INTRODUÇÃO

O desenvolvimento do tema A Identidade dos Discípulos de Jesus tem por base a perícope Jo 13,33-35. Pretende-se realizar uma abordagem teológico-reflexiva sobre a questão levantada pela comunidade joanina, a respeito da vivência do "mandamento novo" dado por Jesus a seus discípulos.
O primeiro capítulo trata brevemente da intenção teológica do Evangelho Segundo São João, e de modo particular, da parte onde se encontra a perícope de interesse deste estudo. A turbulenta época de Jesus e os tempos críticos nos quais a redação do quarto evangelho foi concebida são rapidamente contextualizados para favorecer o entendimento do motivo que levou a comunidade frisar a temática do "amor". No segundo momento deste estudo, acontece a análise de Jo 13,33-35, lançando olhar sobre cada versículo de modo separado, sem que isto desfavoreça a sequência e conjunto da mensagem presente nesta pequena, porém rica passagem bíblica.
A consciência de Jesus sobre a chegada de sua Hora Final, faz com que Ele dispense recomendações aos discípulos para enfrentarem os acontecimentos que se seguirão e assumirem a identidade que lhes cabe, tornando-se testemunhas verdadeiras de Jesus Cristo, no meio do mundo.

A IDENTIDADE DOS DISCÍPULOS DE JESUS
Jo 13,33-35

I. A COMUNIDADE E O EVANGELHO DE JOÃO

1. A Intencionalidade Contida no Evangelho

O Evangelho Segundo São João não procura mostrar a biografia de Jesus; e sim, retrata a experiência da comunidade de fé e seu interesse teológico. O Prólogo (1,1-18) resume os principais pontos de interesse da comunidade joanina. Os conteúdos dos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) e das pregações do apóstolo Paulo, já são bem conhecidos por João. A concepção de seu evangelho busca o crescimento na fé e elabora um projeto de vida para a comunidade cristã, de modo a enfrentar e superar os momentos de crise.

Jesus fez, diante de seus discípulos, muitos outros sinais ainda que não se acham escritos neste livro. Esses, porém, foram escritos para crerdes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome (Jo 20,30-31).

A intenção primeira deste evangelho, portanto, se apóia no desejo de "proclamar a fé em Jesus" para suscitá-la e fortalecê-la. O evangelista põe seu foco na pessoa de Jesus, buscando o sentido de sua vida, gestos e palavras, agora iluminados por sua paixão, morte e ressurreição; e é justamente aqui onde se encontra o cume da teologia de João.
A estrutura do Evangelho Segundo João coloca-o dividido em duas partes, além de seu prólogo, uma breve seção introdutória e o epílogo no final:

1,1-18 Prólogo
1,19-51 Seção introdutória
2,1 ? 19,42 1ª Parte: A obra do Messias
 2,1 ? 11,54: O Dia do Messias
 11,55 ? 19,42: A Hora Final
 11,55 ? 12,50 (Primeira seção: a opção perante o Messias)
 13,1 ? 17,26 (Segunda seção: a última Ceia e a nova comunidade)
 18,1 ? 19,42 (Terceira seção: a Paixão de Jesus)
20,1-31 2ª Parte: A nova criação
21,1-25 Epílogo

O texto que será tratado neste trabalho pertence à 1ª Parte, dentro do período da Hora Final (11,55 ? 19,42), na segunda seção (13,1 ? 17,26) quando Jesus fala a seus discípulos durante a última Ceia. A partir de Jo 13, inicia-se a "grande despedida" de Jesus e a perícope Jo 13,33-35, a que nos interessa, revela o mandamento que constitui a centralidade da vida comunitária fundada por Ele.


2. Tempos críticos

Na época de Jesus a fidelidade para com a identidade religiosa, sempre era posta à prova. Vigorava o Império Romano que colocava povos pagãos e o helenismo em contato direto com os judeus. Jesus, que pertencia ao "pequeno e desprezado" povo judeu, viveu e atuou neste contexto.
Depois da morte e ressurreição de Jesus, fatos importantes e novos conduziram a Palestina à outra realidade: a atividade missionária dos discípulos; o nascimento constante de comunidades de fé em Jesus Cristo; mudanças na estrutura do judaísmo; a redação de grande parte do Novo Testamento; a separação do cristianismo e do judaísmo, por volta do ano 90, devido divergências surgidas entre os dois grupos religiosos. Quando a concepção do Evangelho Segundo João foi finalizada, a Igreja cristã já caminhava sozinha.
O contexto redacional do quarto evangelho pode ter se formado com origem na Palestina, passagem por Antioquia e concretização na cidade de Éfeso, em fins do turbulento século I; inserido em um ambiente helênico e multicultural, no qual filosofias e religiões se encontravam. As desigualdades gritantes entre as classes existentes, característica própria dos grandes centros comerciais, era alimentada pela política do Império Romano. Judeus mantinham boa relação com o império, mas não simpatizavam os pagãos; cristãos conquistavam a admiração de muitos, mas não eram bem quistos pelos poderosos. Apesar de terem a mesma raiz, judeus e cristãos estavam mergulhados em uma relação conflitiva que afetava até mesmo a convivência entre os próprios discípulos. Este conflito transpassará praticamente todo o corpo do evangelho e servirá como pano de fundo para a teologia joanina.












II. O AMOR COMO MARCA DO DISCÍPULO

Filhinhos,
por pouco tempo
ainda estou convosco.
Vós me procurareis e,
como eu havia dito aos judeus,
agora também vo-lo digo:
Para onde vou
vós não podeis ir.
Dou-vos um mandamento novo:
que vos ameis uns aos outros.
Como eu vos amei,
amai-vos também uns aos outros.
Nisto reconhecerão todos
que sois meus discípulos,
se tiverdes amor uns pelos outros.


1. Despedida de Jesus

Jesus vive a sua Hora Final e faz as "últimas recomendações" a seus discípulos, durante a Ceia Pascal. O momento é de refletir sobre tudo o que fora ensinado ao longo dos decorridos três anos de convivência com Ele, a fim de se preparar para os difíceis acontecimentos que virão. Mais do que nunca, se faz necessário o fortalecimento da fé e a consolidação da vivência comunitária. Jesus chama à coragem e confiança, a comunidade de discípulos que deverá viver coerentemente a sua identidade.
Judas se afasta de Jesus e dos discípulos (v. 31), iniciando por definitivo a sua Hora. Agora sim, Jesus pode se despedir e deixar claro qual o distintivo daqueles que nele creem e seguem. Apesar de pequena, a perícope Jo 13,33-35 revela a grandiosa verdade que resume os ensinamentos de Jesus, o que deve ser vivido pela comunidade de fé e por todos os cristãos: o amor.
Filhinhos, por pouco tempo ainda estou convosco. Vós me procurareis e, como eu havia dito aos judeus, agora também vo-lo digo: Para onde vou vós não podeis ir. (v. 33)

O termo "filhinhos" (v.33) demonstra a relação afetiva que Jesus tem com os seus e o desejo de que os discípulos a cultivem entre si; principalmente agora que sua partida está confirmada após a traição de Judas (cf. Jo 13,21-28.30). O versículo 33 de Jo 13 faz alusão a Jo 8,21: "Jesus disse-lhes ainda: ?Eu vou e vós me procurareis e morrereis em vosso pecado. Para onde eu vou, vós não podeis vir?". As palavras de Jesus indicam que algo difícil de se entender e aceitar acontecerá em breve: a sua paixão e morte como caminho necessário para a plenitude gloriosa da ressurreição, e o amor extremo revelado com a total e voluntária doação de si. A incompreensão por parte dos discípulos se fará visível na hora da Paixão e Crucificação, onde não foram capazes de acompanhar Jesus (cf. Jo 16,32), com exceção do discípulo amado (cf. Jo 19,25-27). A partir daqui, Jesus entrega seu testamento espiritual, dispensando conselhos e instruções aos discípulos.


2. "Dou-vos um Mandamento Novo"

Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. (v.34)

2.1 Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros (v.34a)

Jesus não edita uma norma/lei a mais para ser cumprida, não se trata de uma regrinha para o "comportamento correto". O que no AT era Lei (cf. Lv 19,18), agora toma um sentido maior e profundo como Mandamento Novo entregue por Jesus. Não pode ser lei imposta para se viver obrigatoriamente, aquilo que deve brotar no coração do homem/mulher e transparecer em suas atitudes como decorrência da fé no Deus que é o próprio Amor: "Aquele que não ama não conheceu a Deus, porque Deus é Amor" (1Jo 4,8).

"Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único para que todo o que n?Ele crer (...) tenha a vida eterna" (3,16). Com a centralidade do amor, a fé cristã acolheu o núcleo da fé de Israel e, ao mesmo tempo, deu a esse núcleo uma nova profundidade e amplitude.

O teólogo Dr. Matthias Grenzer em seu estudo sobre Mc 12,28-34 ? onde se encontra o questionamento de um escriba a Jesus, referente à "qual é o primeiro mandamento de todos?" (v.28) ?, comenta:

"(...) surge a idéia da necessidade de uma relação com Deus que é marcada pela exclusividade e pelo compromisso total. Pois somente quem se lembra do amor do Senhor por seu povo e, por consequência, responde a tal amor com uma paixão que deixa ser Javé o único soberano vai se interessar pelos mandamentos dele. Ou também, em outras palavras: a obediência aos mandamentos do único Senhor somente funciona quando é fruto de uma relação amorosa.

O testamento de Cristo é o preceito do amor; esse preceito é novo porque se torna distintivo da nova comunidade, que nasce nos novos tempos iniciados com a revelação do Messias. A comunidade fundada por Jesus Cristo e formada por seus discípulos, fica alicerçada nesse novo mandamento, que ao mesmo tempo a caracteriza e a identifica no meio das demais crenças existentes.
A Nova e Eterna Aliança que Deus cela com a humanidade, traz como máxima "o amor". Jesus mesmo é esta máxima; pois, Jesus é Filho de Deus Pai e, portanto, Jesus é Deus e Deus é Amor. A verdade revelada em Jesus, nada mais é do que a vontade de Deus em resgatar a essência da dignidade do ser humano, concebida no amor; visto que "Deus criou o homem à sua imagem" e "semelhança" (cf. Gn 1,26-27); e esta concepção amorosa significa relação. O homem/mulher não foi criado para ser sozinho (Gn 2,18; 3,8) e na relação proposta, Deus se faz presente (apesar do pecado e das fraquezas humanas) como também, o seu próximo: "Se alguém disser: ?Amo a Deus?, mas odeia o seu irmão, é um mentiroso: pois quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar" (1Jo 4,20); portanto, "vos ameis uns aos outros" (v. 34a) para verdadeiramente amar a Deus.

O amor do próximo, radicado no amor de Deus, é um dever antes de tudo para cada um dos fiéis, mas o é também para a comunidade eclesial inteira, e isso em todos os seus níveis: (...).

2.2 Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros (v. 34b)

Jesus proclama o mandamento novo aos discípulos e mostra-lhes "como" este deve ser vivido. O grande exemplo de vivência no amor concentra-se na pessoa de Jesus; um amor que chega ao "extremo" de dar a própria vida para a salvação do "outro": "Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos" (Jo 15,13). Jesus é o Homem em sua plenitude; o ser humano ao sair de si para voltar-se a Deus e ao próximo, amando como Jesus amou, também poderá atingir a plenitude da vida.

Antes da Festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim.
Durante a ceia, (...) levanta-se da mesa, depõe o manto e, tomando uma toalha, cinge-se com ela. Depois coloca água numa bacia e começa a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha com que estava cingido. (...)
Depois que lhes lavou os pés, retomou o seu manto, voltou à mesa e lhes disse: "Compreendeis o que vos fiz? Vós me chamais de Mestre e Senhor e dizeis bem, pois eu o sou. Se, portanto, eu, o Mestre e o Senhor, vos lavei os pés, também deveis lavar-vos os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais."
A novidade se encontra no fato de que a medida e o critério para amar, é Cristo mesmo; Ele é nosso modelo: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida" (Jo 14,6), "Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim" (Mt 11,29). Os discípulos, cultivando o amor uns aos outros, imitam o mesmo amor que Jesus dispensou-lhes; e a medida dada como exemplo é a de um "amor sem medidas", que deve ser vivido por todos aqueles que o seguem, "até o fim".


3. "Nisto Reconhecerão Todos"

Nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros. (v.35)

A coerência da fé se mostrará na prática cristã do mandamento do amor; assim se fará visível a proximidade com Jesus e seus ensinamentos. A comunidade de discípulos de Cristo terá a sua credibilidade avaliada sobre aquilo que deverá caracterizá-la: a vivência fraterna no amor. Não pode haver sentimento de superioridade onde todos se colocam a serviço, conforme o carisma e função de cada um, para o bem comum; onde todos devem "lavar os pés uns dos outros" (cf. Jo 13,14), a exemplo de Jesus que tomou esta iniciativa.
A temática do "amor" entre os discípulos surge para trabalhar um momento de crise vivida pelas comunidades cristãs. O ar de superioridade por parte de algumas, levava a certo isolamento e falta de união entre os membros de uma mesma comunidade. Devido a esta realidade da comunidade joanina, constata-se a urgência e insistência em tratar do amor fraternal e sua vivência em Cristo, que conduz à união. Antes a divergência existia entre judeus e cristãos; agora, a divergência floresce entre os próprios cristãos e é preciso dar respostas a este contra-testemunho, considerando que o amor que têm entre si é identidade primeira dos discípulos de Jesus: "Nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos" (v.35). Se os discípulos não forem capazes de amarem-se uns aos outros, que dirá amar "aqueles que os perseguirão". Jesus é claro e firme ao dizer: "Eu sou a videira e vós sois os ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto; porque, sem mim, nada podeis fazer. Se alguém não permanece em mim é lançado fora, como o ramo, e seca; tais ramos são recolhidos, lançados ao fogo e se queimam" (Jo 15,5-6). Permanecer em Cristo e, automaticamente, na comunidade, possibilitará a identificação do discípulo e da própria comunidade de fé; ou seja, o distintivo do cristão e sinal concreto da comunidade de Jesus é o permanecer no amor, para testemunhar a todo homem/mulher esse mesmo amor que vem de Deus.

(...) que todos sejam um. Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que eles estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste.
Eu lhes dei a glória que me deste para que sejam um, como nós somos um: Eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade e para que o mundo reconheça que me enviaste e os amaste como amaste a mim.

A comunidade de Jesus está constituída, enfim, no amor; e este amor não se limita a seu seio, mas extravasa-o como amor universal, anunciado por Jesus e durante a ação missionária de seus discípulos no meio do mundo, para toda a humanidade.

Ao estabelecer como único distintivo de sua comunidade a existência deste amor visível, Jesus elimina todo outro critério. A identidade do seu grupo não se alicerça em observâncias, leis ou cultos. Com este único distintivo, Jesus desliga os seus de todo condicionamento cultural. Se o orgulho de Israel estribava-se na peculiaridade de suas instituições com relação às dos povos gentios, o grupo de Jesus não terá barreiras que o separem. Sua mensagem coincide com o mais profundo do homem, para além das diversas culturas. O amor é linguagem universal.
Considerações Finais


O mandamento do amor (13,34) alicerça a comunidade cristã e a prática de seus discípulos; ou seja, ser piedoso não basta para "ser cristão", "ser discípulo". A relação amorosa exigida pelo mandamento novo, requer o amor a Deus e ao próximo concomitantemente.
O amor foi, é e será sempre o critério para se reconhecer o discípulo de Cristo. A comunidade que nasce, cresce e caminha no cultivo do amor em suas relações, não se perde ou se extingue, apesar da possibilidade do aparecimento de conflitos (o que é legítimo, por ser algo próprio do ser humano) em seu interior. O problema primeiro nunca será o conflito; mas sim, as causas e os meios para solucioná-lo. Nunca devemos nos esquecer de que, reconhecendo-nos como filhos e filhas de Deus pelo mesmo batismo, somos família e cada um tem seu papel e sua importância na composição desta; se alguém da família sofre, todos sofrem juntos.
Ninguém queira achar-se melhor ou pior que o outro, na vivência comunitária ou na vida; pois, Jesus Cristo entrega a todos os seus discípulos e a toda a humanidade, o mesmo "amor". Com sua humildade e simplicidade, deixa-nos o exemplo a seguir e um mandamento a viver, como Ele mesmo viveu.

Referências Bibliográficas

BENTO XVI Papa, Deus Caritas Est ? carta encíclica do Santo Padre Bento XVI. São Paulo: Loyola, 2006.

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Bíblia do Peregrino: Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2000.

Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2000.

CNBB, Uma Igreja Que Acredita: evangelho segundo João. São Paulo: Paulinas, 2000.

GRENZER Matthias, Primeiro e Segundo Mandamentos: (Mc 12,28-34). São Paulo: Paulinas, 2008 (Coleção perícope).

MATEOS Juan ? BARRETO Juan, O Evangelho de São João: análise lingüística e comentário exegético. São Paulo: Paulus, 1999 (Coleção grande comentário bíblico).