A importância da dramaturgia de Maria Ribeiro e Josefina Azevedo para a literatura brasileira.
Luiz Roberto Zanotti


1. A importância da autoria feminina

A "redescoberta" das obras de Maria Ribeiro e Josefina Azevedo são de suma importância para a reavaliação da história da literatura no Brasil do século XIX a partir de uma perspectiva feminista. A reavaliação do cânone literário no Brasil advindo de um conceito de nacionalismo e de uma história da literatura brasileira eminentemente masculina abre-se para a discussão a partir da instauração de um novo paradigma da identidade na pós-modernidade .
Neste novo paradigma advindo de uma mudança estrutural nas sociedades no final do séc. XX, que acarretou a fragmentação da identidade em classe, gênero, etnia, raça, etc, com um deslocamento ou "descentração" do sujeito, com a perda de um "sentido de si" estável, a revisão destas autoras permite reler o momento em que o país tinha como objetivo se tornar uma nação , que apesar de sua difícil definição, está intrinsecamente ligado à literatura como representação social através dos autores que aparecem como monumentos de um patrimônio nacional, da aplicação da literatura à vida, na formação dos homens e cidadãos e, portanto, na base da consciência nacional.
Assim, o cânone advindo deste "centramento" no conceito de nacionalismo e o processo de formação de uma história da literatura brasileira, ou seja, de uma cultura brasileira eminentemente masculina abre-se para a discussão a partir da redescoberta das escritoras mencionadas. Muzart mostra que o aparecimento da literatura feminina pode ser vista como o aparecimento de "outras verdades" de uma tradição histórica, de provas concretas que irão fazer tremer os alicerces da história literária, à medida que as perspectivas destas escritoras provocam uma ruptura ao introduzir a alteridade, a diferença, abrindo-se o espaço para o questionamento deste passado, do valor dos critérios de objetividade e cientificidade, reivindicados por este sujeito "centrado", um sujeito neutro, não posicionado, acima do bem e do mal.
É a partir da leitura de outras vozes posicionadas no mesmo tempo e espaço, diversa sexual e politicamente, oferecendo novos textos numa nova relação com a realidade que devemos avaliar a literatura brasileira, pois como diz Elliot, o cânone dos grandes escritores não é estável, a entrada de "novos escritores" altera todo o sistema, ou seja, modifica todo o sentido e valor das obras anteriores .
Ao comentar o livro de Muzart, Schmidt e Ramos dizem a respeito do conceito benjaminiano da história como um amontoado de ruínas: não há, diz Benjamin, documento de cultura que não seja também documento de barbárie. Assim, o trabalho de resgate das autoras desaparecidas de nossa história literária corre contra a ação corrosiva do tempo, busca por entre as ruínas o legado daquilo que desapareceu mostrando que o que está morto na história pode ressuscitar dentro de uma relação hermenêutica que faz a ponte entre a leitura atual e o contexto original, trazendo a reflexão contemporânea sobre o papel político que a construção dos cânones desempenhou em toda tradição cultural, que priorizou o centramento (uma perspectiva única) em detrimento de toda uma literatura feminina.
Estes cânones intimamente associados à uma tradição cultural tem que ser repensada, uma vez que trazem reflexos para o presente, como bem nos lembra Giddens , para quem: "A tradição, digamos assim, é a cola que une as ordens sociais pré-modernas". A tradição envolve, de alguma forma, controle do tempo."Em outras palavras, a tradição é uma orientação para o passado, de tal forma que o passado tem uma pesada influência ou, mais precisamente, é constituído para ter uma pesada influência para o presente".
A análise das autoras nos permite, além de ampliar e redimensionar a história literária brasileira, mudar nossa concepção dessa mesma história a partir das perguntas que estas escritoras fizeram (Quem lê, porque, etc), adotando uma nova perspectiva, na defesa da alteridade, na possibilidade do sujeito ter o seu próprio discurso. Cliffort aponta para a dialogia na Antropologia, pois quando um sujeito fala no lugar de outro, por mais que não assuma, fala desde sempre de uma perspectiva já valorada por sua própria representação ou pela visão de mundo daquele que o representa. Nesse sentido, representar tem significado, de modo geral, silenciar e marginalizar o outro.
Enfim, é importante notar, como nos aponta Schimidt e Ramos que apesar da obra das duas autoras em questão terem muitos pontos de contato, não existe uma identidade comum a elas, e entre elas e as demais autoras de sua época, que segundo variedade de pensamentos que povoaram nosso passado, desde a adesão mais entusiasta à ideologia colonial até o ímpeto revolucionário; da obediência estreita aos ditames da convenção literária da época até a sua aberta paródia, do conformismo (a sério ou não?) às rígidas hierarquias sociais e até o desabafo indignado da escritora anônima:
"Triste sorte a nossa. Para alguma cousa melhor nascemos!".

2. O contexto

Até a vinda da família real de Don João para o Brasil, reinava o paradigma da utilização do corpo da mulher apenas como mãe, o que obviamente a impedia de fazer um uso mais heterodoxo do mesmo e utilizá-lo para as funções de atriz, escritora, concubina, etc. Com a chegada de Dom João e dos novos ares de civilização, as mulheres começaram a se movimentar por vários espaços que eram de cunho eminentemente masculino, e sem dúvida, uma primeira conquista foi a fundação de um jornal de perspectiva feminina em 1862.
Assim, uma das primeiras atividades dentro deste novo paradigma da Mulher apareceu através da criação dos periódicos de mulheres com o claro objetivo de conquistarem direitos em relação à educação, à profissão e, finalmente, o direito ao voto.
O direito à educação que era, até esta época, primordialmente, para o casamento, para melhor educar os filhos, deveria passar à incluir também o direito de freqüentar escolas, daí decorrendo o direito à profissão, e com a chegada do final do século, iniciou-se a luta pelo voto, com o sufragismo passando a ser o mote de luta do feminismo, e também a primeira estratégia formal e ampla para a política das mulheres.
Resumindo, em praticamente todos os escritos das mulheres da metade do século ao seu final, encontra-se a luta pelo direito à educação e à profissão, com poucas exceções, como a gaúcha Andradina de Oliveira que desenvolve o tema do divórcio em seus romances.
É importante perceber, que no paradigma anterior, a freqüência do teatro era marcada por prostitutas, ou seja, mulheres sérias não eram bem vistas, nem como espectadoras e nem como atrizes, porém com a chegada da corte real torna-se nobre a presença das mulheres no Teatro e permitindo acontecer a irrupção da autoria feminina no palco brasileiro.
No seu nascimento esta dramaturgia está ligada ao romântico, o que poderíamos chamar de um drama romântico colonizado, num texto que mais do que simplesmente traduzido, aparece numa estética que re-significa este texto original que, para Aderaldo Castelo, está intimamente ligado a um movimento dialético.
Esta "abertura", presente nos hábitos e costumes sociais, aliada a um movimento de renovação do palco brasileiro empreendida por um grupo de escritores e intelectuais, reunidos em torno de uma sala de espetáculos e do ideal de dar existência ao teatro nacional abre-se o espaço para romper-se o silêncio das mulheres no campo da dramaturgia.

3. O teatro de Maria Angélica Ribeiro

O teatro político, dentro deste momento histórico, vai firmar a possibilidade de Maria Ribeiro começar a escrever para o teatro. A reconhecida pioneira na dramaturgia feminina vai trabalhar principalmente o subtexto, os protestos e reivindicações que outras escritoras já faziam pela imprensa em relação à situação social opressiva vivida por suas contemporâneas contribuindo sobremaneira à formação da dramaturgia nacional, e mais especificamente a autoria feminina.
Nesta época, os autores não mais se submetem aos exageros românticos e ao ideal de liberdade, existe um retraimento, com o ideal destes autores passando para uma ordem da razão num ideário estético em que se busca fazer uma critica aos costumes da época, apontando as suas falhas e através de uma rígida disciplina moral corrigi-los.Um dos autores que busca incessantemente esta "regeneração da sociedade", bem como a instituição de uma dramaturgia nacional é o escritor José de Alencar.
É na sombra deste tipo de dramaturgia, que Maria Ribeiro vai produzir os seus textos, e em particular a obra "Cancros Sociais", na qual a autora no sentido de um interlocutor, traz um diálogo travado abertamente com José da Alencar e sua peça teatral "Mãe".
Nesta peça teatral, José de Alencar busca incluir o Brasil no hall dos paises civilizados, denunciando a escravidão, mas por outro lado, efetuando um "branqueamento " dentro de uma postura reacionária. Maria Ribeiro vai perceber esta postura "conservadora" na leitura que efetuou deste texto e vai replicá-lo através de um discurso "submerso".
Ribeiro vai emprestar a palavra de seus interlocutores, não para plagiá-la, obviamente, mas para desmontar-lhes o discurso, reescrevendo-o e utilizando o palimpsesto, ou seja, por baixo da parte escrita que é lida, existe uma outra camada de ordem mais restrita. Este efeito é conseguido através da imitação, da replica e de uma resposta obtida pela reescrita do texto de José de Alencar, que está obviamente comprometida com a visão masculina daquele momento, um tempo em que os ricos senhores que vendiam os próprios filhos tidos com escravas.
È importante notar o contexto político que vai servir de fundo para Alencar. Em 1851 Caetano Soares observa a necessidade da alforria da mãe escrava e o filho tido com o senhor . A natureza política de Mãe também está presente no Acórdão (1853) pelo qual a "família escrava" de um senhor ficava enfaticamente destituída do direito à liberdade. O sentido metafórico do suicídio de Joana não podia ser mais claro, ela é a esperança de liberdade para todas as escravas na sua situação, liberdade que é "assassinada" a partir de um Acórdão que destituía qualquer possibilidade de alforria para estes casos, mostrando o abuso de autoridade para estas crianças nascidas neste panorama.
Dentro deste quadro do realismo, para Ribeiro, o lado moral pode ser visto, como os homens sendo a causa primordial de todos os erros femininos, o que fica claro na passagem em que Matilde conta da gravidez de Marta enganada pelas promessas de amor, um ponto de vista evidentemente feminino:
- "O senhor, nas expansões de sua embriaguez. Com as cartas que tem desse miserável, sobre a questão Penafiel & Filhos, obrigue-o a reparar a honra da mulher a quem seduziu; está viúvo, pode fazê-lo. E, apesar de um título, obtido por donativos feitos a uma nação estrangeira, será Marta quem descerá até ele ".
Maria Ribeiro, utilizando-se do gênero melodramático, num enredo tortuoso, cheio de peripécias, revelações, encontros, conflitos internos, faz com que todos os personagens se encontrem no Rio de Janeiro, porém mais do que um melodrama abolicionista, o texto submerso aponta para o protesto contra a situação aviltante da mulher escrava na sociedade brasileira oitocentista, e contrariamente a José de Alencar, que em Mãe, discute a questão excêntrica da mulher mestiça que é escrava do próprio filho, ela busca mostrar a altivez que pode ser encontrada na fala de Marta, ao negar-se obter a riqueza no casamento com uma pessoa desonesta:
"Vale mais a mediania, a pobreza mesmo, honrada, do que a opulência adquirida por meios reprovados pelas leis e pela moral! A origem da riqueza desse homem não me é desconhecida ".
Ribeiro reconta a história do órfão que recebe como escrava a própria mãe e é criado por ela sem saber dos laços de sangue os unia, mas enquanto no final da peça de Alencar, Joana, a mãe-escrava, se mata, com uma dose de veneno, para poupar ao filho, um bem-sucedido estudante de medicina, os vexames e o repúdio social que o atingiriam caso viesse a público o segredo de suas origens, na versão de Ribeiro ela continua viva e feliz com a família.
Neste ponto se dá uma grande divergência entre a visão de Alencar, que já na dedicatória da peça "Rainha ou escrava, a mãe é sempre mãe" numa perspectiva eminentemente masculina, onde a mulher sacrifica a própria vida para o bem do filho. Nesse sentido, parece justificar-se a crítica de que José de Alencar, longe de estar preocupado com o problema social da escravidão e suas implicações morais, jurídicas e políticas, teria escolhido uma escrava como heroína do drama para mostrar uma situação-limite que lhe facilitava comprovar exemplarmente o alcance do amor materno .
Afastando-se do modelo realista francês e de Alencar, conforme Souto-Mayor , Ribeiro em "Um dia na opulência" vai buscar na estética do riso uma possível saída para superar a rigidez e a monotonia do modelo francês, sugerindo que a autora mais do que discutir as idéias e levar para a ribalta as primeiras manifestações da consciência feminista, quisesse também sugerir, nas entrelinhas de sua divertida comédia, um novo formato para aquele gênero teatral, menos maçante que o da comédia realista importada, e ao propor um olhar menos carrancudo em cena, talvez pudesse ser até mais eficiente.

4. O Teatro de Josefina Álvares de Azevedo

Esta estética do riso aparece na peça "O voto feminino" da dramaturga e jornalista Josefina Álvares de Azevedo, fundadora do periódico feminista "A Família". Este periódico fundado em São Paulo em 1888 contou com a colaboração de muitas feministas, tendo circulado por quase dez anos.
No jornal, Josefina publicou uma série de artigos sobre a questão principal que a movia, o sufragismo, reivindicando a igualdade prometida pela República, recém-implantada.Sua obra jornalística e literária, produzida essencialmente em função da sua militância pelos direitos da mulher, é um retrato quase completo do que foi sua vida. Sua prosa (artigos, contos, esboços biográficos, traduções), seus versos, sua dramaturgia ? praticamente tudo o que escreveu e publicou foi com um único objetivo: intervir na ordem social e política do seu tempo de modo a criar condições mais justas e igualitárias para os dois sexos.
Nas páginas desse jornal, a primeira causa que defendeu em prol da elevação do status das mulheres na sociedade brasileira, a exemplo do que também fizeram algumas outras feministas pioneiras, foi a educação. Radical como talvez nenhuma outra de suas companheiras do final do século XIX, reivindica para o sexo feminino um tipo de educação que desenvolva sua capacidade para exercer não só a direção da família, mas também as mais altas funções de Estado.
Após a proclamação da República, A Família passa a defender também o direito de voto para as mulheres e sua redatora-chefe faz dele um autêntico veículo panfletário. Entre várias outras matérias relacionadas, publica uma série de artigos sob o título O direito de voto, neles expondo, sobretudo sua convicção de que, sem esse direito, a igualdade prometida pelo novo regime político não passava de uma utopia.
Daí em diante, suas iniciativas serão no sentido de ampliar ainda mais e principalmente diversificar os espaços utilizados para suas batalhas pelo direito eleitoral das mulheres. No início de 1890 publica o opúsculo intitulado Retalhos, em que reúne vários dos seus artigos já publicados no jornal, entre eles os da série citada e outros relativos à educação feminina.
Pouco depois, instigada pela negativa do governo em incluir a lei do voto feminino no Projeto da Constituição que se elaborava, escreve uma comédia intitulada "O voto feminino".
Nesta peça, a autora lutou pela causa empregando as armas do humor, ela escolheu o cômico como cênico para defender sua tese de que, sem os direitos políticos do voto, a igualdade social prometida pelo regime republicano, não seria mais que "uma utopia, senão um sarcasmo atirado a todas nós".
A peça embora bastante aplaudida só faz uma única apresentação, e a comédia não volta ao palco, reaparecendo em cena, pouco tempo depois, de forma impressa, como livro e como folhetim nos rodapés de seu jornal. Mas apesar de todos os esforços, seu projeto fracassou, pois as mulheres brasileiras só conquistaram o direito de voto em 1932.

5. Conclusão

Talvez, a maior diferença entre Maria Ribeiro e Josefina seja que, a segunda não tinha maiores preocupações literárias (e sim políticas) o que acaba por se evidenciar na "fraqueza" do seu texto em comparação com Ribeiro, porém não se pode negar a graça dos seus diálogos, e que suas personagens, assim como os de Maria Ribeiro são bastante ricas.
Com relação ao humor que aparece em "O voto feminino" como não tivemos oportunidade de conhecer o texto "Um dia na opulência" de Ribeiro, não podemos afirmar que seu humor é afiado e inteligente como o de Josefina, mas parece certo que os recursos formais e estilísticos, que no futuro serão conhecidos como "agit-prop" são uma marca inconteste do estilo pessoal de Josefina como a passagem em que Inês fala do direito feminino:
" São insuportáveis estes monstros de egoísmo! E quando se lhes fala em concorrermos com eles na vida pública, é um Deus nos acuda; fazem logo vir o céu abaixo... ".
No entanto, Maria Ribeiro, assim como Josefina, está preocupada com a situação opressiva vivida por suas contemporâneas, e desta forma também apresenta uma temática que expõe suas idéias e reivindicações sobre a realidade social, mas Josefina definitivamente apresenta uma critica feminista mais implícita, como no dueto de Esmeralda e Inês:
"Caia o homem! Mulher acima!/ Homem abaixo é o que se quer. /Pois que é chegado o reinado./ Glorioso da mulher! "
Assim, nesta sua forma de uma crítica mais aberta, Josefina chega a se referir aos homens, membros do parlamento, como seres perturbados, egoístas que os torna inaptos para as grandes generosidades para as mulheres, como a liberdade de escolha em questões que envolvam os interesses da sociedade como um todo.
Mas embora não desempenhe uma crítica tão direta ao "machismo", Maria Ribeiro, além da crítica à escravidão, advoga a causa da mulher escrava e, posiciona-se a favor da idéia de que o desquite não significava a perda das virtudes femininas e, igualmente a Josefina, não hesita em apontar os homens como causa primeira dos erros da mulher. Enfim, dentro do contexto, em que cada uma elaborou a sua obra, é passível de se afirmar que estas autoras produziram um material de extrema valia para o redimensionamento da literatura brasileira, bem como ofereceram admiráveis contribuições para a discussão sobre as igualdades de direito das mulheres na sociedade brasileira.