A Ilegalidade da Trava Bancária na Nova Sistemática de Recuperação Judicial

Por definição, ilegal é o ato ou fato exteriorizado no mundo fenomênico que sob a ótica jurídica emerge e subsiste ao arrepio de norma impositiva emanada do Estado, enquanto promovedor da paz e social e liberdades individuais. Sua existência no Direito, em sendo contrário a este deve ser de pronto extirpada, sob pena de coexistir indevidamente no ordenamento jurídico a tutela de interesses contrários.

Não que se inadmita a coexistência de disposições conflitantes no Direito. É o que ocorre na sistemática processual quando autor na petição inicial e réu na contestação deduzem pretensões contrárias entre si. O que não pode haver é a admissão de normas positivadas que resguardem interesses controversos, haja vista que o ordenamento jurídico é uno, indivisível e completo como bem preleciona o mestre e teórico desta ciência humana, Noberto Bobbio.

Tarefa dos operadores do Direito, em especial do hermeneuta enquanto interprete e aplicador das espécies normativas criadas pelo Poder Legislativo, é dirimir os conflitos aparentes, superficiais ou prima face de normas jurídicas com o propósito de conferir concretude à ideia concebida pelo autor italiano citado e seguida pela experiência brasileira.

A questão ganha dimensão prática quando levamos em consideração a trava bancária e a Lei 11.101 de 2005, diploma atualmente vigente que regulamenta o processo de recuperação judicial e falência de empresas no Brasil.

Importa saber, a princípio, que se convencionou chamar de trava bancária, o expediente pelo qual as instituições financeiras no Brasil condicionam o repasse de valores decorrentes de alienação fiduciária de crédito às empresas que contraem empréstimos, imprescindíveis ao exercício da atividade de mercancia.

A crítica a respeito da trava bancaria subsiste na inviabilidade que esta causa sobre o setor empresarial, sobretudo por vincular a liberação do capital empresarial ao exclusivo interesse da instituição bancária financeira. É por assim dizer um instituto jurídico arcaico que não se coaduna com o arcaboiço principiológico que norteia o recente diploma alterador.

Outrossim, a trava bancária visa indevidamente excluir o risco da atividade financeira sobre os bancos de forma a tornar quase que certo e garantido o lucro.

O Princípio da Preservação da Empresa na nova Lei de Recuperação e Falência

Lembra doutrinadores do ramo do Direito Comercial como Asquini que a empresa é um fenômeno multifacetado, ou seja, sua existência é complexa por dizer respeito a uma variada gama de questões: dentre ela a social, a política, a econômica, a histórica, etc.

Como sabido, é do espírito da nova lei de recuperação e falências o princípio pelo qual se busca a continuidade da atividade empresarial e consequentemente a permanência na relação de emprego para toda uma classe de profissionais, mães e pais; profissionais que dependem do trabalho para pagar suas contas, adimplir suas dívidas.

Acertada esta opção legislativa, levando-se em consideração que o desemprego é um lamentável dado social que gera a inadimplência no comércio interno e consequentemente redução no volume de venda e arrecadação fiscal para os Estados e Distrito Federal que cobram ICMS, principalmente quando as pessoas jurídicas contribuintes operam sob o regime de caixa quando da apuração dos valores devidos.

Busca-se com isso, mais do que preservar o patrimônio e estimular a exploração lícita do mercado, a fim de evitar a prática monopolista, o fomento à geração de emprego e renda para a população economicamente ativa no País, como política pública de desenvolvimento interno a médio e longo prazo.

A lei, com vista à efetivação de tal postulado, confere ao juízo poderes suficientes para tomar caso considere necessárias medidas acauteladoras, fundamentais a subsistência da empresa sob a qual se pleiteia a recuperação judicial ou decretação de falência.  

Ocorre que os doutrinadores ressaltam a incompatibilidade de normas de sobre-direito como esta e a prevista no artigo 49 do diploma legal em comento que prevê a possibilidade da instituição financeira concessora do crédito exigido em juízo de ter preferencia sobre os demais credores que para fazer valer seu direito devem ingressar em concurso, no qual os valores são proporcionalmente rateados.

Violação da Par Conditio Creditorum na execução concursal

A expressão latina par conditio creditorum significa: as mesmas condições aos credores, o que implica dizer que no processo de recuperação judicial ou falência, os credores da empresa se sujeitam no polo ativo da ação ao recebimento proporcional e igual dos valores disponibilizados pelos meios de adimplemento reconhecidos pela lei.

Ainda que com maior destaque a expressão seja comumente usada pela doutrina brasileira, sua materialidade está oportunamente pulverizada por todo o corpo de normas do Direito Positivo Brasileiro.

Par conditio creditorum é, outrossim, forma pela qual se reconhece a cada um dos credores da empresa todos os meios lícitos, portanto, admitidos em Direito de executar o devedor a fim de receber o quinhão ao qual tem direito ou de em juízo pleitear medidas que possibilitem o resultado útil do processo como comumente acontece com as medidas judicias de natureza cautelar. Ou seja, visa concretizar o enunciado do Princípio da Isonomia materialmente.

Seguindo o dever objetivo de cuidado, de diligência das partes no processo, devendo estas se portarem de maneira prova, leal e fiel aos atos processuais; devendo com o juízo colaborar para um transcurso regular- de seu início até sua conclusão.

Devemos ainda ter em mente que aos processos de recuperação judicial e falência devem ser aplicados os dispositivos pertinentes ao processo de execução contra devedor insolvente, e este pela inteligência do artigo 612 c/c o artigo 751, III do Código de Processo Civil. O que em suma é estabelecer a formação do concurso entre os credores de forma obrigatória, obedecendo-se os privilégios de seus créditos a depender da natureza.

A trava bancária na jurisprudência

Sem perder de vista a tormentosa divergência doutrinária como exposta, a questão envolve dissenso na segunda instância da Justiça Comum Estadual em todo o território nacional. Não se tem entendimento uníssono a respeito de sua legalidade, o que torna casuística as decisões do Poder Judiciário. Nesse diapasão, urge um pronunciamento terminativo de mérito sobre o tema por parte do Superior Tribunal de Justiça, a quem cabe precipuamente a interpretação da lei federal em todo país.

As decisões de alguns Tribunais de Justiça pelo Brasil como do Espirito Santo e Mato Grosso parecem favorecer as instituições financeiras em detrimento da continuidade da atividade desenvolvida pelas empresas que passam por necessidades econômicas ainda que temporariamente.

A nível meramente exemplificativo, trazemos à colação posição do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que em sede de agravo de instrumento foi pela exclusão do crédito desta natureza. Então vejamos:

Processo:      AG 994092911059 SP

Relator(a):    Pereira Calças

Julgamento: 02/03/2010

Órgão Julgador:       Câmara Reservada à Falência e Recuperação

Publicação:   11/03/2010

Ementa

Agravo de instrumento. Recuperação judicial. Decisão que liberou "trava bancária" em relação a recebíveis objeto de cessão fiduciária de crédito. Cédula de crédito bancário com contrato de constituição de alienação fiduciária em garantia (cessão fiduciária de direitos de crédito). Direitos de crédito (recebíveis) tem a natureza legal de bens móveis (art. 83, III, CC) e se incluem no § 3º do art. 49, da Lei nº 11.101/2005. Propriedade fiduciária que se constitui mediante o registro do título no Registro de Títulos e Documentos. Inteligência do art. 1.361, § Io, do Código Civil. Contrato de cessão de crédito regularmente registrado no Registro Público configura direito real em garanoLa. Créditos não sujeitos aos efeitos da recuperação. Recurso provido.

Todavia tribunais como o do Estado do Rio de Janeiro já se posicionam para entendimentos inovadores que implicam benefício ao concurso de credores.

Os desembargadores que integram a segunda câmara cível daquela Corte Estadual liberaram somente 50% por cento dos recebíveis futuros de duas pessoas jurídicas que se encontravam em recuperação judicial. No acordão, os magistrados ponderaram a necessidade da observância do princípio da preservação da empresa e da função social do contrato, como caros aos fins a que o diploma de regência se destina. 

Destarte, com a prolação do acordão, as instituições financeiras passaram a ingressar no rol comum de credores de modo a integrar o rateio pelo qual cada um destes receberá os valores devidos no tocante a outra metade.

Em termos práticos, a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro impede que os valores pagos pelos clientes às empresas sejam diretamente depositados em conta dos bancos, o que torna impraticável a atividade comercial, haja vista que estas dependem de capital de giro para renovar e repor o estoque de suas mercadorias.

Conclusão

Em vista dos fatos apresentados e à guisa de conclusão, somos pela inclusão dos créditos decorrentes de cessão fiduciária no rol comum que compõe o concurso geral de credores na Lei 11.101 de 2005, não como medida de isonomia, mas em atendimento aos princípio da função social do contrato e da preservação da empresa.

Como não há entendimento uniforme a respeito da matéria, parece que o destino das empresas se sujeita em grande medida à infortuna casuística que tende a robustecer os benefícios de que gozam as instituições financeiras no País.

Em sendo o propósito da nova Lei de Recuperação e Falência a reabilitação para o mercado interno através de um processo equilibrado, equânime, transparente e célere, não se pode olvidar que a exclusão dos créditos decorrentes de cessão fiduciária em recebíveis futuros é medida desarrazoada.

Devendo ser, portanto rechaçada pelos operadores do Direito e principalmente pelos comerciantes que operam sob o regime de recebíveis de cartão de crédito, que é comumente o método pelo qual a cessão desses direitos se perfaz no cenário interno.

Referências

ABRAÃO, Nelson. Curso de direito falimentar. 4ª ed. São Paulo: RT, 1993.

ASQUINI, Alberto. Profili dell’impresa. In: Rivista di diritto commerciale. Vol. XLI –Parte I, 1943, p. 01-20;

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: UnB, 2003

BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. 4ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998.

BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.    

GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. Vol. 1. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998