A IDEIA DE NAÇÃO BRASILEIRA APRESENTADA NA OBRA IRACEMA, PUBLICADA EM 1865, E NAS CANÇÕES BRASILEIRAS UM SÉCULO MAIS TARDE.

DANIEL LOPES DE CASTRO

GABRIEL GOMES DA SILVA

LUCAS HENRIQUE RODRIGUES DA SILVA

NATALIA GIACOBO ROHR

RAFAEL COSTA AMORIM[1]

Resumo: A pesquisa tem a intenção de comparar a ideia de nação brasileira no século XIX com aquela apresentada nas composições de música popular brasileira um século mais tarde. Para tanto, escolheu-se como objeto de análise o romance Iracema e letras de músicas dos seguintes autores: Chico Buarque, Raul Seixas, Aldir Blanc e João Bosco. Têm-se como objetivos desta análise: demonstrar de que modo a sociedade brasileira é retratada no romance e nas canções de autores brasileiros consagrados; identificar na obra Iracema a visão de nação brasileira idealizada por José de Alencar; investigar a visão de Brasil nas letras de compositores de MPB já apontados. A metodologia utilizada no trabalho foi pesquisa bibliográfica, realizada através da leitura de artigos científicos sobre a sociedade e cultura brasileira, bem como a análise das composições musicais: Cálice, O bêbado e o equilibrista, O que será?, Ouro de tolo, e do romance Iracema.

 

Palavras-chave: Sociedade brasileira, identidade, música, ditadura militar, literatura brasileira.

 

            A sociedade brasileira foi formada a partir de três matrizes culturais: a branca, a negra e a indígena. A branca foi representada pelos colonizadores europeus, a negra pelos escravos africanos e a indígena pelos nativos que estavam no Brasil quando da chegada dos portugueses. A partir da independência política do país, a vontade de criar traços que distanciassem da memória nacional a imagem do Brasil como colônia fez com que se começasse a pensar na criação de símbolos que unisse o país como uma nação.

            Durante o século XIX, o Brasil vivia o dilema entre o nacional, Brasil, e o estrangeiro, Europa. Esse dilema se dava pelo fato de o Brasil, um país recém independente, receber a influência externa na expressão literária, principalmente. Enquanto isso, no âmbito nacional, o país se formava pela junção da cultura das etnias que o formava – negro, branco e índio. Entrou em questão, nesse momento, a maneira de construir a imagem desse país fragmentado.

            Diversas obras literárias foram produzidas como ferramentas para essa construção, dentre elas, o livro Iracema, de José de Alencar, o qual será estudado neste artigo. Essa obra teve o papel fundamental de construir a memória nacional e de fixar o gênero romance na literatura brasileira.

Um século depois da publicação de Iracema, publicado em 1865, a sociedade passou a ser representada de forma diferente. Dessa vez, não apenas pela literatura, mas também por músicas que representariam o ideal coletivo de sociedade e suas aspirações.

Durante as décadas finais do século XX, a sociedade brasileira vivenciou mudanças drásticas na sua estrutura política, econômica e social; principalmente devido à implantação do regime ditatorial militar. A ditadura militar foi implantada no Brasil em 1964, o que provocaria mudanças na expressão artística e intelectual sobre a sociedade.

A produção musical desse período foi marcada pelo protesto dos artistas contra o sistema de governo recém-implantado; o que resultou em ações contra esses artistas que variavam da censura à execução das músicas nas rádios até a prisão. As letras das músicas, aparentemente criadas para entreter o público, trazem em suas entrelinhas críticas contra a falta de liberdade de expressão.

O objetivo deste texto é abordar os diferentes modelos de sociedade no final dos séculos XIX e XX; uma vez que a sociedade, em cada uma dessas épocas é apresentada de diferentes modos. Usaremos como fonte de análise a literatura produzida durante o período do Romantismo, segunda metade do século XIX e algumas produções musicais da segunda metade do XX; e, a partir disso, traçaremos uma comparação entre o modo no qual a sociedade foi construída e entendida nesses dois momentos históricos.

A professora doutora Vera Lucia T. Kauss, em seu artigo “Em busca da identidade nacional: Reflexões sobre a imagem do índio no romance brasileiro”, faz muitas observações sobre a questão da identidade nacional. Segundo ela, ao longo do processo de construção da identidade nacional durante o século XIX, pretendeu-se estabelecer elementos existentes no interior da nação e uni-los em torno de uma identidade ou de uma cultura nacional. Isso se justifica levando-se em conta a busca por liberdade política e literária, além da vontade de criar traços que distanciassem o Brasil das memórias da colônia ao mesmo tempo em que o unisse como nação. Assim, os escritores daquele período fizeram um resgate de fatos históricos importantes que contribuíssem para realização do ideal de nação traçado então.

            A paisagem nacional e a figura indígena eram temas geradores de poemas famosos que já descreviam choques culturais, por isso foram retomados pelo Romantismo para marcar as manifestações literárias, as quais não expressam uma atitude individual, mas um produto de ordem social. No Brasil, como em outros países da América Latina, vivia-se o dilema entre o nacional (Brasil) e o universal (Europa), pois, apesar de a descrição regional ser um traço de nacionalidade, esta deveria ser descrita de acordo com um modelo bem sucedido que pudesse ser aceito de maneira universal.

            Nesse contexto, José de Alencar, um dos principais autores do Romantismo brasileiro, em suas obras teve o propósito de fixar o gênero romance em nossa literatura e assumiu o papel importante de construir a memória nacional e inaugurar as tendências urbanas, regionalistas e indianistas no romance brasileiro; o que fez surgir a ideia do herói nacional, a Europa produzia poesias contando as façanhas de seus cavaleiros medievais, enquanto no Brasil se tinha a figura do índio, o qual foi escolhido por não lembrar o trabalho escravo como o negro lembrava, que foi descrito de diversas maneiras.

Neste artigo, as autoras privilegiam a visão do índio no livro Iracema, de José de Alencar, o qual retrata a união das raças e das culturas, as quais propiciaram a fundação da nação brasileira.

            Em Iracema, o foco é a imagem feminina, que representa a cultura indígena, considerada bárbara, que precisa desaparecer para dar lugar à mestiçagem com predomínio Europeu, portador da civilização. Alencar deu à narrativa um tom místico e de linguagem metafórica com a utilização de notas explicativas sobre a língua e hábitos indígenas. A índia Iracema é descrita como reflexo da terra. Homem e natureza vivem em plena harmonia e comparações como cor dos cabelos/ asas da graúna; comprimento/o talhe da palmeira; doçura do sorriso/favo do Jati; hálito/baunilha dão a ela status de heroína romântica, representante da nação. No final da narrativa, quando prestes a morrer, a índia diz: “ Tu és Moacyr, o nascido de meu sofrimento.” É assim que Iracema recebe seu filho, metaforicamente o Brasil, como típica heroína romântica.

            Nesta recriação dos fatos históricos que culminam com a fundação do Ceará e do povo brasileiro pela literatura, têm-se exemplos de choques culturais e análises da identidade nacional. Stuart Hall, autor de A identidade cultural na pós-modernidade, afirma que as culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a nação, acabam construindo as identidades. Esses sentidos são contidos nas histórias contadas sobre a nação, memórias que conectam o passado com o presente. Iracema representa o passado, Martim o presente e Moacyr o futuro.

            Martim, apesar da cerimônia do “coitabo”, em que é batizado filho de Tupã, é o mesmo do princípio ao fim, ou seja, o estrangeiro, o colonizador português. Assim como Iracema, que apesar de se apaixonar e violar as regras de seu povo, não muda sua essência. Por fim, em Moacyr, fruto do amor entre as duas etnias diferentes, fica explícita uma nova identidade. Ele é resultado do “encontro” entre as duas culturas, as quais serão a base da formação do povo brasileiro, junto com a etnia africana.

            Por fim, a literatura indianista tem um único objetivo: tentar configurar a sociedade brasileira através da figura do índio. Essa figura, em contato com outros dados culturais, se perde por não conseguir encontrar papel em um país mestiço. Alguns críticos trazem à tona a questão de o índio não ser autor de sua própria história, considerada impossível, se for levado em conta a força da tradição literária, principalmente em países de passado colonial, na qual apenas o dominante é o enunciador.

Outro fator a ser destacado é a representação social do índio como preguiçoso e selvagem. Essa tese é citada no artigo Memória, Esquecimento e silêncio, de Michael Pollak, no qual o autor cita a memória individual que é submetida a uma construção coletiva, se tornando nacional. Esses tipos de memória entram em conflito pelos símbolos que narram a origem da nação, seu caráter nacional e regional, não leva em conta todos os elementos que contribuíram para a sua formação. Assim, são deixadas na marginalidade as “memórias subterrâneas” formadas por grupos sociais excluídos da história oficial, como negros e índios, por exemplo. Isso reflete um passado de violência, imposição e marginalidade durante o século XIX que ecoa até hoje.

            Fica claro que o índio foi posto como símbolo nacional por ter sido conveniente para os autores românticos, já que sua imagem não transmitia os problemas sociais do país, diferente dos negros. A hipocrisia de tentar representar a fundação do país, marcada por extermínio e exploração, como uma união entre dois povos não é coerente com a realidade da época.

            O medo da fragmentação do Brasil levou à imposição de uma identidade criada individualmente, por pressão do darwinismo social, no qual estava presente a ideia de que o país devia seguir os mesmos passos da Europa para evoluir. A identidade não foi efetivada, já que essa figura de nação não estava presente nas pessoas.

            Na sociedade do final do século XX tem-se a construção diferenciada da identidade cultural e social. Nesse período, a sociedade passou por um momento de instabilidade política e social gerado pela ditadura militar. Durante os anos de 1964 a 1985 esse sistema de governo assumiu o controle político, econômico e social, ocasionando os mais brutais acontecimentos sob a forma de violência, censura, repressão, exílio, prisão e diversas outras formas de coerção da sociedade.

O governo silenciou de forma cruel aqueles que poderiam vir a exercer qualquer ação conscientizadora a respeito da realidade brasileira e suas contradições. Formadores de opinião contrários à política do governo foram ameaçados agredidos e neutralizados. Vivendo dentro de um regime ditatorial, a população não tinha a liberdade de expressar sua revolta. Nesse contexto, uma das únicas formas encontradas para se fazer uma manifestação contra o sistema de governo foi através da música.

A Música Popular Brasileira (MPB) é colocada como uma grande forma de expressão que teve uma função influenciadora nas ações dos brasileiros perante a política e as reivindicações do povo. Como a música tinha a intenção de expressar as aspirações da população, essa acabou sendo uma grande influenciadora na construção da identidade da sociedade brasileira e na formação da ideia de nação.

Uma das músicas mais marcantes que retrataram as terríveis ações do regime ditatorial brasileiro, dirigidas contra aqueles que denunciavam seus crimes, “O bêbado e a equilibrista” foi composta por João Bosco e Aldir Blanc em 1979 e difundida nacional e internacionalmente pela célebre voz de Elis Regina. Além do diálogo com as questões políticas e sociais de seu tempo, sua letra é marcada pela profunda expressividade artística de sua linguagem, um dos recursos usados à época para driblar a censura do regime.

Devido às investigações, às quais estavam submetidos os órgãos de informação e as obras de arte, as letras que possuíam conteúdo político recorriam a diversos modos de driblarem a censura política. Nesta música, o recurso é a expressividade da linguagem, em que aparecem figuras como a comparação e a personificação, como no trecho “as “nuvens chupavam manchas torturadas” pode ser entendida como uma alusão às torturas e assassinatos cometidos pelo governo militar, como o covarde espancamento até a morte do diretor de jornalismo da Rede Cultura de Televisão, professor Vladimir Herzog, nas dependências do II Exército, em São Paulo, onde fora prestar depoimento.

A opção artística pela expressividade da linguagem pela via conotativa evita a objetividade, que levaria, certamente, a música à proibição pelos órgãos censores e à prisão dos compositores. No entanto, a opção por uma linguagem figurada não deixa de ser impactante, pois, nela, “a lua”, “a tarde” assumem um papel simbólico dos acontecimentos trágicos que ocorriam no plano político e social, que na música figuram no espaço celeste. A forma artística constrói-se, assim, como um espelho sócio-político.

Além disso, há uma alusão mais clara às “Clarices” e “Marias”, que lembram respectivamente a viúva de Herzog e a mãe do cartunista, crítico do regime, Henfil, irmão do exilado político Herbert de Souza, o Betinho, fundador da “Ação da cidadania contra a fome”. O nome destas mulheres, postos assim no plural, seriam representativos de todas as mulheres, esposas, filhas e mães dos perseguidos pelo regime ditatorial que vigorou no Brasil e que foi jogado para debaixo do “tapete da impunidade” na redemocratização do país, ao contrário de outros países, como o Chile e a Argentina, onde generais e outros militares foram condenados, inclusive à prisão perpétua.

Pode-se dizer que esse acordo vergonhoso feito na redemocratização mostra a passividade da classe política que assumiu o poder, muitos remanescentes do velho regime, e que se tornaram, muitos deles, políticos oportunistas e corruptos, e a falta de disposição da sociedade brasileira para passar efetivamente a limpo esse período histórico de “manchas torturadas", como diz a letra da música cantada por Elis Regina. A seguir, apresenta-se uma leitura mais atenta da letra da música, na qual se chama a atenção para as críticas tecidas pelo autor da canção à sociedade de sua época.

“Caía a tarde feito um viaduto”

 

O viaduto da Gameleira, em BH. Obra do governo que desabou sobre carros e ônibus, matando muita gente, porém nada foi noticiado e ninguém foi indenizado.

“E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos”

 O bêbado representa os artistas, poetas, músicos e ‘loucos’ em geral, que embriagados de liberdade ousavam levantar suas vozes contra a ditadura. O luto faz referência aos militantes de esquerda que ‘sumiram’. E Carlitos está se referindo ao personagem de Charles Chaplin que encarna o “vagabundo”.

“A lua tal qual a dona do bordel”

 

A lua representa os políticos civis que se colocaram a favor do regime, a fim de obter ganhos pessoais. Eles "acreditavam" tanto na propaganda oficial que se dizia que se um general declarasse que a lua era preta eles passariam a defender tal tese como verdade absoluta. Em determinada época foram até chamados de luas-pretas.

A Câmara de Deputados e o Senado foram algumas vezes comparados a bordéis devido aos negócios imorais que lá se faziam. É claro que os cidadãos indignados não podiam dizer claramente que pensavam isto, ou seriam no mínimo processados por calúnia, injúria, difamação e etc.

 

“Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel”

 

As estrelas são os generais, donos do poder. Alguns deles nunca apareceram como governantes, preferindo manipular nos bastidores. Contentavam-se com uns poucos privilégios astronômicos e umas ninharias de cargos de direção em estatais ou o poder de nomear umas poucas dezenas de parentes e correligionários em empregos públicos. O brilho de aluguel era, como mencionado acima, os ganhos pessoais e até eleitorais obtidos pelos civis que aceitavam ser marionetes. Alguns destes civis cresceram tanto que ultrapassaram em poder os seus "criadores" fardados.

 

“E nuvens lá no mata-borrão do céu”

 

Os torturadores são aqui comparados a nuvens, pois eram intocáveis e inalcançáveis. O mata-borrão é um instrumento antiquado destinado a eliminar erros, borrões na escrita. O DOI-CODI, nossa temível polícia política da época, era o mata-borrão do regime. As prisões eram inalcançáveis ao cidadão comum, inacessíveis, por isso a comparação com o céu.

 

“Chupavam manchas  torturadas, que sufoco louco”

 

Os rebeldes são comparados a manchas, ou seja, um erro – como na escrita –,  uma coisa fora da ordem, uma indisciplina. É uma referência à tortura aplicada aos militantes de esquerda, que ocorria às escondidas. O regime jamais admitiu que torturava pessoas, porém nunca houve punições aos casos que conseguiam alguma divulgação, apesar da censura à imprensa.

 

“O bêbado com chapéu coco fazia irreverências mil

“Pra noite do Brasil, meu Brasil”

“Que sonha com a volta do irmão do Henfil”

 

Os artistas nunca se calaram, nessa música isso é apresentado como uma irreverência. Um tema recorrente nas músicas da época. A volta das liberdades políticas é comparada ao amanhecer, bem como a ditadura é comparada à noite. O Henfil (Henrique Filho) era um afiadíssimo cartunista político muito visado pelo regime, bem como seu irmão o Betinho, que no governo Fernando Henrique organizou o programa de combate à fome. Os dois eram hemofílicos e morreram de AIDS.

 

“Com tanta gente que partiu num rabo-de-foguete

Chora a nossa pátria mãe gentil

Choram Marias e Clarisses no solo do Brasil

Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente

A esperança dança na corda bamba de sombrinha

E em cada passo dessa linha pode se machucar

Azar, a esperança equilibrista

Sabe que o show de todo artista

Tem que continuar”

 

Há uma referência explícita aos exilados políticos. Maria é a esposa do operário Manuel Fiel Filho morto sob tortura nos porões do DOI-CODI (SP) em janeiro de 1976 e Clarice é a esposa do jornalista Wladimir Herzog, também morto sob tortura, no DOI-CODI(SP) em outubro de 1975; como também é o nome da mãe de Henfil. A equilibrista era a esperança de democracia, um projeto de abertura política gradual, que a cada "eleição", a cada evento que incomodava os militares, tinha sua existência ameaçada.

A seguir, estuda-se a letra da música Cálice. Essa letra, composta por Chico Buarque e Gilberto Gil em 1973, expõe a realidade do regime militar nas entrelinhas. Com a intenção de informar, através da arte, sobre um período marcado pela privação da liberdade de expressão, o desrespeito aos direitos individuais fundamentais; os autores utilizam o poder da palavra, aliado à criatividade artística, como instrumento de combate a uma outra forma de poder.

Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue

 

Como beber dessa bebida amarga

Tragar a dor e engolir a labuta?

Mesmo calada a boca resta o peito

Silêncio na cidade não se escuta

De que me vale ser filho da santa?

Melhor seria ser filho da outra

Outra realidade menos morta

Tanta mentira, tanta força bruta

 

Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue

 

Como é difícil acordar calado

Se na calada da noite eu me dano

Quero lançar um grito desumano

Que é uma maneira de ser escutado

Esse silêncio todo me atordoa

Atordoado eu permaneço atento

Na arquibancada, prá a qualquer momento

Ver emergir o monstro da lagoa

 

Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue

 

De muito gorda a porca já não anda (Cálice!)

De muito usada a faca já não corta

Como é difícil, Pai, abrir a porta (Cálice!)

Essa palavra presa na garganta

Esse pileque homérico no mundo

De que adianta ter boa vontade?

Mesmo calado o peito resta a cuca

Dos bêbados do centro da cidade

 

Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue

 

Talvez o mundo não seja pequeno (Cale-se!)

Nem seja a vida um fato consumado (Cale-se!)

Quero inventar o meu próprio pecado (Cale-se!)

Quero morrer do meu próprio veneno (Pai! Cale-se!)

Quero perder de vez tua cabeça! (Cale-se!)

Minha cabeça perder teu juízo. (Cale-se!)

Quero cheirar fumaça de óleo diesel (Cale-se!)

Me embriagar até que alguém me esqueça (Cale-se!)

A música, a uma primeira e desatenta leitura, pode não passar de texto ou canto religioso. O recurso à religiosidade foi uma estratégia para enganar a censura. O verso “Pai, afasta de mim esse cálice” sintetiza uma súplica por algo que se deseja ver longe ou que não exista. É a reprodução literal da fala de Jesus Cristo quando celebrava a última ceia, antes de seu martírio na cruz. O fato de ser uma súplica, ou seja, um pedido feito com muito desejo (implorado) denuncia o aspecto negativo daquilo que se deseja ver afastado. O objeto de tal rejeição, na música, é o cálice que remete a forma imperativa do verbo calar, “cale-se”, representando toda a essência autoritária do regime militar que impunha o silêncio de ideologias contrárias a ele e calava todas as atitudes de contestação àquele status quo.

O eu lírico da música revela sua indignação por ter que viver tal situação ao indagar “Como beber dessa bebida amarga”. O pronome “dessa” comprova a relação direta entre a bebida amarga e o vinho tinto de sangue, o que remete a dificuldade de aceitar um quadro social em que as pessoas eram desumanamente subjugadas.

A condição de oprimido é reforçada pelo verso seguinte “Tragar a dor, engolir a labuta”. Através do contraste entre “tragar” e “dor” enfatiza-se a imposição de ter que aguentar a dor como algo banal, assim como o simples ato de fumar; tanto a dor física da tortura quanto a de saber-se prisioneiro de uma ideologia limitadora da expressão do pensamento. A segunda parte de verso reflete a necessidade, também imposta, de assimilar o cotidiano, o trabalho (a labuta) de maneira natural (engolir), mesmo que as condições trabalhistas não fossem as melhores e os movimentos sindicais trabalhistas fossem duramente reprimidos.

Tudo isso deixa transparecer o poder da força que impedia a autonomia dos indivíduos de pronunciar sua condição, seus sentimentos e desejos. Mas, mesmo que o livre-arbítrio de pronunciar-se seja cerceado (“Mesmo calada a boca...”), resta a liberdade de sentir (“resta o peito”). Mais adiante, o eu lírico admite que o “peito” também poderia ser calado (“Mesmo calado o peito”), mas, ainda assim, resta um último refúgio, algo intocado: a mente (“resta a cuca”), onde as ideologias, idealizações e pensamentos não podem ser reprimidos. Posição otimista diante dos fatos e a crença neste elemento como instrumentos de luta, de resistência e como um recanto fértil da esperança em dias melhores.

A indignação por não ter liberdade de escolha é, mais uma vez, manifestada ao lado da declaração do desejo de viver em outra realidade (“Outra realidade menos morta”), na qual os homens não tenham a individualidade e os direitos anulados. Uma realidade que não seja construída com base em mentiras e na coação física, já que o regime militar implantava imagens distorcidas da conjuntura política, social e econômica do país, para dar a impressão de que o Brasil desenvolvia-se como um “milagre econômico”. E essa versão dos militares tinha que ser aceita como uma verdade absoluta, mesmo que fosse necessário aplicar a força bruta.

Outra composição da época que se estuda nesse trabalho é  “O que será” (1976) foi feita para o filme “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, de Bruno Barreto. O texto traz uma ideia de liberdade subjetiva, não é uma liberdade no meio da rua, escancarada e fugaz de um único dia, mas aquela que é conquistada aos poucos nas tocas, nos becos, nos guetos. Não há ainda o grito, há o sussurro, a fala, o canto. Há um plano de conquista da liberdade, uma reação sendo organizada, que tem como figura o questionamento sobre tudo o que se fala, faz e planeja.

O que será, que será?

Que andam suspirando pelas alcovas

Que andam sussurrando em versos e trovas

Que andam combinando no breu das tocas

Que anda nas cabeças anda nas bocas

Que andam acendendo velas nos becos

Que estão falando alto pelos botecos

E gritam nos mercados que com certeza

Está na natureza

Será, que será?

O que não tem certeza nem nunca terá

O que não tem conserto nem nunca terá

O que não tem tamanho...

O que será, que será?

Que vive nas idéias desses amantes

Que cantam os poetas mais delirantes

Que juram os profetas embriagados

Que está na romaria dos mutilados

Que está na fantasia dos infelizes

Que está no dia a dia das meretrizes

No plano dos bandidos dos desvalidos

Em todos os sentidos...

Será, que será?

O que não tem decência nem nunca terá

O que não tem censura nem nunca terá

O que não faz sentido...

O que será, que será?

Que todos os avisos não vão evitar

Por que todos os risos vão desafiar

Por que todos os sinos irão repicar

Por que todos os hinos irão consagrar

E todos os meninos vão desembestar

E todos os destinos irão se encontrar

E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá

Olhando aquele inferno vai abençoar

O que não tem governo nem nunca terá

O que não tem vergonha nem nunca terá

O que não tem juízo...(2x)

Lá lá lá lá lá……..

 

Pode-se observar no texto que essa liberdade é incerta, porém sem medida. E que todas as ações têm os seus sujeitos nas estrofes que seguem: são os amantes que suspiram nas alcovas, são os poetas que sussurram em versos e trovas, as meretrizes combinam no breu das tocas, as ideias andam nas cabeças e nas bocas dos infelizes, os mutilados acendem velas nos becos, os profetas embriagados falam alto pelos botecos e os bandidos, desvalidos gritam nos mercados. Na medida em que a ideia de liberdade se expande, a grande utopia se realiza em todos aqueles que estão fora dos princípios da realidade, que habitam o mundo do princípio do prazer; naqueles que contestam o poder, apontando as injustiças; e naqueles que sofrem as injustiças: a população dos guetos. Numa palavra: na radicalidade dos subversivos; contestando o poder, apontando e sofrendo as injustiças são listados por Chico Buarque.

Nesta música, Chico tematiza a verdadeira liberdade, pois através da figura daquilo “que não tem decência, nem nunca terá; que não tem censura, nem nunca terá e que não faz sentido”, ele nos mostra que a liberdade não pode estar sujeita às leis da moral e dos costumes, não pode ser censurada, e é totalmente despida de sentido. O tema da repressão tem a sua figura nos avisos que eram recebidos por todos aqueles que resolviam contestar, inclusive o próprio Chico. Essa contestação é apresentada figuradamente no riso que é ao mesmo tempo desafiador e libertador. Através do riso a comunidade desafia o poder vigente e liberta-se de toda a moral.

O tema da esperança está no repicar dos sinos. O tema da batalha, da luta, concretiza-se na figura dos hinos que as consagrarão. O mundo sem governo é figurativizado nos meninos desembestados, nos destinos que se encontram na falta de Deus, governo, vergonha e juízo, enfim, a liberdade não está submissa à fé, ao rei e nem à lei.

Ouro de tolo é o nome dado a um tipo de metal, denominado pirita, que tem uma aparência parecida com a pepita de ouro. Tal metal era vendido como ouro a um preço baixo. Aqueles que obtinham tal objeto saíam no prejuízo, já que se tratava em um material de baixo valor agregado, por isso o “ouro de tolo”.

“Eu devia estar contente

Porque eu tenho um emprego

Sou um dito cidadão respeitável

E ganho quatro mil cruzeiros

Por mês...”

            Raul Seixas faz uma crítica ao estilo de vida sonhado em sua época, no qual o eu-lírico tem tudo aquilo que seria necessário, aos padrões de felicidade expostos e que complementariam o estilo de vida, para se tornar uma pessoa feliz, mas não é o que ocorre. Tal eu-lírico se questiona em toda a música o porquê de ter tudo para ser “feliz”, mas mesmo assim continua sendo infeliz.

“É você olhar no espelho

Se sentir

Um grandessíssimo idiota

Saber que é humano

Ridículo, limitado

Que só usa dez por cento

De sua cabeça animal...

E você ainda acredita

Que é um doutor

Padre ou policial

Que está contribuindo

Com sua parte

Para o nosso belo

Quadro social...”

Esta relação demonstra crítica ao sonho que toda uma população deveria ter que é vendido pela mídia e pelo modelo capitalista de consumo: “felicidade é o que você tem”. Além disso, faz uma crítica às patentes/títulos que uma pessoa tem, demonstrando que não é isso que traria a felicidade e apenas maquia e engana os sentimentos do próprio sujeito, evidenciando, que no final, todos são “limitados”.

“Ah!

Eu que não me sento

No trono de um apartamento

Com a boca escancarada

Cheia de dentes

Esperando a morte chegar...”

            Raul apresenta nesse trecho a ideia de que não se deve deixar buscar a realização pessoal. Ficar apenas esperando, para ele, é uma condição abominável.

            Por tanto, a música Ouro de tolo trata de uma crítica social em que o cantor Raul Seixas coloca que a busca apenas pelo padrão de vida, estipulado como o que trás felicidade e colocado como sonho que deve ser perseguido, é abominável, como a ideia de permanecer sem tomar qualquer atitude. Seria necessária a busca pela realização pessoal constante, não sendo levado pelos padrões, para encontrar com a felicidade.

Pode-se observar que a crítica à sociedade brasileira aparece todo o tempo na produção artística. Como visto anteriormente, a literatura no século XIX teve um importante papel na construção da identidade brasileira. Uma das mais importantes obras deste período foi Iracema, que ilustra bem a ideia do índio como símbolo nacional, um herói nobre de boa índole. Apesar das tentativas românticas de efetivar o símbolo através de suas obras, ele não obteve sucesso e logo foi esquecido. Avançando no tempo, já no século XX, os compositores da MPB substituem os autores românticos na função de exaltar a alma da nacionalidade brasileira. Para tal, lutaram contra a repressão dentro do regime militar por meio de mensagens subliminares em suas canções.

Finalmente, percebe-se que, dentre as tentativas de uma unificação de um símbolo nacional, uma das mais bem-sucedidas foi a dos compositores da MPB. Podemos atribuir isso ao fato de que é mais recente e que teve um forte apelo popular, fazendo uma grande parte da população se identificar com a letra das músicas. Além disso, através das obras românticas, a identidade que se desejava como padrão foi imposta, não surgindo naturalmente e as obras eram mais lidas pela burguesia, que era uma parte ínfima da população. Portanto, não tinha como durar por muito tempo tal influência.

De todo modo, as críticas ao que se praticava na sociedade está presente em ambos os textos; ora mais, ora menos intensa. Após a abertura política houve uma certa quietação crítica, o que sugere uma pergunta: qual será a identidade nacional brasileira no futuro?

REFERÊNCIAS:

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CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. São Paulo, Martins, 1970

 

MAIA, João Domingues. Português – Série Ensino Médio. São Paulo, Àtica, 2000

 

SANTOS, Maria Rita (org). Poesia e prosa escolhida de Gonçalves Dias e Machado de Assis, São Luis, EDUFMA, 1997

 

KIECHALOSKI, Zeca (1984) Elis Regina. Col. Esses Gaúchos. Porto Alegre: Tchê! 101p.

 

ECHEVERRIA, Regina (1985) Furacão Elis. Inclui cronologia e discografia por Maria Luiza Kfouri. Rio de Janeiro: Nórdica / Círculo do Livro. 363p. 2.ed. rev. ampl. 1994 (São Paulo: Ed. Globo); 3.ed. 2002 (São Paulo: Ed. Globo). 239p. ISBN 8525035149

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[1] Alunos do segundo ano da Escola SESC de Ensino Médio. Trabalho orientado pela professora Maria de Lourdes Brito de Andrade, na disciplina de Literatura.