A FUNÇÃO LIBERTADORA DA ARTE
Raquel Romano

"O compromisso com a diversidade cultural ganha ênfase na Arte-educação pós-moderna e grande importância tem sido dada aos projetos que demonstram o mesmo valor apreciativo pela produção erudita e pela produção do povo, possibilitando o estabelecimento da relação entre cultura da escola e cultura da comunidade". (BARBOSA, 1998)


Um bom motivo me leva a colocar o foco na Arte-educação, hoje: o trabalho desenvolvido com educadores populares e líderes comunitários, através do Centro de Educação Popular da PUC¬¬-Minas, durante enriquecedores encontros semanais, ao longo de um semestre.
Percebemos as oficinas ganhando um rumo próprio, à medida que os alunos passavam a compreender a função libertadora da arte, na vivência pessoal das atividades propostas, alinhavadas por adequada fundamentação conceitual. Conforme depoimentos de alunos, as expectativas sobre o curso-oficina se alicerçavam em concepções distorcidas sobre a função da arte na educação. Não passariam de ensino de técnicas expressivas artesanais ou receitas prontas de fácil digestão.
Tal percepção, que é recorrente até mesmo em ambientes educacionais, não ocorre gratuitamente. Processos importantes na história da educação nos permitem compreender porque o ensino da arte nem sempre é tratado como conhecimento universal sistematizado, capaz de estimular questionamentos e transformar a vida e a sociedade.¬
A compreensão dos significados, dos processos, das funções e dos valores em relação à Arte e à cultura na educação, em nossa sociedade, em um percurso histórico, é indispensável para serem avaliadas, criticamente, as razões pelas quais ainda há tantos mal-entendidos sobre o desenvolvimento desta área de conhecimento.
A questão central do ensino da Arte e da cultura no Brasil diz respeito a um enorme descompasso entre produção teórica, que tem um trajeto de constantes perguntas e formulações, e o acesso dos professores a essa produção, dificultado talvez pela fragilidade da sua formação, ou pela escassa literatura na área, acrescentando ainda as visões preconcebidas (no próprio ambiente escolar), que reduziram a atividade cultural e artística a um verniz de superfície, para alegrar o cotidiano da escola, omitindo o significado político e sócio-cultural das suas expressões.
Assim, faz-se necessário um olhar investigativo para essa intrigante questão, que exige um recorte histórico orientado para a pouco focalizada história do ensino da Arte, que, por seus parâmetros pedagógicos e metodológicos, se diferencia da História da Arte embora devam manter permanente diálogo, na interseção dos aspectos sócio-culturais que as caracterizam.
A análise histórica mostra que nunca se desvencilhou o ensino da Arte de uma realização cultural, porém voltado para a formação cultural das elites.
A concepção de Arte reduzida a adorno é originária dos primeiros vinte anos do século XIX e, no Brasil, da segunda metade do século XX, e tem um percurso marcadamente relacionado com posicionamentos sócio-políticos, ao longo da história. Sabe-se que, com defasagem de 10 a 20 anos, a educação brasileira seguiu, passo a passo, o modelo americano de ensino da Arte.
A iniciação do ensino artístico no Brasil teve a iniciativa de D. João VI, em 1816, ao trazer a "Missão Francesa", que criou a primeira escola de Belas-Artes, porém só vindo a funcionar dez anos mais tarde. Sua contribuição para a laicização da Arte foi importante, mas não o foi para a sua democratização, já que era baseada no culto à beleza, na crença acerca do dom e em árduos exercícios de cópia, tornando-se acessível a poucos.
Salienta-se que o ensino das Humanidades começou no Brasil pela Arte, com a Academia de Belas Artes, criada na mesma época da Faculdade de Medicina (preparar médicos para cuidar da Corte), Faculdade de Direito (para preparar a elite política) e Escola Militar (para defender o país de invasores). Porém os artistas franceses convidados para assumir a Academia de Belas-Artes eram todos neoclássicos convictos e interferiram ostensivamente na mudança de paradigma estético no Brasil. Instituíram uma Escola neoclássica de linhas retas e puras, contrastando com a abundância do nosso Barroco: instalou-se um preconceito de classe baseado na categorização estética. Para eles, o Barroco era coisa para o povo, idéia que influenciou as elites a se aliarem ao Neoclássico, que passou a ser símbolo de distinção social. Torna-se oportuno esclarecer que, quando chegaram ao Brasil, os franceses encontraram um Barroco florescente. Embora importado de Portugal, o Barroco havia sido modificado pela força criadora dos artistas e artífices brasileiros, e podia-se ver um Barroco já brasileiro, bem diferente do português, do espanhol e do italiano, de formas mais sensuais e sedutoras.
Marcadas pelas lutas para derrubar a Monarquia no Brasil, as décadas de 1870 e 1880 registram o estabelecimento de profundas relações entre Brasil e Estados Unidos. Influenciados pelo liberalismo americano e também pelo positivismo francês, os políticos brasileiros criaram, após a República, novas leis educacionais e a inclusão do desenho geométrico no currículo, não com fins de aplicação na indústria, como propôs Rui Barbosa, mas com o objetivo nascido do positivismo, de desenvolver a racionalidade. De 1890 a 1920, novos métodos de ensino de Arte revigoraram as escolas americanas, enquanto as crianças brasileiras continuavam condicionadas às cópias e ao desenho geométrico.
O movimento de inclusão da Arte na escola primária, apenas como atividade integrativa, para "expressar ou para fixar" conhecimentos, começou no Brasil, a partir de 1920, com as tentativas de reforma de Sampaio Dória, depois, reforçadas pela Escola Nova.
A influência da Psicologia no ensino da arte, desde o início do século XX, acentuou a livre expressão como cerne da educação artística, que continuava associada ao desenho e às artes visuais, somente.
Na mesma linha de análise, citamos a interpretação equivocada das propostas educacionais de John Dewey no Brasil, provocando um exagerado espontaneísmo, que desvirtuou a idéia central do processo criativo, aqui focalizado.
Segundo Dewey, no processo de articulação e ordenação, o potencial criador dialoga com as experiências anteriormente acumuladas pelo sujeito da ação. Através de uma transformação que respeita a especificidade do sujeito e do objeto a ser conhecido ou construído, dá-se a aprendizagem por experiência significativa.
Grandes mudanças ocorreram com o Movimento Modernista, que trouxe grande impacto para o mundo das artes. Nas artes plásticas, vemos aflorar as crenças modernistas sobre a natureza da arte, o caráter da criatividade e originalidade artística e, ainda o seu papel na sociedade.
Estudos e pesquisas recentes geraram avanços conceituais, transformando os fundamentos do ensino da arte (metodologia, objetivos, conteúdos, avaliação e o papel do professor), na busca de acrescentar suas dimensões cognitiva, estética e social.
A arte - com toda a sua riqueza de linguagens (música, plástica, teatro, dança, literatura) - , ocupa lugar de valor inquestionável na educação, considerando sua natureza democrática de permitir a vivência e o conhecimento artístico como direito de todos. A arte funciona como um processo de articulação da experiência de significação da relação do indivíduo com o meio e consigo mesmo.
Na Arte-Educação, a ação pedagógica enfatiza a relevância do processo de criação (meio), focalizando o produto artístico (fim) como um dos indicadores do desenvolvimento do potencial criativo. Ou seja, o processo de criação torna-se mais importante que a materialização do resultado. Ou, no processo já se encontram resultados.
Isto se justifica na natureza democrática da educação pela arte, que valoriza a expressão criadora como direito e possibilidade de todo indivíduo e, em coerência, rejeita as atitudes discriminatórias que privilegiam somente aqueles que já apresentam potencial artístico desenvolvido.
Partimos da tese de que todas as pessoas são criativas, mas algumas adquirem, em maior ou menor grau, algum tipo de bloqueio para se expressar livremente. Destaca-se aí a Arte-Educação, soberana e libertadora nas suas infinitas possibilidades de comunicação e expressão - de emoções, sentimentos e idéias -, proporcionando ao cidadão o legítimo direito à leitura e intervenção na sua realidade sócio-cultural.
Pode-se afirmar que a Arte é poderoso canal de conexão com a experiência estética, à medida que proporciona o envolvimento total do indivíduo com o objeto estético ou com o processo criador, fazendo com que a sua consciência não mais apreenda segundo as regras da realidade, mas ultrapasse a um relacionamento dos sistemas conceituais, equilibrando-se, nessa experiência, as faculdades intelectivas e emocionais.
Lanier (2002, p.43) propõe "devolver a Arte à arte-educação", ao mesmo tempo que denuncia a "fragmentação de idéias que impera no ensino da arte", que, segundo ele, "não é em si perniciosa, mas carece de um quadro conceitual coeso".
Reportando a atenção ao projeto do Centro de Educação Popular da PUC, pude presenciar, a cada encontro, a alegria das descobertas: no ato criador individual, a descoberta das possibilidades pessoais adormecidas, da própria identidade diluída no caos da sobrevivência; nos trabalhos em grupos, a constatação da importância do construir, na interação das idéias e das diferenças, que geram soluções criativas coletivizadas.
O trabalho foi estruturado em diretrizes essencialmente vivenciais, numa contextualização do multiculturalismo em projetos comunitários, abordagens que despertaram grande interesse no grupo atendido.
A abordagem da experiência estética ou alfabetização estética - como querem alguns autores, como Ana Mae Barbosa - aproxima-se da abordagem multicultural, que se associa à estética do cotidiano como uma fonte de referência cultural, já explorada por arte-educadores, inclusive no meio rural, sendo denominada de estética interiorana. Significa, por exemplo, uma forma de valorizar os modos de viver, a forma de relação estética com os objetos domésticos e com o conceito particular do belo, livres de conceitos impregnados por códigos estéticos dominantes. Inclui nessa noção a própria idéia de multiculturalismo, que propõe o respeito às diferenças sociais e à diversidade cultural, presentes nas manifestações culturais populares que abrangem uma variada gama de linguagens artísticas.
As experiências artístico-pedagógicas podem ser conduzidas por diferentes caminhos, conforme o entendimento e a apropriação que cada professor tem acerca do termo "multicultural". Portanto, é inconcebível receita pronta para o desenvolvimento da Arte na educação.
Com o sentido de fomentar ações culturais nas comunidades, a cada encontro tinha a alegria de testemunhar a proposta de trabalho saltando do papel, para fazer parte de uma vivência transformadora: projetos participativos alicerçados na liberdade de expressão e no compromisso sócio-cultural, tendo como eficientes instrumentos, as diversas linguagens artísticas interagindo numa comunicação democrática e universal, através do pensar, do sentir e do fazer de cada aluno.

Enfim, entendendo que a função básica da Arte-Educação, diante do seu poder de intervenção sócio-política, cultural e pedagógica, é contribuir para a formação do cidadão, padrões ultrapassados de gestão pedagógica e ação comunitária devem dar lugar a um processo de construção participativa, que parta de uma reflexão coletivizada.
Ao final dos encontros (encontro representa mais profundamente a essência do programa, denominado curso-oficina) vem o esperado encerramento, a culminância festiva, sob uma lona de circo, armada no pátio da PUC. O palco se tornou pequeno para tanta variedade de manifestações artísticas, que se revezavam, intercalando teatro e musica, mostra de expressão plástica e sarau poético, instalações e performances. A experiência foi de dupla sensação: a de que teríamos muito ainda a fazer, considerando as infindáveis possibilidades de descobertas do ser humano "desperto" ? e, também, a de missão cumprida, na concretude da interação entre ética, estética e poética, na educação do olhar que critica, cria e transforma, com um apropriado e livre gesto de cidadania.

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