A FUNÇÃO HERMENÊUTICA DO DISTANCIAMENTO EM PAUL RICOEUR

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Ricoeur procura elaborar um problema hermenêutico "de um modo que seja significativo para o dialogo entre a hermenêutica e as disciplinas semiológicas e exegéticas". Sua problemática é dominante e diferencia da alternativa entre distanciamento alienante e participação por pertença sendo que o dominante na problemática é o texto. "O texto é muito mais que ?caso particular de comunicação inter-humana?, pois é o paradigma do distanciamento na comunicação".

Na função positiva e produtora do distanciamento será elaborada a noção de texto. A problemática será organizada da seguinte forma: *A efetuação da linguagem como discurso; *A efetuação do discurso como obra estruturada; * A relação da fala com a escrita no discurso e nas obras de discurso; *A obra de discurso como projeção de um mundo; * O discurso e a obra de discurso como mediação da compreensão de si. Eles constituirão os critérios da textualidade.

A questão da escrita, de forma alguma constitui a problemática única do texto, pois está situada no centro dessa rede de critérios. Assim, "não poderíamos identificar pura e simplesmente texto e escrita" por que primeiro "não é a escrita que suscita em problema hermenêutico, mas a dialética da fala e da escrita". Segundo porque "é no próprio que se deve procurar a raiz de todas as dialéticas ulteriores". E por terceiro, porque entre os dois é necessário intercalar a "efetuação do discurso como obra estruturada".

Compreender é de algum modo traduzir, transpor, vencer a distancia que seria cultural, lingüística... Entre nós e o texto. O centro da gravidade da questão hermenêutica, Ricoeur chama de o "mundo da obra", que é constituída pelo discurso obra-escrita.

O discurso "apresenta um traço absolutamente primitivo de distanciamento", que é a condição de possibilidade de todos os traços que serão tratados posteriormente. O traço primitivo caracteriza-se pela dialética do evento e da significação. De um lado o discurso se dá como evento: "Algo acontece quando alguém fala". Essa noção é imposta desde que se considera a passagem de uma lingüística da língua ou do código a uma lingüística do discurso ou da mensagem.

"Dizer que o discurso é um evento é dizer, antes de tudo, que o discurso é realizado temporalmente e no presente, enquanto que o sistema da língua é virtual e fora do tempo". "O discurso remete a seu interlocutor, mediante um conjunto complexo de indicadores, tais com os pronomes pessoais". Assim, "a instancia do discurso é auto-referencial".

Evento seria o fato de alguém falar algo usando a palavra. O evento também consiste em ser discurso. Nesse sentido "é a vinda à linguagem de um mundo mediante o discurso". A língua é a condição previa da comunicação, fornecendo os seus códigos. Esses foram os traços que anteriormente foram mencionados que seria citado posteriormente.

"Se todo discurso é efetuado como evento, todo discurso é compreendido como significação". "O que pretendemos compreender não é o evento, na medida em que é fugidio, mas sua significação que permanece". O núcleo do problema hermenêutico se dá na lingüística do discurso que o evento e o sentido se articulam um sobre o outro.

"O primeiro distanciamento é o distanciamento do dizer no dito". Para esclarecer esse problema à hermenêutica não deve recorrer somente a lingüística, mas também a teoria do (Ato da Fala) "Speech-Act". O ato do discurso constitui de uma hierarquia de atos subordinados, distribuídos em níveis. O primeiro nível é o ato locucionário ? ato de dizer. O segundo nível é o ato ilocucionário ? aquilo que fazemos ao dizer. O terceiro nível é o ato perlocucionário - aquilo que fazemos pelo fato de falar.

"É necessário entender por significação do ato de discurso, não somente o correlato da frase, no sentido estrito do ato proposicional, mas também o da força ilocucionária e, mesmo, o da ação perlocucionária, na medida em que esses três aspectos do ato de discurso são codificados e regulados segundo paradigmas; na medida, pois, em que podem ser identificados ou reidentificados como possuindo a mesma significação". Assim, significação ganha uma acepção "bastante ampla, recobrindo todos os aspectos e todos os níveis da exteriorização intencional que torna possível, por sua vez, a exteriorização do discurso na obra e nos escritos".

Obra é: * "seqüência mais longa que a frase, e que suscita um problema novo de compreensão, relativo à totalidade finita e fechada constituída pela obra enquanto tal". * "è submetida a uma forma de codificação que se aplica à própria composição e faz como que o discurso seja um relato, um poema, um ensaio" e outros. * "Uma obra que recebe uma configuração única, que a assimila a um individuo e que se chama de estilo".

"A obra literária é o resultado de um trabalho que organiza a linguagem. Ao trabalhar o discurso, o homem opera a determinação prática de uma categoria de indivíduos: as obras de discurso". O problema da literatura vem inscrever-se no interior de uma estilística geral, concebida como "meditação sobra às obras humanas" e especificada pela noção de trabalho, de que busca as condições de possibilidade: "procurar as mais condições de inserção das estruturas numa prática individual, esta seria a tarefa de uma estilística".

"A estilização surge no seio de uma experiência já estruturada, mas comportando aberturas, possibilidades de jogo, indeterminações. Apreender uma obra como evento é captar a relação entre a situação e o projeto no processo de reestruturação".

"O estilo é a promoção de um parti pris legível numa obra que, por sua singularidade, ilustra e enaltece o caráter acontecimental do discurso". "A configuração singular da obra e a configuração singular do autor são estritamente correlativas. O homem se individua produzindo obras individuais. Assinatura é a marca dessa relação".

"A objetivação do discurso na obra e o caráter estrutural da composição, a que se acrescentará o distanciamento pela escrita, leva-nos a questionar por completo a oposição recebida de Dilthey entre "compreender" e "explicar". "A Objetivação do discurso, numa obra estruturada, não suprime o traço fundamental e primeiro do discurso. A hermenêutica... Permanece a arte de discernir o discurso na obra.
"À primeira vista, a escrita parece introduzir apenas um fator puramente exterior e material... a fixação não passa da aparência externa de um problema singularmente mais importante concernindo a todas as propriedades do discurso que enumeramos anteriormente". A escrita torna o texto autônomo relativamente à intenção do autor. "Graças à escrita, o "mundo" do texto pode fazer explodir o mundo do autor".

"É essencial a uma obra literária, a uma obra de arte em geral, que ela transcenda suas próprias condições psicossociológicas de produção e que se abra, assim, a uma seqüência ilimitada de leituras, elas mesmas situadas em contextos sócio-culturais diferentes". Em síntese do que já foi dito: "O texto deve poder, tanto do ponto de vista sociológico quanto do psicológico, descontextualizar-se de maneira a deixar-se recontextualizar numa nova situação: é o que justamente faz o ato de ler".

Essa libertação em relação ao autor possui seu equivalente por parte daquele que recebe o texto. A Escrita encontra a libertação da coisa escrita relativamente à condição dialogal do discurso. Escrever e ler não são um caso particular da relação entre falar e ouvir.

Objetivação e interpretação ? A passagem à escrita afeta o discurso de vários modos; de uma maneira especial, o funcionamento de referência fica alterado quando não nos é mais possível mostrar a coisa de que falamos como pertencendo à situação comum aos interlocutores do dialogo. Mas a seguir, o tema falará sobre esse problema, como o "Mundo do texto".

O "mundo do texto" nos levará a ultrapassar as posições da hermenêutica romântica, mas também às antípodas do estruturalismo. A hermenêutica romântica enfatizava a expressão da genialidade. Essa era a tarefa da hermenêutica, igualar-se a essa genialidade, tornar-se contemporâneo dela. A tarefa da hermenêutica fundamental escapa à alternativa da genialidade ou da estrutura. Vinculo-a à noção do "mundo do texto".

"A escrita, mas sobretudo, a estrutura da obra, alteram a referencia, a ponto de torná-la inteiramente problemática. No discurso oral, o problema se resolve, enfim, na função ostensiva do discurso. Em outros termos, a referencia se resolve no poder de mostrar uma realidade comum aos interlocutores".

Com a escrita, as coisas já começaram a mudar. Não há mais, com efeito, situação comum ao escritor e ao leitor. Ao mesmo tempo, as condições concretas do ato de mostrar não existem mais.

"O que deve ser interpretado no texto, é um a proposição de mundo, de um mundo tal como posso habitá-lo para nele projetar um de meus possíveis mais próprios. É o que chamo de mundo do texto, o mundo próprio a este teto único".

"O mundo do texto de que falamos não é, pois, o da linguagem quotidiana". "Ele constitui uma nova espécie de distanciamento que se poderia dizer entre o real e si mesmo. Trata-se do distanciamento que a ficção introduz em nossa apreensão do real". É Este o terceiro tipo de distanciamento que a experiência hermenêutica deve incorporar.

A quarta e ultima dimensão da noção de texto é Compreender-se diante da obra. O texto é a mediação pela qual nos compreendemos a nós mesmos. Este tema marca a entrada em cena da subjetividade do leitor.

O problema hermenêutico tradicional da apropriação ou da aplicação do texto à situação presente do locutor é concordado por Ricoeur. A apropriação está dialeticamente ligada ao distanciamento típico da escrita. Graças ao distanciamento pela escrita, a apropriação não possui mais nenhum dos caracteres da afinidade afetiva com a intenção de um autor. A apropriação é compreensão pela distancia, compreensão a distancia.

A apropriação está dialeticamente ligada à objetivação típica da Obra. A apropriação possui "a coisa do texto" e que Ricoeur a chama de "o mundo da obra". Essa proposição não se encontra atas do texto, como uma espécie de intenção oculta, mas diante dele, como aquilo que a obra desvenda, descobre, revela. Por conseguinte, compreender é compreender-se diante do texto.
"A compreensão torna-se, então, o contrario de uma constituição de que o sujeito teria a chave. A este respeito, seria mais justo dizer que o si é constituído pela "coisa" do texto." "A compreensão torna-se, então tanto desapropriação quanto apropriação."

"Não podemos mais opor hermenêutica e critica das ideologias. A critica das ideologias é o atalho que a compreensão de si deve necessariamente tomar, caso esta deixe-se formar pela coisa do texto, e não pelos preconceitos do leitor".

Assim, percebe-se que "em todos os níveis da análise, o distanciamento é a condição da compreensão".