A Gorda, pensando no crime, pôs-se a comer bolachas.
Cidadã decente e consciente de seus direitos e deveres. Não furta, não mata, não injuria, respeita as leis de trânsito e da vizinhança, paga seus impostos em dia, trabalha, estuda, conhece e respeita a lei, sabe dos tipos, do crime e do castigo do crime.
Não é uma delinqüente na acepção penal da palavra, mas é socialmente perigosa, "Criminosa da Balança". Transgressora, tem problemas com a inexorável "lei da balança", onde não há escapatória, no melhor estilo Beccaria, sua Justiça é eficaz, rápida, proporcional e infalível.
"Um pacote de bolacha doce, que agravo pelo pão de queijo, que atenuo pelos trinta minutos de caminhada que majoro por ser ingestão de carboidrato no horário de repouso".
Na medida exata de sua conduta gulosa, os quilogramas encarceram a mulher magra que na verdade ela é. Reincidente basta que a bolacha acene de longe da prateleira para encher-se de ânimus e delinqüir. Perpetuando a prisão.
Pena em forma de espetáculo, todos assistem à execução, a letra "G" (muitas vezes "GG"), alerta a todos que se trata de meliante sem respeito a moral e a ética da boa forma. A reação contra o mal é esperada. Gulosa, deve pagar! Por retribuição e por prevenção: geral e especial.
Espécie tão fora do padrão e da forma, não se pode esperar boas intenções, é preciso corrigir, normalizar, em nome do bom, da boa e da (calça) justa.
"O crime não compensa", diz o senso comum, e, a Criminosa da Balança, um dia, isso compreendeu. Cansou da prisão, desejou deixar o crime e encontrar seu lugar entre os bons.
Progressão de Regime era a opção.
Disciplinou-se! Perdeu mais da metade da pena. Por comportamento satisfatório e conduta digna da "calça justa", progrediu no regime, ficava justa, mas agora cabia na calça (e na sociedade).
Vestida com a calça justa (seu alvará de soltura), conheceu a vida fora da prisão, com suas tentações, onde não podia descuidar, tinha que vigiar, uma contravenção seria fatal, regressão de regime , voltava à prisão.
Esforçava-se muito para não delinqüir e passado o tempo já tinha o direito de se sentir reabilitada , mas eis que dito cidadão passa a seu lado e em alto e bom tom diz desrespeitoso:
- "Fofinha"!
Na calça justa aparecia o ranço do crime.
O conatus criminoso reaparece com força, de nada valia o empenho, nunca seria normal, as marcas da prisão em seu corpo e alma a condenariam para sempre. A prisão, nesta hora, parecia menos cruel (que a sociedade), chegava a lembrar com certo carinho a época da delinquência, da alegria dolosa de matar impiedosamente o pacote de bolachas, sem importar-se com a reação ou aceitação social, fruindo o sabor do delito, sem culpa, aproveitando a condição de delinqüente para delinqüir.
Por que, haveria de abster-se do delito?
Se o que vale não é a conduta, mas sim a estampa, tudo o que se vê é o rótulo. O discurso que legitima a lei busca pela normalização da conduta, mas na prática, o que vige é poder da estigmatização.
Egressa, delinqüindo ou não, para ela, nada da sonhada reintegração social. Num ciclo vicioso, a prisão persiste de um lado o discurso da punição, que para normalizar, corrigir, deixa de fora da sociedade e de outro o estigma autorizando o crime.
Muito similar ao que acontece com a Gorda, acontece com o Preso, o selecionado do sistema penal, ambos culpados na medida de seu dolo e vítimas eternas de sua rotulação.