A FUNÇÃO DA DOGMÁTICA PENAL NO SISTEMA PENAL CAPITALISTA:
De uma política penal a uma política criminal

Líria Almeida Nogueira
Luciana Nepomuceno Alencar

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Análise histórica: formação do Código Penal Brasileiro; 3 A legitimação do sistema penal capitalista; 4 Política penal; 4.1 A função do cárcere na política penal; 5 Política criminal e alternativa;6 Conclusão;Referência.

RESUMO
Aborda-se a Dogmática Penal no contexto do sistema econômico capitalista e as políticas utilizadas em seu bojo. Observam-se as inúmeras transformações assumidas pelo sistema penal que vão de encontro à sua função declarada de ação e prática social, dando lugar a uma política excludente e seletista. Problematiza-se essa dicotomia penal-criminalista decorrente das mudanças de valores e paradigmas verificados no seio do sistema capitalista.

PALAVRAS-CHAVE
Dogmática penal. Política penal. Política criminal.

1 INTRODUÇÃO

Tratar de questões que envolvam a dogmática penal é requisito fundamental para podermos problematizar as políticas que o sistema penal brasileiro adotou no contexto atual, dando destaque, em especial, a política penal e criminal.
Nessa perspectiva, faz-se necessário, primeiramente, estabelecermos o contexto histórico em que o código penal vigente teve origem, não deixando de mencionar aqueles elaborados anteriormente. Após definido esse enredo temporal, há, neste segundo momento, a necessidade de explicitarmos, com mais afinco, a legitimação do sistema penal capitalista e da mesma forma, expor as características da política penal e a função do cárcere nesta conjuntura.
Em seguida, verificaremos a existência de uma política criminal voltada aos valores e a diminuição das desigualdades sociais, sendo esta totalmente adversa da penal. Sendo assim, problematiza-se essa dicotomia penal-criminal numa tentativa de mudarmos a realidade a qual estamos inseridos.

2 ANÁLISE HISTÓRICA:FORMAÇÃO DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO

Antes de ingressarmos no cerne da problemática apresentada neste artigo, é necessário esclarecermos de antemão, como o Código Penal Brasileiro foi construído para podermos assim entender como as políticas penais, principalmente a penal, fez-se sentir em território nacional.
Após ter se subordinado às Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, no período colonial, e depois da proclamação da sua Independência , em 1822, o Brasil adotou como afirma Rogério Greco , os seguintes códigos: Código Criminal do Império do Brasil, aprovado em 16 de dezembro de 1830; o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, em 11 de outubro de 1890; a Consolidação das Leis Penais, em 14 de dezembro de 1932 e por fim,o Código Penal, criado pelo Decreto-Lei nº2. 848 de 7 de dezembro de1940, pelo então Presidente da República Getúlio Vargas que "ao estabelecer um novo modelo de acumulação de capital (industrial), necessitava de meios mais eficazes de regulação e controle da força de trabalho"
O projeto que deu origem a este código teve como redator Alcântara Machado, que o entregou para a análise em 1938. Este passou por uma comissão revisora formada pelos magistrados Vieira Braga, Nelson Hungria, Nacelio Queiroz; Roberto Lira, representante do Ministério Público; sem mencionar a participação especial de Antonio José da Costa e Silva.
No entanto, houve algumas tentativas de substituição do mesmo, embora não obtivesse êxito. O primeiro foi o Decreto-lei nº 1.004, de 21 de outubro de 1969. No entanto, em virtude de inúmeras críticas, este foi incorporado pela Lei nº 6.016, de 31 de dezembro de 1973. De forma análoga, foi revogado pela Lei nº 6.578, de 11 de dezembro de 1978.
Após todo esse percalço para a revisão do sistema penal, foi instituída em 27 de novembro de 1980, uma comissão para a elaboração de um anteprojeto de lei de reforma da parte geral do Código Penal de 1940. Esta foi presidida por Francisco de Assis Toledo e tinha como integrantes Miguel Reale Júnior, Hélio Fonseca, Rogério Lauria Tucci, Francisco Serrano Neves, Renê Ariel Dotti e Ricardo Antunes Andreucci.
Dos debates que ocorreram em virtude da Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984, alterou-se a parte geral deste código, passando a vigir seis meses após a data de sua publicação.E este é o que utilizamos atualmente.

3 A LEGITIMAÇÃO DO SISTEMA PENAL CAPITALISTA

A lógica capitalista é caracterizada como um sistema sócio-econômico, político e social cujas bases estão na propriedade privada dos meios de produção. Este sistema ao separar o capital do trabalho pressupõe relações de dominação e exploração. Um dos pontos mais sensíveis da análise do sistema capitalista está na percepção do aumento descontrolado da exclusão que é diretamente proporcional ao desenvolvimento das relações capitalistas.
No Brasil, com o surgimento do Neoliberalismo, o Estado torna-se mínimo no campo social e da cidadania e Estado máximo no campo penal. É neste contexto que parte o cerne da análise de uma legitimação do sistema penal capitalista, de um sistema penal que age apenas para proteger os interesses das classes dominantes. Em outras palavras, o sistema penal passa a ser o braço forte do Estado visando à higienização do espaço público e a minimização das tensões das classes subalternas.
Diante desta lógica, o sistema penal passa a chamar-se sistema penal capitalista visto que conserva, produz e reproduz o capitalismo. Como aponta Vera Andrade , o sistema penal deixa de lado sua principal função que é a tutela dos interesses e direitos dos indivíduos para exercer a função ativa de conservação das relações sociais desiguais. Passa a operar de forma seletiva e estigmatizante em busca dos interesses das classes dominantes.
De acordo com a crítica de Alessandro Baratta , a lógica da acumulação capitalista alimenta a necessidade de manter os setores da marginalização criminal, ou seja, o sistema capitalista pressupõe uma exclusão que é fundamental para o seu funcionamento, tem necessidade de desemprego e marginalidade social, chocando-se, desta forma, com os direitos que o mesmo declara cumprir. O sistema capitalista exige uma disciplina e repressão com o único objetivo de conter as classes dominadas. Neste momento, o sistema penal entra em ação colaborando constantemente com a conservação deste sistema excludente.
É neste contexto de construção de um sistema seletivo e do aumento significativo da lei do valor e da economia que se constrói e se legitima o sistema penal capitalista. Desenvolvendo, desta forma, políticas de caráter exclusivamente penais e terroristas contrárias aquelas de cunho social e que busca garantir os direitos fundamentais dos indivíduos.

4 POLÍTICA PENAL

A criminologia crítica insere na análise do processo de criminalização a distinção entre as funções declaradas e as funções reais do sistema penal. A primeira acepção é vista como as funções que o Estado discursa, apresentando o sistema penal como "igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas" ?. As funções reais são, entretanto, integralmente opostas às funções que o Estado declara, ou seja, nesta acepção o sistema penal "é seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas, integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas."
A política criminal neste contexto é vista numa acepção negativa visto que pressupõem as práticas executadas pelo Estado para cumprir as funções reais do sistema penal. Alessandro Baratta esclarece com maestria esse conceito quando cita que a política penal é entendida como "uma resposta à questão criminal circunscrita ao âmbito do exercício da função punitiva do Estado". Desta forma, a política penal age de acordo com os interesses das classes dominantes em detrimento dos interesses dos dominados. Destarte, é limitada a função punitiva do Estado.
Um conceito fundamental para compreendermos esta análise é a seletividade, vista como fundamental para o cumprimento das políticas penais, visto que, em função da primeira age a segunda. De acordo com Alessandro Baratta a seletividade se expressa de forma a prestigiar os interesses das classes dominantes e a de resguardar o processo de criminalização para os crimes típicos das classes dominadas.
No Brasil, segundo Nilo Batista , a seletividade, a repressividade e a estigmatização são algumas das características centrais do sistema penal brasileiro. Numa análise da situação do penalismo latino-americano, Eugenio Zaffaroni identifica um discurso jurídico penal falso e afirma que "a realidade operacional de nossos sistemas penais jamais poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico-penal". Para ele, os órgãos do sistema penal exercem um poder militarizador e verticalizador-disciplinar que age sobre as classes mais carentes da sociedade. Agem, portanto, de forma seletiva e acompanhada de ampla publicidade, espetacularizando e ampliando a criminalidade.
Destarte, em concordância com Alessandro Baratta podemos identificar as principais funções reais do direito penal que a política penal deve cumprir: o direito penal não defende todos, e somente os bens essenciais dos quais todos igualmente são interessados, e pune com intensidade desigual; a dogmática penal não é igual para todos, o título de criminoso é distribuído de modo não igualitário entre os setores da sociedade; a distribuição do etiquetamento é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações a lei.
O direito penal, portanto, está indo em direção oposta ao conceito de cidadania, visto que, enquanto a cidadania está no campo de lutas pelos direitos fundamentais dos indivíduos, o direito penal está no campo do controle e da violação desses direitos, os quais são inerentes ao homem.

4.1 A função do cárcere na política penal

O cárcere é visto como um dos principais instrumentos utilizados pela política penal. Nasce juntamente com a sociedade capitalista que dele necessita para exercer o controle social e manutenção da estigmatização nos setores da sociedade. Dentre suas funções na política penal, o cárcere age com o objetivo de impedir a ascensão social das classes dominadas, produzindo, assim, os sujeitos e a própria relação de desigualdade.
Loic Wacquant faz uma desconstrução da afirmação de que o encarceramento diminui o índice de criminalidade. Pelo contrário, o encarceramento apenas agrava a situação, é uma fábrica de criminalização, um ambiente de constante violência e humilhação que causa no indivíduo uma degradação particular. Portanto, a afirmação de que o cárcere é um meio de ressocialização e cura para os criminosos é inteiramente falsa, visto que, causa no indivíduo efeitos negativos que levará para sempre na sua formação pessoal.
A "clientela" da prisão, de acordo com Vera Andrade ?, obedece a uma lógica de etiquetamento dos estratos sociais mais carentes da sociedade, confirmando a expressão popular que "a prisão é feita para o preto, o pobre e a prostituta". É, portanto, um lugar de recrutamento dos indivíduos marginalizados da sociedade, que visa uma "higienização" do espaço público para a livre ação das classes dominantes.
Alessandro Baratta conclui de forma excelente a função do cárcere no sistema capitalista quando afirma que o cárcere representa "a ponta do iceberg que é o sistema penal burguês, o momento culminante de um processo de seleção que começa ainda antes da intervenção do sistema penal, é a consolidação definitiva de uma carreira criminosa."
Logo, podemos perceber que o cárcere também cumpre uma função real diferente daquela declarada, na qual a política penal tem o dever de produzir estratégias com o objetivo de manter o sistema carcerário como instrumento de controle e manutenção da estigimatização cada vez mais gritante nas classes dominantes e dominadas, "sendo os seus efeitos tanto mais cruéis quanto maior for a carência de recursos."

5 POLÍTICA CRIMINAL E ALTERNATIVA

A política criminal diferencia-se da política penal, visto que, aquela, está em um sentido positivo, pois age de forma oposta ao caráter punitivo do Estado, agindo em busca de uma transformação social. Nilo Batista ao diferenciar essas categorias faz referência à política criminal como "política de transformação social e institucional, para a construção da igualdade, da democracia e de modos que buscam efetivar o "dever-ser" de tutelar os interesses e bens da sociedade.
A política criminal alternativa é apontada por Alessandro Baratta como uma forma estratégica de transformação que busca desenvolver a igualdade, principalmente, nas classes carentes. De acordo com esta política são indicadas direções que buscam extinguir o poder punitivo do Estado e proporcionar às classes excluídas a igualdade.
Segundo Alessandro Baratta , dentre as principais alternativas defendidas pela política criminal alternativa podemos extrair: ampliação e reforço da tutela penal em áreas de interesse essencial para a vida de todos os indivíduos da sociedade como, saúde, segurança, trabalho; retração ao máximo do sistema punitivo; análise realista e transformadora das funções efetivamente exercidas pelo cárcere e uma possível abolição da mesma; buscar ampliar o sistema de medidas alternativas e uma análise realista dos efeitos causados pelo sistema penal capitalista e a reforma da sua lógica.
Esta política, portanto, orienta-se de acordo com os preceitos da cidadania, pois está no campo da luta pela emancipação das classes subalternas, que buscam a sua libertação das manobras das classes dominantes e a garantia da tutela dos bens essenciais à vida de todo indivíduo que vive na sociedade.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista ao que aqui foi apresentado, observamos que com o desenvolvimento do capitalismo torna-se efetiva a concretização de uma política penal extremamente desigual e seletista. Esta fundamentada na função real até então posta pelo Sistema Penal Brasileiro através do cárcere, aparelho este utilizado para a perpetuação da estigmatização social. Acaba por deixar de lado uma política assentada na valorização e proteção dos direitos sociais defendidos com grande força pela Constituição de 1998. Desta forma, como nos afirma Rogério Greco a previsão que fazemos para o futuro não é a das melhores, pois infelizmente as autoridades competentes esqueceram que este não é um problema jurídico, mas sim político.Assim, a solução existente para a redução dos índices de criminalidade é a construção de políticas públicas destinadas exclusivamente a reduzir a desigualdade social tão presente em nossa sociedade.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado editora, 2003.
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3 ed.Rio de Janeiro:Revan,2002.
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 10 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2005.
CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Sistema de Penas, Dogmática Jurídico-Penal e Política Criminal. São Paulo: Cultural Paulista, 2002.
Código Penal Brasileiro. Wikipedia.Disponível em:< http:// PT.wikipedia.org/wiki/%CC3%B3digoPenalbrasileiro>.Acesso em: 19 maio 2009.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 8 ed.Rio de Janeiro:Impetus,2007.
¬______________. O futuro do direito penal. Revista Jurídica Consulex, São Paulo, n.287, v.12, 31 dez. 2008, p.30-31.
SOARES, Moisés Alves; Mello, Eduardo Granzotto.A autonomia das esferas jurídica e política: a greve no Código Penal de 1940.Disponível em:< http: // WWW.sbpcnet.org.br/livro/60ra/resumos/resumos/R4213-1.html>. Acesso em: 19 maio 2009.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
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