Ela sempre vinha

Na mesma hora naquele lugar

O encontro igual

Depois sair a caminhar

Em silêncio, os dois

 

A rua estreita, a casa antiga e

As escadas desiguais

A madeira e o som dos nossos pés

 

Até o quarto de dormir

De janelas fechadas

Mas sempre cheio de luz

 

Julia, Julia, Julia.

JULIA (THEDY CORREA)

1.A obra

A obra de George Orwell marca uma visão de mundo diferenciada. Escrita em 1948 descreve a Inglaterra imaginária dos anos oitenta, de maneira específica: 1984. Toda a sociedade é rigidamente controlada pela "Big Brother". As ações externas e as ações internas de cada cidadão são devidamente controladas pela polícia do pensamento e por todas as instituições do partido. Tudo gira em torno do partido. A obra descreve uma antiutopia, pois trata a sociedade pós-guerra de maneira crítica e bruta reduzindo a natureza humana à ação vertical de poder tirânico e de opressão. A organização social é conduzida unicamente pela razão, mostra-se o descarte da religião e das emoções, além do controle rígido da história e da linguagem. Através da antiutopia Orwell mostra, em certo grau, a eliminação do humano. O ser humano deixa de ser aquilo que é por natureza a passa a assumir uma postura "robótica" de acordo com os princípios impostos pelo "Big Brother".

2.Quem é Júlia?

Júlia é a personagem que se envolve amorosamente com Winston Smith.Júlia é singular. Militante das causas do partido externamente e interiormente é alguém que busca corromper diversas normativas e orientações do partido. Ela tinha vinte e seis anos de idade, mora numa pensão junta com outras trinta moças do partido e trabalhava do Departamento de Ficção. Participava ativamente da Liga Juvenil Antissexo. Seu comportamento nos encontros com Winston pode sugerir que tudo gira em torno de sua própria sexualidade. Mesmo com todas estas características ainda é possível manter a pergunta título: quem é Júlia?

A personagem é uma mescla de sentimentos e de desejos banidos pelo partido. Segue as regras a fim de conhecê-la melhor, conhecendo-as, descobre também, suas fragilidades (o seguir as regras não é um opção livre, mas uma questão de sobrevivência). A prática tirânica de poder do Estado não retrata a infalibilidade do poder. Júlia se comunica com Winston pelo meio da multidão, usa os espaços públicos para conseguir um momento de privacidade, usa aquilo que o Estado oferece como mecanismo de negação do Estado. Nos braços de Winston ela deixa de ser uma partidária e consegue por instantes, ser mulher.

Já podes virar - disse Júlia. Ele voltou-se e, por um segundo, quase não pôde reconhecê-la. Francamente, esperara vê-la nua. Mas Júlia não estava nua. Operara uma transformação muito mais surpreendente. Pintara o rosto. Devia ter ido a uma loja do bairro proletário e comprado um jogo completo de cosmética. Passara baton forte nos lábios, ruge nas faces, pó de arroz no nariz; até havia, em torno dos olhos, um toque de tinta que os realçava. Sim, querido. Perfume também! E sabes o que vou trazer da próxima vez? Vou arranjar um vestido de verdade, vestido de mulher, não sei ainda onde, e vou usá-lo em vez destas calças horrorosas. E vou usar meias de seda e sapatos de salto alto! Neste quarto serei mulher, não uma militante do Partido!

(cap. XII)

A contradição da ação de Júlia mostra que a ação de domínio e de poder do partido sobre toda a população deixa pequenas brechas. Embora o partido quisesse controlar demasiadamente o passado e a história, existem alguns elementos que se fazem presentes. A sensualidade feminina, os desejos pela conquista amorosa estão presentes em Júlia: neste quarto serei mulher, não uma militante do partido. Esta fala de Júlia é mais do que uma fala, é um grito contra toda opressão. A educação de Júlia é a educação do partido, a formação militante de Júlia é a formação militante do partido, então, de onde vem este sentimento de ser mulher? Ela é filha da revolução, nunca dormira em uma cama de casal, não conheceu o mundo anterior a revolução. Mas mantém em si traços de humanidade porque ela é um barril de sentimentos prestes a explodir numa cidade em caos pelas explosões bélicas. Júlia é simplesmente humana – algo repudiado pelo controle do Estado. A busca pelo ser mulher a fez transpor limites e ir além daquilo que é próprio, foi até as proles buscar um jogo de cosmética. O rompimento com o partido não é apenas na sensualidade do corpo, ele também se dá pela ousadia de ir além dos limites. A prole não possui um significado de importância na construção do Estado. Estão à margem e representam um submundo. Mas o desejo de dar um significado a si mesmo, a faz buscar naqueles que representam o submundo a construção da identidade expurgada pelo partido. O encontro de Júlia militante com a Júlia mulher não é o encontro imposto dentro dos limites do Estado, mas é o encontro mascarado pelo submundo. Neste encontro ela buscar mais que um jogo de cosmética, ela vai buscar o encontro da felicidade. Mas o desejo pela felicidade não se satisfaz, ela quer mais. Sabe que a morte e a condenação é um risco iminente, mas este risco possui um sentido, coisa que para ela não está no Estado. A ação de Júlia é uma ação que pode vir a mostrar que o Estado moderno não pode ser uma figura tão centralizadora e dominante. O poder do Estado possui limites e não pode ser uma razão coletiva opressora. Outra leitura que ainda é possível ser tecida da citação acima é que embora haja uma ação racional rígida, os desejos não são banidos por completos. O que difere Júlia da grande maioria dos partidários é que ela não se deixou desumanizar completamente e assumiu para si uma necessidade de ser e de sentir. Esta necessidade se mostra nas tentativas de transcender os limites.

- A casa está cercada - disse Winston.

- A casa está cercada - repetiu a voz. Júlia trincou os dentes.

- Creio que é melhor a gente se despedir - disse ela.

(cap. XVII)

Esta citação marca o momento que Júlia e Winston estão sendo presos. A voz da teletela por detrás de um quadro oficializa a voz de prisão. Júlia e Winston saltaram de pé, de costas, nus sentindo o medo tomar conta de todos os sentimentos. O medo assumia a forma de suor e de pernas bamba que tremiam sem parar. Antes da prisão estavam lendo as teorias de Goldstein e sonhando com a liberdade. A voz férrea de ordem faz o sonho ceder lugar ao medo. A esperança desaparece e se apaga por conta da insegurança. A voz da teletela é a voz do caos que impedi o livre pensar. Pensar? Não, temer! No instante do tempo Júlia ainda é humana: é melhor a gente se despedir, diz ela. No momento da prisão deve passar pela cabeça de ambos que agora serão os protagonistas das longas sessões de torturas. O que sempre ouviram como história está prestes a se personificar. O medo se mostra na postura deles, mas para vencer o medo Júlia arrisca um sopro de humanidade, a despedida. O adeus não é o adeus da separação, mas é o adeus fruto de uma escolha, a escolha de superar as agruras do sistema em busca de um ideal: o ideal de humanidade. O crime foi escolher de um ideal diferente do ideal imposto pelo poder do Estado. O ideal de Júlia não é o ideal do partido.Estão condenados. Após a prisão segue as tortura e Júlia sai de cena, toda a descrição na obra é centrada na tortura sofrida por Winston, física e moral. A tortura busca confirmar a ideologia do partido é preciso limpar o comportamento. Embora o autor tenha como figura central Winston, é possível pensar também na tortura de Júlia.

O processo de tortura é o processo de desumanização. A ação do partido é a ação de uma imposição, a imposição da negação da humanidade. Os sentidos, as vontades e os desejos desaparecem junto com a história. Se Júlia fora num momento uma pessoa com o desejo de ser mulher, com a tortura deve se tornar uma impessoa. A dor busca sacramentar a negação externa e interna de tudo o que sentira anteriormente. A busca de si é vista como um crime e esta busca é algo sujo, tão sujo como o ambiente de Oceania. Não basta confessar é preciso se despir da humanidade e perceber que qualquer vontade é inútil diante do partido. O partido se desvela na dor. A negação da própria humanidade em favor da afirmação do Estado. Na parte final da obra a humanidade de Júlia parece que sobreviveu a tortura.

Ela disse qualquer coisa a respeito do trem subterrâneo e levantou-se...

- Precisamos nos encontrar outra vez - disse ele.

- Sim, precisamos nos encontrar.

(...)

Mas agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente vencida a batalha contra si mesmo. Amava o Grande Irmão.

(cap. XXIII)

O companheiro de Júlia não era mais o mesmo. Ele a traiu, ela também o traíra. O encontro pós-tortura de Júlia e Winston não é mais o encontro do amor e do desejo. É o encontro frio regado a gin. Surge um diálogo sobre o encontro. A sugestão de Júlia, por míseros segundos poderia sugerir um novo começo. Mas Winston não estava mais disposto a relutar contra o "Big Brother", aceitava-o. Júlia não era mais um barril de sentimentos, como fora antes. O que acontecera? O Estado terminara o processo de desumanização? Talvez. Winston a seguiu por meio da multidão tentando seguir a humanidade, mas em seus passos não havia mais uma esperança como na primeira vez, perde-se de Júlia, perde-se da humanidade. E não se fala mais nela na obra. Onde fora parar Júlia? Ela entrou na estação do trem subterrâneo. Estações de trens são marcadas por encontros e despedidas, partidas e chegadas, é o lugar da mudança. Após a tortura o casal não é mais o mesmo. A tortura representou uma estação.Mas no fim haveria ainda uma ponta de esperança no encontro, mas o encontro não aconteceu. O que aconteceu com Júlia? O livro não diz. Podemos imagina que Júlia buscara outro homem, buscara outra vida ou continuara na vida desumana proposta pelo Estado. Mas em Júlia, diferente de Winston, no final encontra-se uma linha tênue que faz a humanidade estar presente mesmo dentro do processo de desumanização – um resto de humanidade. Júlia é o sinal que tal possibilidade pode existir, Júlia é a linha tênue da esperança e da felicidade. A felicidade só pode ser um sentimento humano, mesmo de janelas fechadas é sempre cheio de luz.