ANÁLISE CRÍTICA DO DOCUMENTÁRIO “ A GUERRA DO FOGO”

Maria Adilma Vilela de Almeida[1]

RESUMO:

O presente artigo tem como finalidade a análise crítica-jurídica do documentário “A Guerra do Fogo”, sob dois pontos de vista importantes: em primeiro lugar, decompor de forma contextualizada a abordagem temática do citado documentário; em segundo, estabelecer relações existentes entre o documentário e a disciplina História do Direito.

PALAVRAS-CHAVE:

Direito Primitivo, Direito Único, Direito Costumeiro, História do Direito.

ABSTRACT: This movie review is about the picture The Fire War, in a detailed and contemporary view.  The article also intends to demonstrate the relationship between the documentary and the History of the Law.

KEY WORDS: Primitive Law.  Unique Law.  Common Law.  History of the Law.

INTRODUÇÃO:

 

“O direito incorpora a história do desenvolvimento duma nação ao longo de muitos séculos [...]. Para sabermos o que ele é temos de saber o que ele foi e o que ele tem tendência a ser no futuro”. [Oliver Wendell Holmes Jr; in: 'The Common Law”]

 

O documentário em estudo retrata um período na pré-história de dois grupos de hominídeos. O primeiro, que quase não se diferencia dos macacos por não ter fala e se comunicar através de gestos e grunhidos, é pouco evoluído e acha que o fogo é algo sobrenatural pois não dominam ainda a técnica de produzi-lo; o segundo grupo, mais evoluído, tem comunicação e hábitos mais complexos, como a habilidade de fazer o fogo.

Esses dois grupos entram em contato quando o fogo da primeira tribo é apagado em uma guerra com uma tribo de hominídeos mais primitivos, que disputam pela posse do fogo e do território. Três membros do primeiro grupo são destacados para uma jornada que tem por objetivo trazer uma nova chama acesa para a tribo. Nesse caminho deparam-se com um grupo de canibais e resgatam de lá uma mulher pertecente ao grupo mais evoluído. Levados por diversas circunstâncias a um encontro com a tribo originária da mulher que foi resgatada, os três guerreiros  percebem diferenças no modo de viver; na  linguagem, nas construções de cabanas, pintura corporais, o uso de novas ferramentas, e mesmo um modo diferente de reprodução. É certo que quando voltaram à sua aldeia de origem esses três homens não seriam mais os mesmos.

De posse das informações sobre o enredo do filme extraído, ainda que adaptado, de enciclopedia disponível na rede mundial de computadores,  explicitar-se-á as co-relações que podem ser estabelecidas a partir do entendimento do mesmo,  tendo como objeto de  análise,  a doutrina jurídica, em especial, o direito primitivo.

ANÁLISE JURÍDICA:

 

O  documentário “A Guerra do Fogo”, será objeto de análise jurídica a partir de uma perspectiva histórico-antropológica  onde o convívio social é entremeado pela necessidade de sobrevivência e pelas  tradições culturais que envolvem inúmeros aspectos: religião, costumes, hábitos, dentre outros; todos, ainda em nascimento.  O direito encontrado na pré-história, época descrita no documentário, é difícil de ser delimitado, vez que é fruto de um longo caminho de evolução jurídica onde os vestígios deixados são por vezes inacessíveis.

A sociedade pré-histórica fundamenta-se no princípio do parentesco, assim, considera-se que a base geradora do direito primitivo nos grupos humanos apresentadas no documentário, os laços de consanguinidade e o convívio social, unidos por crenças e tradições. Os hominídeos retratados no documentário utilizam basicamente os costumes como fonte de suas normas, ou seja, o que é tradicional no viver e conviver de sua comunidade torna-se regra a ser seguida. Nos grupos sociais onde se podem distinguir pessoas que detêm algum tipo de poder, estes impõem regras de comportamento, dando ordens que acabam tendo caráter geral e permanente. Dessa organização, Pissarra e Fabbrini (2007, p. VII) comentam que:

Primeiro, os homens descobriram suas diferenças individuais. Depois, notaram ser impossível fundar sobre essas diferenças suas normas de conduta. E foi assim que chegaram a descobrir a necessidade de buscar um princípio que ficasse acima dessas diferenças. Dessa forma, a noção de justiça surgiu da necessidade de instaurar normas capazes não apenas de fixar os limites do uso da força e do exercício do poder, como também de restabelecer o equilíbrio nas relações entre pessoas.


Há no documentário em tela traços de presença do direito de família, aqui entendido como sendo ‘família”, o próprio grupo. O direito era obtido ao nascimento e emanava dos costumes originários de cada tribo. Citando Wolkmer (2005):

 “... o direito arcaico pode ser interpretado a partir da compreensão do tipo de sociedade que o gerou. Se a sociedade da pré-história fundamenta-se no princípio do parentesco, pode-se considerar que a base geradora do jurídico encontra-se, primeiramente, nos laços de consanguinidade, nas práticas do convívio familiar de um mesmo grupo social, unido por crenças e tradições.

O direito de propriedade surge em muitos momentos do documentário, por exemplo: quando o território do grupo é ameaçado por outros grupos hominídeos para a tomada da chama que acende o fogo; os grupos possuem consciência dos limites e abrangência do seu próprio território e dos outros, o próprio fogo é aqui caracterizado como propriedade do grupo que o domina, tanto é que, quando é roubado, uma guerra se instala para recuperação do mesmo. Lewis Morgan, na sua obra ―A Sociedade Primitiva, tipifica duas formas pelas quais teve origem o Estado e, por conseguinte, do Direito: a) através de relações pessoais, em que a matriz organizativa é a gens (conjunto de pessoas consanguíneas descendentes de um antepassado comum), que irá evoluir, sucessivamente, para a fratria (reunião de duas ou mais gens da mesma tribo, com vista à realização de determinados fins comuns), a tribo e a confederação de tribos, da qual irá emergir a Nação que se edificará em Estado, regido por normas de Direito; b) através do território e da propriedade, nos quais se assenta a coletividade humana que vai evoluindo a ponto de se tornar necessário o surgimento do Estado, sob o qual se constituirá uma sociedade política, em que as relações das pessoas com o poder (governo) serão determinadas por um vínculo delas com o território (jus soli), logo, pelo direito vigente no território. As duas explicações convergem no sentido de que é a necessidade de regulação das relações sociais, cada vez mais complexas, que leva ao surgimento de uma entidade incumbida de gerir a vida societária (o Estado), dotando-se a sociedade, para o efeito, de um poder especialmente organizado que se vai apoiar na persuasão e na coerção para garantir a observância das normas de convivência social.

O costume era fonte no direito primitivo, pois aquilo que os hominídeos aprendiam no convívio social era o que se tornava regra a ser seguida. Há nesse princípio de história jurídica a presença do direito não legislado (costumeiro), advindo dos preceitos verbais ( via oral) e da decisão pela tradição. O poder dos curandeiros e dos chefes de algumas tribos mais evoluídas era entendido também como fonte do direito porque elas impunham regras de comportamento e estas eram obedecidas pelo restante do grupo. Nesse contexto, o fogo assume também uma forma de poder, visto que seu possuidor garante a sobrevivência do grupo e tem os demais membros como dependentes das regras estabelecidas por quem o domina.

Num tempo em que inexistiam legislações escritas e códigos formais, as práticas primárias de controle são transmitidas oralmente, marcadas por revelações sagradas e divinas. O direito é contaminado pelas práticas religiosas, como a adoração ao fogo, por exemplo. Há ainda a presença do direito único: costumes diferentes para grupos diferentes. Quando membros de um dos grupos se deparam com uma tribo canibal, se assustam, pois na sua tribo não existe possibilidade de “comer os iguais”.

Outro aspecto observado é a presença do direito identificado com a lei, no caso, a lei do mais forte. Alguns prisioneiros são sacrificados por suas tribos, outros devorados (canibalismo) ou  escravizados, e outros, ainda, são designados para o exercício de outras funções nas tribos, como é o caso de um dos guerreiros, que vira objeto sexual, proporcionando um espetáculo para toda a aldeia. A lei do mais forte foi amplamente defendida pelos sofistas, dentre os quais, Platão ( 427 – 347 a.C) em sua famosa obra “A República”(p.320) onde se encontra a assertiva: “o mais forte, o melhor e o mais poderoso são uma só e mesma coisa”.

Havia na pré-história uma diversidade de direitos, fruto do isolamento das comunidades e do pouco contato com outros grupos humanos. O direito também é retratado no documentário como objeto de defesa do próprio grupo, não sendo merecedoras de importância as causas individuais. O direito é ainda identificado com a lei, sendo um conjunto disperso de usos, práticas e costumes, reiterados por determinado período e publicamente aceito.

CONCLUSÃO:

O Direito, por ser um fenômeno social, encontra-se presente onde houver sociedade. O próprio surgimento do Direito confunde-se com o surgimento da sociedade. Já na Antiguidade se dizia que onde existe o Homem existe Sociedade (ubi homo, ibi societas). Mas também se dizia que onde houver sociedade haverá Direito (ubi societas, ibi ius). “Desde as sociedades mais primitivas, sempre houve a preocupação de instaurar normas e fixar princípios que asseguram não apenas a ordem, como também a sobrevivência dos grupos humanos.” (PISSARRA E FABBRINI, 2007, p. VII)

O documentário em análise serviu de base para a visualização de algumas  características que permearam o direito na pré-história, dentre as quais podem-se elencar: a presença do direito abstrato (regras eram percebidas por intermédio do convívio social e passadas de membro a membro e, por vezes, de grupo a grupo), o direito impregnado pela religiosidade; a força e o domínio do fogo como  fonte emanadoras de direito;  a presença de regras definidas pela tradição oral; o direito geralmente diversificado em razão do pouco contato entre as tribos hominídeas. Como regra, é possível dizer que remota e primitivamente, o Direito manifestou-se através do Costume. Os usos e tradições das épocas mais recuadas da civilização prepararam o advento posterior do direito escrito tal qual como o conhecemos hoje.

É fato que o documentário em análise sugere ampla margem para outras abordagens, ficando a cargo de novas discussões a inclusão desses outros aspectos. Inobstante os esforços envidados, a presente análise não tem a pretensão de exaurir o tema apresentado, mas de contribuir para o aprimoramento de um entendimento mais amplo da História do Direito.

REFERÊNCIAS:

CASTRO, Flávia. História do Direito Geral e Brasil. 5ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

LA GUERRE DU FEU (br/ptA Guerra do Fogo). Jean-Jacques Annaud, John Anthony Burgess Wilson, Desmond Morris. Canadá, 1981.

HOLMES JR., Oliver Wendell. The Common Law. New York: Dover, 1991. In: O Realismo Jurídico em Oliver Wendell Holmes Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy Jr.. Original disponível em: http://www.arnaldogodoy.adv.br/artigos/holmes.htm. Acesso em set/2011.

MORGAN, Lewis : A Sociedade Primitiva. 3a ed., São Paulo, Martins Fontes, 1974.

NASCIMENTO, Walter Vieira do Nascimento: Lições de História do Direito.14ª ed., ver. e aum, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2002.

PISSARRA, Maria Constança Peres; FABBRINI, Ricardo Nascimento (Org.). Direito e Filosofia: A Noção de Justiça na História da Filosofia. São Paulo: Atlas, 2007.

PLATÂO: A República. Tradução de Enrico Corvisieri. Ed. Nova Cultural. São Paulo:1997.
WOLKMER, Antonio Carlos: Fundamentos da História do Direito. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005

WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.



[1]  Pedagoga, Coordenadora Pedagógica, Pós Graduada em Supervisão Escolar e Psicologia Educacional, acadêmica do curso de Direito pelo Instituto de Ensino Superior UNYAHNA. Barreiras (BA), setembro/2011. Contato: [email protected].