A Ilegitimidade da Atuação do Ministério Público na Defesa dos Interesses Individuais da Saúde


Introdução:

O presente artigo tem como objetivo precípuo analisar a ilegitimidade da atuação do Ministério Público na defesa dos direitos individuais à saúde. Justifica-se a discussão do tema em virtude do crescente posicionamento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que o Ministério Público possui legitimidade ativa para a defesa dos direitos individuais afetos à saúde, independentemente da qualidade do titular do direito. Ademais, será abordado também o direito a saúde e seus aspectos constantes na Constituição Federal de 1988.

 Aspectos Principais do Direito à Saúde

 Como é cediço, o direito a saúde é um direito universal garantido a todos, pois cada cidadão possui direito a um tratamento digno, de acordo com o seu estado atual, independentemente de sua situação financeira.

A saúde passou por diversas mudanças principalmente no aspecto Legislativo, através da evolução da segurança constitucional. Com o decorrer do tempo, as Constituições anteriores passaram por transformações o que veio a desencadear os direitos hoje garantidos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Atualmente, a Constituição Federal coloca a saúde como um direito intrínseco à seguridade social, cujas ações e meios se destinam a torna-la eficaz. Consoante os artigos 196 e 197 da CRFB/88, a saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a reduzir os riscos de doenças e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

A saúde possui duas vertentes. Nesse sentido, pertinente é o comentário de José Afonso da Silva (SILVA, p.362, 2005):

 uma de natureza negativa, que consiste no direito  a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenham de qualquer ato que prejudique a saúde; outra de natureza positiva, que significa o direito às medidas e prestações estaduais visando a prevenção das doenças e o tratamento delas.

Dessa forma, percebe-se que o direito a saúde é um direito extraordinário e relevante à vida humana, elevado à condição de direito fundamental.

 O Ministério Público na Constituição Federal

 Nos termos do artigo 127 da Constituição Federal, o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

A ordem jurídica e o regime democrático constituem dois dos mais importantes pilares do Estado de democrático de direito que ainda está em construção. Esse compreende todas as conquistas atribuídas ao Estado Liberal e ao Estado Social de Direito. Nesse sentido, pode-se dizer que o Estado de Direito é aquele em que os poderes públicos são regulados por norma geral e devem ser exercidos no âmbito das leis que os regulem, salvo o direito do cidadão de recorrer a um juiz independente para fazer com que seja reconhecido e refutado o abuso e o excesso de poder. O Estado democrático de direito exige a existência de juízes e membros do Ministério Público independentes. Por outro ângulo, importa determinar as dimensões do que seja a expressão indisponibilidade, predicado que confere legitimidade para a atuação do Ministério Público. Urge dizer que a indisponibilidade são todos os valores superiores, essenciais e fundamentais para a sociedade. Dentro desse conjunto de valores estão inseridos os direitos e garantias fundamentais, os valores atinentes a existência do Estado e do pacto federativo, dentre outras dimensões ligadas em torno dos direitos humanos consagrados no âmbito internacional.

A indisponibilidade é sinônimo de interesse geral da sociedade, do Estado enquanto comunidade política e juridicamente organizada. A indisponibilidade de um direito pode recair em qualquer ramo ao qual este direito esteja vinculado, pouco importando se a matéria diz respeito ao direito de família, ao direito do trabalho ou mesmo se esteja incluída no âmbito administrativo ou constitucional.

O caráter de indisponibilidade a um interesse não é a sua natureza pública ou privada, mas tão-somente a sua essencialidade social, que é tida por existente toda vez que uma norma ou regra jurídica for considerada de ordem pública. Com isso, indisponibilidade é tudo que tenha haver com a essencialidade social do interesse a ser defendido.

Sendo assim, os valores que compõem o núcleo do Estado Democrático de Direito e da ordem jurídica democrática formam um conjunto de direitos que representam os fins e os ideais da República Federativa.

 A Ilegitimidade da Atuação do Ministério Público na Defesa do Direito Individual à Saúde

 Conforme exposto, o fundamento precípuo da atribuição ministerial para a defesa do direito individual à saúde encontra-se no artigo 127, caput, que dispõe que incumbe ao Ministério Público a defesa dos interesses individuais indisponíveis. O direito a saúde é um direito social e fundamental do homem, constituindo também um dever do estado que promoverá políticas públicas para a sua efetivação.

O direito a saúde é positivado no ordenamento jurídico brasileiro com um direito fundamental social, conforme o artigo 6º da Constituição Federal. Ademais, de acordo com o artigo 196 da Constituição Federal, a saúde é um direito de todos e um dever do Estado. Por necessitar da atuação do Estado, implementando políticas públicas, os direitos sociais acabam ficando limitados a uma atuação dos legisladores e governantes.

Consoante a previsão constitucional, o Ministério Público pode, independentemente da qualidade do titular do direito, instaurar procedimentos administrativos, expedindo notificações e requisitando informações, visando assegurar o direito individual à saúde. Da mesma forma, a atribuição para intervir e acompanhar processos judiciais em que discutido direito individual à saúde decorre diretamente da norma constitucional.

Com efeito, não basta a previsão genérica da Constituição Federal para atribuir a legitimidade ativa ao parquet para a defesa de direitos individuais indisponíveis. É indispensável à existência de lei ordinária atribuindo legitimidade processual ao órgão ministerial. Nesses termos, conclui-se que o comando constitucional atribuindo ao Ministério Público à defesa dos direitos individuais indisponíveis, dentre os quais o direito à saúde, deve ser interpretado de modo que o Ministério Público deve utilizar os instrumentos à sua disposição para a defesa destes interesses (ações coletivas que produzirão reflexo nos direitos individuais, atuação judicial como custos legis, atuação administrativa etc), e não de modo a criar uma legitimidade processual excepcional que prescinde de previsão legal.

De acordo com uníssono entendimento doutrinário e jurisprudencial, O Ministério Público tem legitimidade para a defesa de direitos individuais indisponíveis da criança e do adolescente em virtude de disposição expressa do art. 201, VIII, do Estatuto da Criança e do Adolescente; em relação aos idosos, em virtude do disposto no art. 74, II e III, da Lei 10.741/2003; legitimidade para o ajuizamento de ação de investigação de paternidade em virtude do disposto no art. 2º, § 4º, da Lei 8.560/1992, dentre outros. Antes da publicação destas leis, o Ministério Público não tinha legitimidade para o ajuizamento de ação judicial na defesa destes direitos, o que demonstra que não basta a previsão constitucional incumbindo ao Ministério Público a defesa de direitos individuais indisponíveis para que este tenha legitimidade para o ajuizamento de ação referente a qualquer direito individual indisponível. Há uma diferença entre a previsão constitucional de atribuição do dever de defesa destes direitos (defesa esta que pode ocorrer de diversas formas, dentre elas o ajuizamento de ações coletivas, a intervenção como custos legis em processo judicial e a atuação no âmbito administrativo) e a atribuição de legitimação processual para a defesa destes direitos, por lei ordinária de cunho processual, em situações específicas. Nesses termos, conclui-se que o comando constitucional atribuindo ao Ministério Público a defesa dos direitos individuais indisponíveis, dentre os quais o direito à saúde, deve ser interpretado de modo que o Ministério Público deve utilizar os instrumentos à sua disposição para a defesa destes interesses (ações coletivas que produzirão reflexo nos direitos individuais, atuação judicial como custos legis, atuação administrativa etc), e não de modo a criar uma legitimidade processual excepcional que prescinde de previsão legal.

Comumente, o Ministério Público ajuíza ações civis públicas, buscando o atendimento de um único indivíduo, com a posterior extensão dos efeitos da decisão a todos os cidadãos de território que eventualmente possuam a mesma enfermidade ou necessitem dos mesmos medicamentos, acarretando grave risco de lesão à economia publica e ferindo a discricionariedade administrativa.

O desenho institucional do Ministério Público realizado pela Constituição Federal de 1988 é de órgão de defesa da sociedade. Assim, na área cível a instituição se caracteriza primordialmente pela atuação judicial como parte na defesa de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos em Juízo, já que se trata de atuação com grande repercussão na sociedade. Na defesa judicial de direitos individuais indisponíveis a atuação institucional é basicamente como custos legis, zelando para que os interesses sejam respeitados, e não como parte. Como é cediço, apenas excepcionalmente o Ministério Público atua como parte nas hipóteses de defesa de direito individual indisponível, quando existe expressa previsão legal atribuindo legitimidade. O alargamento sem limites da atribuição do parquet para a defesa destes direitos enseja um desvirtuamento do modelo institucional traçado pela Carta Magna.

 Conclusão:

Face ao exposto, verifica-se que a Constituição Federal concedeu expressamente atribuição ao Ministério Público para a defesa do direito individual à saúde, independentemente da qualidade da parte, na esfera administrativa, de forma geral, e na esfera judicial, como custos legis, nas hipóteses em que há previsão legal, por exemplo, quando o titular do direito é uma criança, adolescente ou idoso.

Na ausência de autorização legal, a atuação do Ministério Público na defesa dos interesses individuais afetos à saúde, contraria a estruturação da instituição realizada pela Constituição Federal de 1988, tornando ilegítima a atuação do parquet.

Referências Bibliográficas:

 CARVALHO, Kildare Gonçalves de Carvalho. Curso de direito constitucional positivo. 11.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010;

 DUARTE, Marina Vasques. Curso de direito previdenciário. 3.ed. São Paulo: Verbo Jurídico, 2010;

 MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. 8.ed.São Paulo: Saraiva, 2012;

 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 26.ed. São Paulo: Saraiva, 2013;

 NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 5.ed. São Paulo: Método, 2009;

 SILVA, José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo. 25.ed. São Paulo: Saraiva, 2005.