A IMPORTÂNCIA DAS PEQUENAS COISAS
Geraldo Barboza de Carvalho
A importância das coisas não está no tamanho, mas no que representam no contexto de outras coisas. Deste ponto de vista, nada é pequeno ou grande. Coisas pequenas tornam-se grandes quando contextualizadas; e coisas grandes, insignificantes, quando fora do contexto. É que a importância das coisas está na função que desempenham na relação com outras coisas. Sob este aspecto, as menores coisas são mais importantes. Não se vê a linha que costura da roupa, mas só se admira sua beleza e funcionalidade. Mas, sem linha, a mais elegante das roupas é apenas um monte de retalhos. Não se vê o fermento na massa; mas, o bolo não cresce sem ele. A combinação de temperos que se diluem na comida é que faz sabor da comida. O alicerce de uma casa é oculto, mas sem ele, a casa rui. Fermento, linha, alicerce, temperos, coisas invisíveis, tornam-se fundamentais pela função que exercem no contexto onde se inserem. As coisas que são a felicidade do mundo ?carros luxuosos, palácios suntuosos deliciosos vinhos ? não existiriam sem os operários que as fabricam, transportam e vendem, não obstante a ingratidão e cegueira dos inconscientes e vorazes consumidores.
Isto nos ensina a mística das pequenas coisas. Sem as pequenas coisas e humildes pessoas, os grandes nada são, embora não o reconheçam. Uma casa é feita de dezenas de sacos de cimento, milhares de litros de água milhares de tijolos. Para fazer tijolo, bilhões de grãos de areia se juntam com água. Depois, bilhões de moléculas de água se juntaram com o cimento, barro e areia tijolos pra formarem a parede que, depois de feita, oculta todos. Mas, sem eles, paredes e casa não existem. A verdade é que, sem os pequenos, ninguém será grande. Os grandes que tentam subir sem os pequenos, cedo cairão. Até o Senhor dos senhores, o Santo de Deus, o Fruto Bendito do ventre de Maria pra ser acessível aos menores, se fez o Menor, Servo de todos, Pecador sem ter pecado, maldição por amor dos reais malditos. Ele assumiu tão seriamente a nossa fragilidade, que só depois de descer, rebaixar-se ao mais baixo grau, humilhar-se, se aniquilar até a morte, ressuscitou, foi exaltado e feito o Senhor. Ele ensina o que faz: "Quem quiser ser o maior, faça-se o menor; quem quiser ser o senhor, faça-se o servo de todos. Pois, chamais-me Senhor e Mestre. Eu o sou. Mas, não me prevaleço disto, renuncio a este direito e estou entre vós como Aquele que serve: lavando vossos pés e os enxugando, dando meu Corpo como comida e meu Sangue como bebida; dando a vida em resgate de incontável multidão, pra que todos tenham vida em abundância". Por não assimilaram a mística da pequenez, as pessoas menosprezam os pequenos e se ufanam de sua grandeza. Bastaria que prestassem atenção ao caos das cidades sem garis, coveiros, operários do serviço de água e esgoto; sem lavadeiras e faxineiras; sem feirantes e lojistas; sem agricultores e agropecuaristas. Todas essas classes de gente pequena é que garantem à população água e esgoto; energia elétrica; limpeza urbana, enterro dos mortos; produção de cereais, legumes, frutas, verduras, laticínios, gás de cozinha, roupa lavada, casa arrumada. As humildes pessoas têm importância ímpar na sociedade, embora seu serviço anônimo seja mal pago e não reconhecido. Se olhássemos com carinho e respeito quão importantes são os pequenos na vida do País, sob o prisma da função social de cada uma, veríamos desaparecer as diferenças sociais entre as pessoas. Do ponto de vista das funções, a pirâmide social e funcional deveria inverter-se: os da base estariam no topo; os do topo, na base. Pois, grandes de fato são os pequenos. E pequenos, de fato, são os se consideram grandes pelo poder econômico e político que possuem, à custa dos pequenos, e que pouco contribuem na produção do bem-estar da sociedade. Pois, os grandes consomem, gastam, destroem, depredam sem repor o que esbanjam. São cínicos estróinas, ignoram que seu fausto e estroinice vêm do trabalho dos pequenos que discriminam. O poema "O Operário em Construção" de Vinícius de Morais é um exemplo. Um humilde operário vendia seu trabalho, sua arte, seu ofício em troca de mísero salário. Depois da obra acabada, da matéria prima transformada em manufaturado, mercadoria, riqueza para o patrão, este ficava com quase todo o lucro ? a mais-valia da produção ? e pagava pequena percentagem como salário aos operários, que aceitavam satisfeitos o mínimo salário. Mas, continuavam pobres e o patrão enricava dia a dia. Mas, a distorção era evidente: um operário começou a ver coisas que ele e seus companheiros não viam. Estavam na cara e eles não as viam. Eram tão sérias, que o operário ficou espantado com o que viu. Começou a ver que sua marmita fria era o lauto banquete do patrão; que suas roupas simples eram os ternos de luxo do patrão e os belos vestidos da sua mulher; que o ônibus apertado em que viajava era o carro importado do patrão; que a cerveja e cachaça que bebia era o whisky do patrão. O humilde operário percebeu em um triz que sua pequenez fazia a grandeza do seu patrão. Tanto que, se deixasse de produzir carros, whisky, construir luxuosas mansões, fazer belas roupas todo o luxo do patrão desapareceria num átimo. Em suma, o humilde operário percebeu que grandes era ele e seus companheiros, que produziam as riquezas, os alimentos, as roupas do patrão e da Nação. Percebendo que o operário descobriu o segredo da sua riqueza, o patrão lhe ofereceu rápida promoção: posto de comando, aumento de salário por baixo do pano, fins-de-semana na casa do patrão, pra calar sua boca. Mas, e enojado com o cinismo do patrão e solidário com os companheiros, o humilde operário disse "não": rejeitou o obsceno suborno. O patrão furioso ameaçou demiti-lo. Mas o valente operário não cedeu, e disse "não". Aí o patrão usou a força contra ele, mas ele continuou dizendo "não". Então, o patrão o mandou castigar severamente, mas continuou dizendo "não". Logo depois ele morreu, mas deixou semeada na alma dos companheiros semente da justiça e estes também disseram "não" ao perverso patrão. Conscientes da exploração que sofriam e decididos a tomar parte na riqueza que produziam, que só beneficiava a família do patrão todos os operários tornaram-se cidadãos com direitos e deveres. Aí, o patrão reconheceu o valor dos operários e melhorou o salário de todos. Prova que grandes são os pequenos, que produzem, criam. Pequenos são os que não produzem, só consomem.
É também ilustrativa desta fascinante dialética a estória parabólica da hierarquia no corpo humano. Certo dia, os órgãos se reuniram para elegerem a autoridade maior do corpo. Os órgãos nobres se adiantaram e cada um procurava convencer os outros que era o melhor candidato. O cérebro disse: "Quero ser eleito presidente do corpo, pois em mim residem inteligência, razão, pensamento, o bom senso, coisas necessárias pra bem administrar". O coração falou: "De fato, o cérebro raciocina, planeja, administra o corpo. Mas, se eu não bombear sangue, ele não funciona nem pode governar nada. Portanto, o melhor candidato sou eu". Por sua vez, os pulmões disseram: "Sem ar, órgão algum do corpo sobrevive. O candidatado ideal sou". Cada órgão apresentava-se como o melhor candidato a gerir o corpo. Disputa feroz, eles não se entendiam. Pior: os órgãos menores sequer foram chamados a opinarem. Órgão nobre algum se lembrou do pâncreas, da bexiga, dos rins e demais órgãos menores. Aí, de repente, o mais humilde dos órgãos tomou a palavra e lançou-se candidato a governo do corpo. Espanto geral! Todos os órgãos, até os menores, protestaram com veemência contra a ousadia do mais inferior dos órgãos do corpo. "Não podemos aceitar ser comandados por um órgão ao qual todos se referem com zombaria, sem respeito: ?fiofó, furico, finfa, fueiro, rosca, oritimbó?. Não podemos admitir isto". Unânimes e uníssonos, sob protesto, todos rejeitaram, in limine, a candidatura do humilde e prestativo ânus, dos mais dedicados servidores do corpo humano. Humilhado, mas inconformado, falou o ânus: "Vejo que a rejeição à minha candidatura é absoluta: do menor ao maior, órgão algum me aceita como comandante maior do corpo. Mas, o buraco é mais embaixo, não é bem assim; vocês inda não entenderam quem de fato manda no corpo: provarei que o rejeitado manda em todos vocês". Recolheu-se sob vaia, enquanto os órgãos nobres, com o apoio dos menores, continuaram discutindo, buscando acordo sobre quem seria o melhor candidato a presidir o corpo. No meio da conversa, os intestinos quiseram evacuar. Ao chegarem ao reto, as fezes pararam, impedidas de irem além. O ânus estava em greve política, só passaria o que ele permitisse. Nem um aliviante pum poderiam ir além do reto. Ordem irrevogável do porteiro do corpo. Os intestinos e outros órgãos protestaram incontinenti exigindo direito de livre trânsito. Mas o ânus bateu é: ?greve é greve?. Vendo que os protestos eram inúteis, pediram ao cérebro que usasse o raciocínio, seu poder de persuasão e convencimento pra vencer a resistência do abelhudo furico, que não cedia um milímetro: "ou reconhecem minha candidatura, ou a greve continua". Pediram ao coração pra usar jeitinho, ternura, amor pra amainar tanta dureza. Aproveitando o ensejo, desabafou o ânus: "Somente hoje lembrou-se de me dar carinho, por interesse. O tempo inteiro me tratam com desprezo. Se não me elegerem presidente do corpo, nada feito". A confusão entre os órgãos só crescia. As tripas começaram a dar nó; era iminente o perigo de diverticulite, infecção intestinal; aumentou o ritmo da respiração; o coração palpitava com taquicardia. Cada órgão apresentava um problema, cuja solução dependia exclusivamente de o ânus ser eleito a autoridade maior do corpo. Mas os orgulhosos órgãos não aceitavam entregar o poder a um sujeito tão insignificante. Os incômodos só cresciam, sem solução à vista. Em última cartada, a colérica vesícula biliar explodiu contra o ânus; o cérebro apelou pra o bom senso; o coração, pra solidariedade; os pulmões suspiravam inquietos; os ouvidos zumbiam; a pele, com calafrios. O organismo todo virou pandemônio. Mas não tinha jeito: o ânus permanecia firme. Aí o coração, profundamente atormentado e magoado, as veias sangrando, os olhos cheios de lágrimas, os intestinos em revolução de borborigmos, os pulmões ofegantes, todos os órgãos entraram em pânico. Impasse geral, sem acordo viável. Jogando última cartada, pra removerem o ânus do propósito de tomar o poder no corpo, todos os órgãos, de conserto, tomaram a aparentemente conciliatória, mas humilhante decisão: ajoelharam-se e prostraram diante do pequeno e pouco vistoso órgão, suplicando-lhe misericórdia, na extrema tentativa de fazer a paz voltar ao organismo. Mas o ânus não se comoveu. Bateu firme o pé: "Quando me escolherem presidente do corpo, eu abro. Sem isto, não há acordo". Extenuados, sem mais argumentos, vencidos pelo cansaço, aconselhados pelo coração e sob o comando do cérebro, os órgãos tomaram a vexatória, porém a mais sensata decisão: reconhecer o senhorio de sua majestade o ânus sobre o corpo inteiro. Constrangidos, mas certos que era a única solução sábia e viável, convocaram reunião extraordinária de todos os órgãos com a presença do ânus, sob a presidência delegada do cérebro, eleito porta-voz e intérprete "ad hoc" de seus pares. Decidiram: "Nós, maiores e menores órgãos, premidos e espremidos pelas evidências, reconhecendo a importância estratégica do senhor ânus sobre todo o corpo; reconhecendo, outrossim, que, sem a participação dele, o organismo não funciona direito; reconhecendo que ele é nosso companheiro e irmão, cujo trabalho é de suma importância pra o sossego e bem-estar geral do corpo; reconhecendo sua artilharia e alto poder de fogo, e que o destino de todos nós está em boas mãos, resolvemos entregar as chaves da administração de todo o corpo ao bravo irmão o cu. Revoguem-se as disposições contrárias". Assim, sob aplausos, o menor dos órgãos foi coroado rei e senhor de todo organismo humano, por decisão unânime dos seus pares. Assinada a ata, o cu tomou posse e até hoje manda no corpo. Provou-se, em definitivo, que a importância das coisas não está no seu tamanho desligado das outras coisas, mas no papel que cada uma exerce no contexto em que se insere e atua. Cada coisa ocupando seu lugar e exercendo seu papel pra o bom funcionamento do conjunto, cada uma ganha importância relativa, todas se beneficiam com as outras, da maior à menor. Fora do contexto funcional e serviço aos outros, ninguém, nada tem importância e poder, é grande. Pois, o poder maior está no maior serviço prestado ao conjunto maior de pessoas ou coisas. Assim, aprendi que a importância das coisas é relativa ao serviço prestado. Uma turbina da Usina Hidroelétrica de Xingó é milhares de vezes maior que botões que a ligam e desligam. Mas, sem eles, ela não funciona e milhares de pessoas ficam sem energia. Os botões são quase nada comparados com as turbinas. Mas, sem eles, as potentes turbinas de 550 megawats cada não produzirão energia. Ficando, uma vez mais, provado que o poder está na base das coisas, nos elementos, na pequenez. Na hora que entendermos isto, acabará a briga pelo poder e reinará a paz no mundo. Pois, o poder está no serviço certo ao bem-estar coletivo. O princípio da autoridade é o serviço. Autoridade vem de ?augere?, crescer, subir. Daí vem auge, o ponto mais elevado. Servir é promover crescimento, bem-estar de outros; dar a outros oportunidade de se expandirem, sem preocupação se concorrem comigo. Se cada um faz sua parte, de antemão sabemos que todos serão beneficiados. Quando todos servem bem, todos serão servidos, sem necessidade de concorrência nem luta pelo poder. Quando construíam a Catedral de Chartres (França), perguntaram a um operário qual a sua função na obra. Sua resposta foi lapidar: "Estou construindo uma catedral", tão consciente estava da importância do seu humilde trabalho pra o êxito da obra toda. No Japão, professores do ensino primário são remunerados como os de nível superior. Se estes produzem saber científico, aqueles educam cidadãos de hoje e amanhã, que representam patrimônio superior a qualquer ciência. Por isso, merecem todo respeito e ótima remuneração. Definitivamente, o poder está nos pequenos.