido com grave ameaça ou mediante fraude. Neste caso, a pena será de reclusão de 6 a 8 anos, além da pena correspondente à violência em concurso material necessário ou obrigatório.

O crime é comum, o que significa que qualquer pessoa pode ser o agente ativo, inclusive os próprios pais ou familiares da vítima. O elemento subjetivo do crime é o dolo; lembrando que, quando o crime é praticado com a intenção de lucro, é o dolo acrescido da finalidade específica de lucro.

Este crime, quando configurado, na maioria dos casos, o agente tem a finalidade de usar a criança ou adolescente para lucrar com a prostituição infantil. Pode haver concurso de crimes entre o crime do artigo 239 e o do artigo 244-A, ambos do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

O art. 240 do ECA foi modificado pela Lei nº 11.829/2008, a conhecida Lei da Pedofilia. A lei brasileira não possui o tipo penal "pedofilia". A pedofilia, como contato sexual entre crianças e adultos, se enquadra juridicamente no crime de estupro de vulnerável do artigo 217-A do Código Penal Brasileiro, que é considerado crime hediondo: “Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos”.

O termo “pedofilia” é geralmente atribuído pelos meios de comunicação, de forma insistente, como ato criminoso, porém consiste em uma condição psicológica. Para a configuração de tal crime é necessário que a conduta seja dolosa, ou seja, que o agente tenha a intenção de fazê-lo. A configuração do crime não exige finalidade de lucro. Ocorre a consumação com a prática de qualquer uma das condutas do tipo, e aí incluídas as equiparadas. A tentativa é perfeitamente possível.

Pornografia infantil é crime no Brasil, passível de pena de prisão de dois a seis anos e multa. O Artigo 241, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90):

Art. 241. Vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

§ 1º Incorre na mesma pena quem:

I - autoriza, facilita ou, de qualquer modo, intermedeia a participação de criança ou adolescente em produção referida neste artigo;

II - assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens produzidas na forma do caput deste artigo;

III - assegura, por qualquer meio, o acesso, na rede mundial de computadores ou internet, das fotografias, cenas ou imagens produzidas na forma do caput deste artigo.

O Código Penal ainda tipifica e apena a conduta, mesmo que não seja para fins de distribuição, em seu artigo 218-A:

Art. 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos (BRASIL, 1940).

Aquele que contracena com a criança, além de responder pelos crimes previstos nos artigos 241 do ECA e 218-A do CP, ainda responde pelo crime de estupro de vulnerável do Art. 217-A, também do CP.

Em novembro de 2003, a abrangência do ECA aumentou para incluir também a divulgação de links para endereços contendo pornografia infantil, como crime de igual gravidade.

Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:

I - assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo;

II - assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo.

§ 2º As condutas tipificadas nos incisos I e II do § 1º deste artigo são puníveis quando o responsável legal pela prestação do serviço, oficialmente notificado, deixa de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito de que trata o caput deste artigo.

Art. 241-B. Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

O oferecimento de meios e serviços para armazenamento de imagens de pornografia infantil também constitui crime. Podem ser enquadrados aqui provedores de Internet, sites de armazenamento de arquivos, pessoas responsáveis por páginas virtuais, os donos de comunidades virtuais, entre outros. Além disso, também constitui crime armazenar, mesmo que para acervo pessoal, qualquer forma de registro de pornografia envolvendo criança ou adolescente.

Ainda sobre a questão da exploração sexual, lemos no artigo 244-A do ECA: “A Submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do Art. 2º desta Lei, à prostituição ou à exploração sexual: Pena - reclusão de quatro a dez anos, e multa”.

A conduta é submeter, com coação moral ou física, a vítima à prostituição ou à exploração sexual. Existe uma diferenciação doutrinária entre prostituição e exploração sexual. Na prostituição a conduta é realizada de forma habitual e com a finalidade de obtenção de lucro. Já na exploração sexual a finalidade ainda seria obter lucro, porém, sem a habitualidade da conduta. Quando falamos em prostituição dentro do crime de lenocínio, temos alguns requisitos:

  1. Encontro de natureza sexual;
  2. Com um número indeterminado de pessoas;
  3. Habitualidade.  

Outra diferenciação necessária é entre o abuso sexual e a exploração sexual. No abuso sexual o agente, geralmente pessoa próxima a criança ou adolescente, utiliza da confiança nela depositada pela criança para satisfazer suas necessidades sexuais através da criança. Já na exploração sexual o agente obriga a criança, com coação moral ou física, a satisfazer terceiro sexualmente, objetivando obter lucro.

A finalidade de obtenção de lucro pode ser em prol do agente ou da criança ou adolescente vítimas deste crime, visto que, em muitos casos, o lucro obtido é revertido para a subsistência da vítima.

Se a prostituição ou exploração ocorrerem em estabelecimentos comerciais, lícitos ou ilícitos, também responderá pelo crime o proprietário, o gerente ou responsável pelo estabelecimento, conforme o artigo 218-B do Código Penal (1940), que reza:

Art. 218-B. Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos.

§ 1º Se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.

§ 2º Incorre nas mesmas penas:

I - quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na situação descrita no caput deste artigo; (grifo do autor)

II - o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifiquem as práticas referidas no caput deste artigo. (grifo do autor)

§ 3º Na hipótese do inciso II do § 2º, constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento.

No dispositivo acima citado só se enquadra aquele que praticar o crime contra vítima menor de 18 anos. Os que praticam a mesma conduta tendo como vítimas pessoas maiores de 18 anos são enquadrados no artigo 228 do Código Penal: “Induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou dificultar que alguém a abandone: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa”. 

Cabe ressaltar que, na análise de situações concretas que são núcleos dos tipos penais aqui apresentados, verifica-se que as diferentes formas de violência praticadas contra crianças e adolescentes não são excludentes, mas sim cumulativas, muitas vezes resultando em concurso de crimes. Por exemplo, a violência sexual é também violência física e psicológica; a violência física é, sempre, também psicológica. Na exploração sexual comercial se encontram presentes, além da exploração econômica, as violências estrutural, física, psicológica, social e moral. Por fim, a violência simbólica, que é a imposição da classe dominante sobre seus subordinados, estimula todas as formas de violência.

Existem ainda inúmeros dispositivos legais que prevêem condutas nocivas à criança ou adolescente e as tipificam como crime. Porém, a finalidade deste capítulo é mostrar, não de forma exaustiva, os crimes mais comumente praticados contra vítimas crianças ou adolescentes, a título de exemplificação da aplicação do projeto Depoimento Sem Dano.

2.3 Aspectos processuais

            O projeto “Depoimento sem Dano” foi inspirado na obra “Abuso Sexual: a Inquirição das Crianças – Uma Abordagem Interdisciplinar”, da promotora de Justiça Veleda Dobke. O projeto tem como objetivo promover a proteção psicológica de crianças e adolescentes vítimas de qualquer tipo de violência ou abuso sexual e, ainda, permitir que seja realizada uma instrução criminal tecnicamente mais apurada, produzindo uma coleta de prova oral mais coerente ao princípio da veracidade dos fatos.

Cabe ressaltar que, apesar de o projeto Depoimento Sem Dano ter sido desenvolvido para o trato de crianças e adolescentes que foram vítimas ou testemunhas de violência sexual, é aplicado também a qualquer tipo de violência. Bastando apenas que a criança seja a vítima da conduta criminosa ou testemunha de tal conduta.

            O DSD possibilita a coleta da prova oral que, nos casos em que não há nenhuma espécie de vestígios, constitui única prova possível de ser produzida. Nestes casos, as crianças e adolescentes ouvidas foram ameaçadas física e psicologicamente, o que torna uma tarefa árdua ouvir tal criança, ainda mais em juízo. Para tal tarefa é necessário que o tomador do depoimento esteja preparado tecnicamente e seja sensível às necessidades da vítima, tendo em mente que ouvir uma criança não é a mesma coisa que ouvir um adulto.

            Desta forma, a sala especial para a tomada do depoimento da vítima criança ou adolescente é um instrumento para que a criança tenha contato apenas com o profissional apto e preparado para ouvi-la e arguí-la de forma mais adequada e compatível com seu entendimento como pessoa em desenvolvimento.

            Para que se entenda como funciona o projeto Depoimento Sem Dano, é necessário compreender todos os passos que levam ao início da ação judicial que visa esclarecer e julgar crimes que violem a integridade física ou psicológica da criança ou adolescente mediante qualquer tipo de violência já descrito anteriormente.

            Inicialmente, para que uma conduta criminosa chegue ao conhecimento das autoridades, existe uma denúncia, que pode ser anônima ou não. Nos casos de violência contra crianças ou adolescentes, geralmente esta denúncia é feita ao Conselho Tutelar ou ao Ministério Público local, que, após receber a denúncia, inicia a averiguação da mesma, quando possível, produzindo provas periciais, documentais e testemunhais.

            Com o intuito de oferecer melhor visualização da aplicação do Depoimento Sem Dano, será utilizada a ilustração com um caso fictício em que seja vítima uma criança pequena, de aproximadamente quatro anos, que sofre constantes abusos por parte do pai, sendo diariamente agredida física, verbal e psicologicamente.  Certo dia, uma vizinha leva o caso ao conselho tutelar do município e afirma que sempre ouve a menina chorar, mas nunca viu o que realmente acontece, apenas acha muito estranho o choro constante e desesperado da criança.

            No caso em comento, o conselho tutelar aciona a polícia para que vá ao local da denúncia e, confirmada a violência contra a menor, apreenda o agressor e o leve em custódia. A vítima apresenta marcas pelo corpo, porém a mãe, na tentativa de defender o companheiro, diz que a criança caiu enquanto estava brincando. Não havendo a possibilidade de afirmar se as marcas foram feitas por violência ou realmente por acidente, a única prova apta a ser produzida é o depoimento pessoal da vítima, já que não há prova testemunhal das condutas criminosas.

            A partir desta fase é iniciada a aplicação do Depoimento Sem Dano. A criança é levada a uma sala especial, envolta em uma atmosfera lúdica projetada a lhe dar mais segurança e conforto, onde existem profissionais treinados para interagir com crianças e adolescentes, que, no caso das comarcas que já aplicam a metodologia do Depoimento Sem Dano, é o Assistente Social. Tudo o que acontece nesta sala é filmado e transmitido para a sala de audiências, onde estarão o Juiz, o Promotor de Justiça, os Advogados e o agressor e que poderão ver, ouvir e participar de todo o processo de inquirição, em tempo real, formulando perguntas que serão feitas ao Assistente Social para que este transmita à criança de forma adequada ao seu pouco entendimento, visto que é pessoa em formação, enquanto esta conta o que ocorreu e que tipo de violência sofreu.

            A vítima só é encaminhada para a sala especial de depoimento após a entrada de todos na sala de audiências, mantendo sempre a vítima longe de seu agressor, a fim de evitar encontros indesejáveis da vítima e seu agressor e a possibilidade de prejudicar o depoimento daquela. Após a tomada de depoimento, o técnico ainda esclarece algumas dúvidas que possam ter restado e, se necessário, encaminha a vítima para programas existentes na rede de proteção à criança do município.

            Após a coleta da prova testemunhal/depoimento da vítima, o juiz pode proferir sua sentença de acordo com a prova produzida, pelos fatos declarados pela vítima e pelo seu convencimento da veracidade dos fatos. A gravação da prova produzida é juntada aos autos do processo na íntegra, áudio e vídeo, a fim de se evitar que seja necessário que a vítima passe por todo o processo novamente e possibilitar que, sempre que necessário, a prova seja revista e com o benefício de estarem ali presentes todas as emoções da vítima enquanto descreve a violência por ela sofrida.

            No livro, Cezar (2007) descreve todos os passos que compõem a dinâmica do depoimento detalhadamente, como o acolhimento inicial, o depoimento ou inquirição e acolhimento final ou encaminhamentos.

            O acolhimento inicial consiste nos momentos antes do depoimento da vítima, onde o técnico conversará com a vítima e com sua família sobre o procedimento, sobre o que irá acontecer, tranqüilizando a criança e deixando-a segura para falar toda a verdade. Esta etapa dura em média vinte minutos.

Quanto aos aspectos processuais legais, determina o Código de Processo Penal (1941) em seu artigo 201 caput:

Art. 201. Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações.

            Iniciada a fase de depoimento ou inquisição, à criança serão feitas as perguntas iniciais pelo juiz ou pelo técnico, quando autorizado, e, em seguida, iniciam-se as perguntas, dando a palavra à parte que postulou tal inquirição. Cabe salientar que, à época em que entrou em vigor o Código de Processo Penal, não haviam as tecnologias que hoje se encontram a nossa disposição, o que quer dizer que não havia previsão da gravação de um depoimento, na íntegra ou em parte, em áudio e vídeo ou mesmo apenas áudio. O que justifica a expressão “tomando-se por termo” contida na norma. Porém, inovação recente introduzida pela Lei 11.900/09 introduz a figura da videoconferência ao procedimento judicial:

Art. 185 - O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado.

(...)

§ 2º Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades:

(...)

III - impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do art. 217 deste Código;

O art. 185 do CPP, em seu parágrafo 2º, inciso III cria expressamente a previsão de que a tomada do depoimento da vítima e a inquirição da testemunha sejam feitas através de videoconferência quando a presença do réu puder causar qualquer tipo de influência na vítima ou testemunha.

Após encerrada a inquirição pelo projeto Depoimento Sem Dano, o arquivo de som e imagem é encaminhado para o processo de gravação que deve ser realizado no prazo máximo de 72 horas, sendo juntado posteriormente aos autos do processo virtual e um disco com o mesmo arquivo é juntado à contracapa do processo físico. Uma cópia do arquivo deve, por questões de segurança, permanecer junto à vara que realizou a produção da prova.

Esta prática permite que o Magistrado e as partes que possam rever as imagens sempre que quiserem para dirimir possíveis dúvidas, mas também garante que os magistrados de segundo grau possam ter acesso as emoções presentes nas declarações, caso haja recurso da sentença proferida.

A normativa processual vigente trata de forma geral a produção da prova realizada em juízo, não levando em consideração as condições especiais de desenvolvimento da criança ou adolescente, exigindo que estas mantenham um discurso lógico, assim como uma mentalidade capaz de enfrentar a realidade como um adulto. Essas exigências da forma tradicional de produção de provas contribuem induvidosamente para a desqualificação da prova e da acusação em casos de abuso sexual infantil.

Observar as normas processuais à luz dos princípios e normas constitucionais é de suma importância. Não se pode afastar o contraditório e a ampla defesa, que são garantias do processo e da jurisdição. O que o Depoimento Sem Dano propõe é que sejam garantidos, dentro das possibilidades das normas processuais vigentes, respeito e dignidade às crianças e adolescentes que participam do processo criminal, conforme o supracitado artigo 227 da Constituição Federal.


CAPÍTULO III - OS ARGUMENTOS FAVORÁVEIS E DESFAVORÁVEIS AO DEPOIMENTO SEM DANO           

3.1 Opiniões de profissionais do Direito

Como dito, o projeto Depoimento sem Dano surgiu como uma resposta à problemática da inquirição de crianças e adolescentes vítimas de violência física, sexual e psicológica, marcadas por tal violência e traumatizadas suficientemente para que ainda sejam revitimizadas, revivendo todo o horror pelo qual passaram ao ter que contar sua história em detalhes, repetidas vezes e para pessoas despreparadas, que, muitas vezes, fazem perguntas impróprias e impertinentes.

O que se busca com a metodologia do Depoimento Sem Dano é a proteção da vítima ou testemunha. O DSD se apresenta como o método mais eficaz de se conseguir proteger a vítima das agressões psicológicas a que ainda poderá ser exposta durante a fase processual, o que pode ser muito bem comprovado com a experiência do Juiz Cézar (2007, pág. 107), que afirma:

Recordo-me que entre os anos de 1993 e 1997, quando jurisdicionei em vara criminal na cidade de São Leopoldo, cidade de médio porte situada na região metropolitana de Porto Alegre, em audiência que se realizava para a ouvida de uma vítima de estupro – a adolescente tinha apenas 12 anos, o exame de corpo de delito atestava o recente desvirginamento, e estava ela bastante traumatizada, chorando e apresentando dificuldade de conter suas emoções – perguntou o advogado de defesa, com um ar até jocoso, se ela tinha atingido o orgasmo (gozado) naquela relação.

Por óbvio a pergunta foi indeferida, assim como o advogado, advertido da impropriedade das suas indagações; todavia, o prejuízo já havia ocorrido, a vítima não foi respeitada em um momento de extrema dor.

Os operadores do direito não estão preparados para lidar com a participação de crianças e adolescentes nos procedimentos judiciais, por isso a idéia de uma equipe multidisciplinar para desenvolver este trabalho.

Anda longe de ser um assunto apaziguado a aplicação ou não do Depoimento sem Dano, nos casos de violência contra crianças e adolescentes. Existem opiniões extremamente divergentes tanto entre os profissionais de Direito, quanto entre os profissionais de Psicologia e Assistência Social e entre estes e aqueles. De forma majoritária, pode-se distinguir a inclinação favorável dos profissionais do Direito à aceitação do procedimento proposto pelo projeto, sendo este defendido por vários nomes nesta área profissional.

Principal nome a frente da defesa da aplicação do Depoimento Sem Dano como forma mais benéfica, em todos os sentidos, de tomada de depoimento ou inquirição de testemunha, é o seu idealizador Antônio Daltoé Cezar que afirmou em entrevista ao Informativo do Tribunal de Justiça do Estado do Acre (2009, pág. 6):

O DSD usa a entrevista cognitiva, um método baseado no respeito às limitações do depoente, deixamos que ele se manifeste como quiser. Tem crianças que chegam e falam “não quero falar hoje, só amanhã” e temos que respeitar. Dá-se um tempo maior de resposta e evita-se a elaboração de perguntas diretas, para que as respostas não sejam induzidas.

Tudo isso porque, se o depoimento for mal tomado, não terá validade. Hoje em dia a criança é ouvida muitas vezes, seja pelo Conselho Tutelar, Ministério Público, Polícia ou Instituto Médico Legal, e cada processo traz uma conseqüência emocional. Por outro lado, no DSD, o fato de o depoimento ser gravado permite que ele possa ser consultado e analisado posteriormente, além de produzir provas materiais contra o acusado. Ao contrário do laudo psicológico, o depoimento gera a produção antecipada de prova antes mesmo do ajuizamento da ação. Dessa forma, a criança é ouvida o menor número possível de vezes e em tempo próximo ao fato.

Por meio do Depoimento Sem Dano a criança é ouvida de forma muito mais profissional e acolhedora. Não é inquirida de modo agressivo, com perguntas objetivas e diretas, realizadas por profissionais que não são preparados para realizar essa abordagem. Quando isso ocorre, as crianças são revitimizadas. Sendo bem interrogada, a criança ou o adolescente vítima se sente confortável e protegido para falar com naturalidade. Como a palavra dela é valorizada, isso determina que a prova seja de muito maior qualidade.

O magistrado passa a ter uma prova muito mais robusta, seja para absolver ou para condenar.

O principal argumento da defesa do projeto é o fato de evitar a repetição do depoimento da vítima. Tal repetição, visto que se trata de fatos dolorosamente vividos pela vítima, causa a chamada revitimização, que significa uma nova vivência do fato ocorrido, gerando novamente os sentimentos ocorridos à época do fato e podendo inclusive tornar permanentes as memórias e traumas criados pelo fato.

Além disso, muitos juristas defendem que, ao tomar o depoimento da vítima pelo método apresentado pelo Depoimento Sem Dano, as emoções iniciais da vítima ficam gravadas de forma que jamais se poderia exprimir em papel, fazendo com que, caso o processo chegue à segunda instância, os magistrados possam ter acesso ao mesmo sentimento expresso pela vítima enquanto ainda vívida a lembrança da violência sofrida; fazendo, assim, com que a prova seja muito mais eficaz no convencimento dos magistrados que entram em contato com ela.

Outro benefício do projeto é o fato de a vítima não encontrar com o agressor antes, durante ou depois de seu depoimento, evitando qualquer tipo de constrangimento que venha a interferir na veracidade de seu relato, seja para omitir ou para modificar os fatos ocorridos. A criança também não fica exposta aos embates ocorridos na sala de audiências entre os operadores do direito que, por vezes não raras, alteram o timbre e a força de sua voz, agindo com manifestações inapropriadas para o momento, causando extremo desconforto para a criança. Além de evitar que perguntas irresponsáveis e desapropriadas sejam feitas às vítimas, ainda que não sejam respondidas, demonstram que o tratamento a elas dispensado é inapropriado.

3.2 Opiniões de profissionais da Psicologia e Assistência Social

Dentre os profissionais da Psicologia e Assistência Social, embora também não haja um consenso, a maioria defende a não aplicação do projeto Depoimento Sem Dano por razões diversas. Seja por alegar ser função própria da Magistratura e não do Assistente Social, seja por não compreender como relacionado com a formação ou conhecimento profissional do assistente social ou psicólogo, ou ainda por se preocuparem com os aspectos ético-profissionais envolvidos, o fato é que a opinião majoritária desses profissionais é contra a aplicação do projeto nos moldes em que se apresenta.

Em resolução publicada sob o número 554/2009, o Conselho Federal de Serviço Social – CFSS não reconhece como atribuição do profissional da assistência social a atuação como intermediador atuante no projeto Depoimento Sem Dano, veda a participação dos profissionais na metodologia de depoimento especial e ainda prevê sanções administrativas, uma vez apuradas as responsabilidades da participação do profissional no projeto.

O Conselho Federal de Psicologia-CFP publicou nota em 05 de novembro de 2010, no site Psicologia On Line, sua posição diante da sistemática de procedimento do Depoimento Sem Dano:

(...) 

Os debates sobre a temática, realizados por este Conselho, possibilitaram reflexões sobre os aspectos éticos, a necessidade de fortalecimento da rede de proteção, a autonomia profissional, a interdisciplinaridade, a diversidade cultural e o papel do psicólogo.

O consenso sobre a atuação do psicólogo é que a escuta de crianças e adolescentes deve ser, em qualquer contexto, pautada pela doutrina da proteção integral, pela legislação específica da profissão, em marcos teóricos, técnicos e metodológicos da Psicologia como ciência e profissão.

Com base nesses fundamentos não é papel do psicólogo tomar depoimentos ou fazer inquirição judicial, ou seja, colocar seu saber a serviço de uma inquirição com o objetivo único de produzir provas para a conclusão do processo.

A Resolução CFP nº 010/2010 instituiu a regulamentação da Escuta Psicológica de Crianças e Adolescentes envolvidos em situação de violência, na Rede de Proteção, e determina que é vedado ao psicólogo o papel de inquiridor no atendimento de crianças e adolescentes em situação de violência.

Causa-nos apreensão que o colóquio realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Childhood Brasil denominado “O Depoimento especial de crianças e adolescentes e o Sistema de Justiça Brasileiro” tente esvaziar o papel da Psicologia nesse contexto ao discutir, refletir e disseminar os novos marcos jurídicos-legais e socioantropológicos da tomada de depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência sexual, sem considerar as discussões que vem sendo realizadas pela Psicologia, com diversas categorias, e os entendimentos de que existem contradições na metodologia, do ponto de vista psicológico e legal.

Por isso, mantemos e reafirmamos nossas ressalvas ao procedimento denominado “Depoimento Sem Dano” e colocamos à disposição o acúmulo de debates e entendimentos do ponto de vista da Psicologia para que possamos garantir a proteção integral às crianças e aos adolescentes, sobretudo por sua condição peculiar de ser humano em pleno desenvolvimento, tal como proclama o Estatuto.

Uma das justificativas usadas pelo Conselho Federal do Serviço Social é o sistema presidencial adotado no âmbito processual penal brasileiro, no qual cabe exclusivamente ao juiz fazer todas as perguntas, inclusive as de acusação e defesa, podendo deferi-las ou censurá-las se as considerar inadequadas ou impertinentes ao caso. Com base neste último argumento, a sugestão dada pelos profissionais da Assistência Social é que, não sendo tarefa que possa ser atribuída ao assistente social e não tem relação com suas funções, sejam treinados e capacitados os profissionais da Magistratura para que façam seu trabalho com maios propriedade e utilizando os meios corretos.

Os profissionais da psicologia e assistência social defendem que a sua contribuição ao judiciário se faz por meio da avaliação da vítima, seja ela psicológica ou comportamental, através de quesitos respondidos com base na observação do comportamento da criança ou adolescente e que não cabe a esses profissionais a inquirição da vítima. Ainda colocam em dúvida o real objetivo do Depoimento Sem Dano: É a busca da proteção psicológica da vítima ou de um relato mais forte e comovente para maior punição do abusador?

3.3 Pontos de divergência

A principal divergência se encontra na participação do assistente social na metodologia do Depoimento Sem Dano. Os que defendem essa participação afirmam que necessitam de alguém que esteja habituado com a problemática da violência ou abuso sexual infantil para que a criança ou adolescente se sinta mais confortável e segura para falar o que aconteceu e, desta forma, o depoimento da vítima seja menos traumático e mais completo.

Por outro lado, há os que afirmam que não é trabalho para o assistente social interrogar a vítima ou testemunha, forçando-a, de certa forma, a falar sobre o assunto. Defendem que o dever do assistente social é ouvir a criança sobre o assunto que ela quiser falar e, durante esta conversa, esperar que ela se sinta confortável para falar sobre o trauma em seu próprio tempo.

Ao discutir os objetivos do projeto Depoimento Sem Dano, coloca-se em questionamento o que realmente se deseja alcançar com a inquirição da criança, se uma prova mais completa e contundente, forçando o assistente social a extrair tudo o que puder da criança através da inquirição, ou se a proteção da criança ou adolescente traumatizada pela violência, respeitando seu tempo e o seu próprio processo de aceitação e internalização do ocorrido.

No parecer técnico emitido pela assistente social do TJSP, Eunice Teresinha Fávero (2008), ao Conselho Federal de Serviço Social – CFSS, a autora destaca o seguinte:

No DSD, que verdade se busca ou se prioriza? A verdade “descoberta” pelas disciplinas – para a garantia de direitos da criança e/ou adolescente ou para a punição do abusador? A fronteira entre a inquirição policial para a busca da “verdade” ou da “prova” e a investigação científica para esclarecimento de uma situação pode ser tênue, daí a necessidade do norte dado pelos princípios éticos. Uma avaliação técnica, se considerada como uma “verdade científica”, exige análise crítica, portanto, exige conhecimentos fundamentados para não dar margem a interpretações com base em juízos de valor. O DSD, enquanto testemunho com vistas ao processo penal do abusador, pode fugir de uma proposta que tenha a proteção como foco, em razão de todas as implicações que esse tipo de “inquirição” envolve, dentre elas, a responsabilidade dada à criança pela produção da “prova” ou produção da “verdade”, visando à punição do suposto abusador. Isto é, cabe a ela a responsabilidade maior em dar conta da formalidade processual ditada pela legislação penal. O que também pode encerrar uma violência do ponto de vista emocional – desse modo, contrária ao seu direito à proteção integral.

Como o Judiciário é parte integrante do Estado, e com poderes para adentrar a privacidade dos cidadãos, é importante considerar também até que ponto projetos dessa natureza não vão atingir privilegiadamente a população que vive em situação de pobreza, tendo em vista sua maior vinculação ao atendimento pelos órgãos públicos. Nesse sentido, vale a ponderação de Mioto (2004, p. 50), que, ao abordar a idéia de proteção posta na intervenção junto à população em diversos espaços de trabalho no âmbito do Poder Público, ou que executam programas a ele vinculados, observa que o direito à privacidade e o direito à proteção – pelo Estado – são colocados em choque no cotidiano da intervenção com famílias, pois esse último, ao mesmo tempo que fornece “recursos e sustentação às famílias”, movimenta “estratégias de controle”. Uma situação que se torna mais complicada “quando se observa que a permeabilidade dos limites da privacidade familiar é diretamente proporcional à vulnerabilidade social” (ibid.), na medida em que a família pobre está mais sujeita às “visitas domiciliares” em situações que envolvem suspeitas de violência, por exemplo, do que famílias que, por sua condição social diferenciada, conseguem manter sua privacidade, solucionando “suas violências” sem torná-las públicas (idem).

Já os defensores do projeto afirmam que a participação do assistente social é de suma importância para a proteção da integridade psicológica da criança, que é o objetivo do Depoimento sem Dano. A realização da prova mais real, completa e contundente é apenas um efeito colateral, um benefício secundário conseguido através da inquirição pela metodologia aplicada e mais um ponto a favor da aplicação da metodologia do Depoimento Sem Dano à inquirição de crianças e adolescentes.


CONCLUSÃO

Vários países como Argentina, França e África do Sul já utilizam mecanismos semelhantes ao Depoimento Sem Dano no trato com crianças e adolescentes dentro de processos judiciais onde devam ser ouvidos, observando sempre a adequação do profissional encarregado da inquirição da criança ou adolescente.

Embora ainda tenhamos um longo caminho a percorrer em se tratando da melhor forma de trabalhar o depoimento da criança ou adolescente dentro do processo judicial como vítima ou testemunha de violência, o projeto Depoimento Sem Dano foi um salto em direção a evolução das técnicas existentes.

Desde o ano de 2003 esta metodologia vem sendo aplicada com sucesso e, em todas as comarcas que utilizam desse método, a produção de provas tem transcorrido naturalmente, com uma maior redução dos danos causados à vítima durante a inquirição, respeitando sua maturidade e desenvolvimento, e com uma significante melhoria da prova colhida, resultando em um número maior de condenações nos casos de violência sexual contra crianças ou adolescentes em relação às ações que utilizam o procedimento tradicional.

Com a implementação do projeto pelo país poderão ser garantidos todos os direitos da criança e adolescente, o devido processo legal e a ampla defesa do acusado, além da obtenção da eficiência na colheita do depoimento. O projeto Depoimento Sem Dano tem o apoio de diversas entidades governamentais e não-governamentais, como a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH) e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

Considero a metodologia do Depoimento Sem Dano um grande avanço prático na defesa dos interesses do menor envolvido, como testemunha ou vítima, nos procedimentos judiciais, tendo seus direitos preservados, garantindo a proteção integral tão defendida por normas internacionais e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Porém, tais normas não encontram meios de serem implementadas nas regras processuais brasileiras. Defendo a conversão do projeto em Lei, esperando que logo seja aprovada no Congresso Nacional e transformada em procedimento padrão para a inquirição de crianças e adolescentes.

Mesmo compreendendo a posição contrária dos assistentes sociais, entendo que o Depoimento Sem Dano traga maiores benefícios do que malefícios. Embora contradiga alguns princípios da Assistência Social, como o sigilo profissional, olhando o quadro geral, os ganhos seriam infinitamente maiores. É necessário que a prova exista e, se o único meio de consegui-la for através do depoimento da criança ou adolescente que foi testemunha ou vítima do crime, melhor é que se faça a inquirição da criança com um profissional habituado ao trato com as mesmas, do que respeitar todos os princípios profissionais do assistente social, em detrimento da justiça e da justa punição do agente criminoso, que na maioria dos casos, onde o Depoimento Sem Dano não é aplicado, sai caminhando livremente.

O Depoimento Sem Dano tem se propagado no território nacional devido à sua total aplicabilidade e adequação aos fins a que se destina. Não se pode negar que o depoimento com esta metodologia é muito mais tranqüilo, transmitindo mais segurança e confiança para a criança, que se sente muito mais à vontade para prestar seu relato sem que seja algo agressivo para ela, sem que ela tenha que passar por mais um momento traumático, cercada por desconhecidos em uma sala que não fornece o conforto necessário para que ela fale sobre um acontecimento tão íntimo e doloroso que tenha ocorrido na sua vida.

A metodologia do Depoimento Sem Dano é inteiramente adequada às suas finalidades e de suma importância para a produção da prova, que é fundamental na apuração dos fatos e persecução da justiça, garantindo o devido processo legal, a ampla defesa e a garantia dos direitos da criança ou adolescente envolvidos neste processo.


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