A FICÇÃO REGIONAL EM SÉRIE E A FRONTEIRA DIALÓGICA

“ O homem não possui somente o poder de reproduzir,

de tirar as conseqüências de uma conduta adquirida,

ele possui igualmente a capacidade de mudar a ordem

relativa de seus atos e de suas representações”

 

(Pierre Francastel, historiador e crítico de arte francês)

Na fronteira imprecisa que separa o modelo regionalista dominante das demais composições ficcionais, abre-se um espaço para a obra  Vidas Secas de Graciliano Ramos, cujos pontos teóricos rompem com a concepção tradicional e linear da estética naturalista dos anos 30, sobretudo por  repensar a caracterização intrínseca da ficção regional pelo viés da “composição descontínua em série de quadros justapostos” e pela imanência no pensamento independente da personagem no discurso do narrador; engendra-se, neste escrito, algumas reflexões sobre as personagens Sinhá Vitória e Fabiano da novela Vidas Secas.

O ponto nodal configura-se em mostrar o confronto das consciências desses entes ficcionais e sua representação no discurso do narrador: trazer à baila a tessitura que erigi as “almas calcificadas” de Fabiano e Sinhá Vitória não como seres apagados, mas como entidades narrativas portadoras de uma voz interiorizada que ecoa na retórica do narrador; vale dizer, que as personagens ao buscarem articular a linguagem, no início “sons e interjeições guturais” conseguem no final confeccionar um discurso que se interpreta e que procura interpretar o pensamento dos outros sobre si, tecendo uma consciência e autoconsciência.

O CORTE REGIONALISTA: GRACILIANO ARTESÃO DA PALAVRA

“Fez do seu capricho uma regra de composição...”

         ( “O homem do subterrâneo”, Augusto Meyer)

 

Antonio Candido ao comentar o estilo de Graciliano Ramos observa que o ceticismo é a marca pessoal do escritor, o que faz parecer que “os livros de  Graciliano Ramos se  concatenam num  sistema literário pessimista”. Dessa maneira, dentro da produção literária graciliana, talvez Vidas Secas seja uma das obras que melhor traduzem perspicazes compreensões da natureza humana, desde as mais  brutas às mais sensíveis.

Com efeito, esta novela contraria o regionalismo tradicional por não apresentar em primeiro plano as paisagens regionais de forma estática, como mera localização do tempo, no qual o naturalismo exacerbado  justifica todo o comportamento das personagens, Graciliano como bom artesão da palavra oferece ao leitor estímulo para mergulhar no mundo ficcional criado na narrativa, ou antes desenvolver condições para a interação do universo introspectivo das  personagens com a própria paisagem:

“Entrava dia e saía dia. As noites cobriam a terra de chofre. A tampa anilada baixava, escurecia, quebrada pelas vermelhidões do poente.

Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarravam-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores. O coração de Fabiano bateu junto do coração de sinhá Vitória, um abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam. Resistiram à fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem ânimo de afrontar de novo a luz dura, receosos de perder a esperança que os alentava“.

                                                                                                                           (Vidas Secas, 1984, p.13)

É dessa forma que o autor coloca-se contrário ao padrão regional, e nisto consiste sua originalidade, pois ao dispor a paisagem em segundo plano, propositalmente Graciliano diminui a importância do cenário narrativo como: as queimadas, as secas, o poente vermelho, as cheias, que somente apareceram na história quando relacionadas aos pensamentos, sentimentos e reflexões das personagens.

A esse respeito diz Álvaro Lins:

“...Graciliano Ramos: um homem do seu meio físico e social, ao mesmo tempo que um romancista voltado para a introspecção, a análise, os motivos psicológicos.

Meio físico – o que seria, no romance, a paisagem exterior – não aparece muito objetivamente no romance do Sr. Graciliano Ramos. Ele exprime o ambiente com fidelidade, mas somente em função de seus personagens. A ambivalência é um acidente; o personagem é que é a vida romanesca. A paisagem exterior torna-se uma projeção do homem.”               

                                                                                (Valores e misérias das Vidas Secas, 1894, 129-30)

 
De fato, percebe-se que Graciliano não confirma o modelo regionalista, pois Vidas Secas deve ser analisado como uma obra que se condensa  na riqueza de um vocabulário silencioso, cuja linguagem não é reprodução lingüística, nem reprodução da realidade regional. Para Graciliano, a “observação dos fatos que devem contribuir para a formação da obra de arte” e o estudo das coisas nacionais “de baixo para cima”, não supõe que se reduza a literatura ao pitoresco e ao documental, como acontece com grande parte dos autores do decênio de 30. Em virtude disso, é cabível estender a toda a obra de Graciliano o que Antonio Candido afirma a respeito de São Bernardo: a inexistência da descrição, no sentido romântico e naturalista do termo, e a incorporação da paisagem ao ritmo psicológico da narrativa.

Observa-se o seguinte fragmento:

“...Cada qual como Deus o fez. Ele, Fabiano, era aquilo mesmo, um bruto.

O que desejava... An! Esquecia-se. Agora se recordava da viagem que tinha feito pelo sertão, a cair de fome. As pernas dos meninos eram finas como bilros, sinhá Vitória tropicava debaixo do baú de trens. Na beira do rio haviam comido o papagaio, que não sabia falar. Necessidade.

Fabiano também não sabia falar. Às vezes largava nomes arrevesados, por embromação. Via perfeitamente que tudo era besteira. Não podia arrumar o que tinha no interior. Se pudesse... Ah! Se pudesse, atacaria os soldados amarelos que espancavam as criaturas inofensivas.”         

                                                                                                                                    (Vidas Secas, 1984, p.36)

É lícito dizer que a composição estrutural da obra graciliana foge à regra dos romances cíclicos como: o ciclo do engenho, da seca, do cangaço e etc, tão privilegiados pelo neonaturalismo de Trinta, cuja técnica consistia segundo Flora Sussekind em “narrar transformações que não se deram do dia para a noite, que tiveram larga duração e sua representação se dá em vários volumes”.

Dessa forma, Graciliano Ramos “com sua linguagem seca, seus períodos curtos e densos, fratura os ciclos romanescos” como neste fragmento:

“Supunham que existiam mundos diferentes da fazenda, mundos maravilhosos na serra azulada. Aquilo, porém, era esquisito. Como podia haver tantas casas e tanta gente? Com certeza os homens iriam brigar. Seria que o povo ali era brabo e não consentia que eles andassem entre as  barracas?”

                                                                                                                           (Vidas Secas, 1984, p.74)

Nesse excerto, o elemento catalisador é a linguagem, que direciona e organiza os traços que compõem um novo quadro, distante da transparência referencial e diverso daquele pré-determinismo por certa tradição literária. Nesta, a focalização da “seca nordestina”, por exemplo, não poderia prescindir de determinados parâmetros, como “a catinga amarela” e o “poente avermelhado”, sob pena do texto resultar incompleto. Se a seca de Graciliano é “incompleta”, é porque seu texto funciona, na feliz expressão de Flora Sussekind, a respeito de São Bernardo, como “faca amolada, como corte no modelo romanesco dominante [...] um corte crítico na própria estética naturalista”.

De fato, Vidas Secas pode ser avaliada como um trabalho plástico, à medida que a paisagem emerge dramatizada pelo discurso do narrador que lhe concede cores e massa plástica; é como um quadro de artes, como uma linguagem pictórica – Lúcia Miguel Pereira, em sua crítica precursora de 1938, caracteriza a obra como “uma série de quadros, de gravuras em madeira, talhadas com precisão e firmeza”, pois cada capítulo apresenta certa  independência  com relação ao conjunto, podendo ser lido separadamente. Logo, as obras gracilianas não produzem um ciclo fechado, pois não esboçam continuidade de temas, mas sim, uma transposição que estilhaça o eu/ mundo ficcional, proporcionando o contato com entes narrativos que apresentam força de expressão e pensamento.

VOZ, DISCURSO E LINGUAGEM: UM CORPO INSCRITO NO SILÊNCIO DA PALAVRA.

“Penetrar surdamente no reino das palavras

Lá estão os poemas que esperam ser lidos”

                    (Carlos Drummond de Andrade)

“Porque o diálogo com o corpo da obra de arte  é 

um diálogo amoroso, demorado, paciente, exige

doação e entrega. Nem sempre o significado de

uma obra de arte se dá no momento mesmo da

concepção, mas muito tempo depois, em outro

lugar ou momento, em meio a uma tarefa banal,

num momento de ócio ou mesmo de raiva ou

cansaço. Muitas vezes, precisamos trazer a obra

conosco, deixa-la adormecer em nós à

espera do insight”

                                                                                                       (Frederico Morais, crítico de arte brasileira)

 

Em Graciliano Ramos as aberturas de significação decorrentes da ambigüidade dos discursos literários não são entidades utópicas, cuja existência lhes seja garantida pela inefabilidade. Ao contrário, eles são blocos lingüísticos de sentidos, portanto, as suas formas devem ser procuradas nos diversos lugares do texto em que se manifestam. No caso de Vidas Secas  percebe-se o dinamismo das instâncias do texto de forma vertical, como uma espécie de coluna vertebral em que se integram os membros componentes da sua corporalidade. Uma  personagem como Fabiano e Sinhá vitória, por exemplo, não são uma representação realista, uma cópia fotográfica de um mundo de figuras visíveis, mas sim, corpos lingüísticos de sentido.  Veja-se o que diz Roland Barthes:

“... Uma personagem existe dentro de uma cena ocupada por blocos de sentido, às vezes variados, repetidos e descontínuos (fechados); do arranjo desses blocos surge um diagrama do corpo, não sua cópia. [...] Dito de outra maneira: a leitura  do retrato realista não é uma leitura “realista”, é uma leitura cubista: os sentidos são cubos, amontoados, empilhados, justapostos, mas, no entanto, a se morder  uns aos outros, provocando uma  translação que produz todo o espaço do quadro e faz desses espaço um  sentido  suplementar (acessório e atópico), o sentido do corpo não é o total, o quadro ou o suporte, ele é um sentido a mais...”.

                                                                                                                                  (Barthes, 1970, 67-8)

Sobre esses princípios estruturantes,  personagem e cena, expressos como “corpo” e “bloco de sentidos” atuam os princípios organizadores de sua unidade: voz, discurso e linguagem, responsáveis pelo impacto final na sensibilidade do leitor.

Utilizando-se de uma linguagem “pobre” Graciliano Ramos soube arquitetar a pobreza/ miséria física e intelectual das personagens Fabiano e Sinhá Vitória:

“Deu estalos com os dedos. A cachorra Baleia, aos saltos, veio lamber-lhe as mãos grossas e cabeludas. Fabiano recebeu a carícia, enterneceu-se:

-  Você é um bicho, Baleia.

Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. O seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. [...] Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma linguagem com que se dirigia aos brutos – exclamações onomatopaicas”.

                                                                                                                       (Vidas Secas, 1984, p.19-20)

Porém, esses entes narrativos apesar de pobres no momento de articular o discurso, possuem notável densidade psicológica, seus pensamentos e reflexões expandem-se no decorrer da história e o plano dialógico torna-se evidente desde a arquitetura da personagem ao modo de narrar. No início da narrativa Fabiano possuía reflexões opacas, mas ao poucos sua consciência e autoconsciência vem à tona.

Observa-se o seguinte fragmento:

“Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitava conversas. Só lhe falavam com o fim de tirar-lhe qualquer coisa. O patrão realizava com pena e tinta cálculos incompreensíveis. Da última vez que se tinham encontrado houvera uma confusão de números, e Fabiano, com os miolos ardendo, deixara indignado o escritório do branco, certo de que fora enganado. Os caixeiros, os comerciantes e o proprietário tiravam-lhe o couro, e os que não tinham negócio com ele riam vendo-o passar pelas ruas, tropeçando. Por isso Fabiano se desviava daqueles viventes. Sabia que a roupa nova cortada e cosida por sinhá Terta, o colarinho, a gravata, as botinas e o chapéu de baeta o tornavam ridículo, mas não queria pensar nisto”.

                                                                                                                            (Vidas Secas, 1984, p.76)

Neste excerto, vê-se nitidamente na voz do pensamento de Fabiano e a tomada de consciência diante a humilhação no trabalho, a forma que o patrão o engana, além de perceber o desprezo dos seres humanos, sobretudo da sociedade que o vê de forma inferior: Fabiano torna-se mais “humano”, pensa com mais afinco, de tal modo que quase não há ação na tessitura da narrativa, tudo é mais pensamento. Desse modo, possui consciência e autoconsciência e o discurso abre-se aos monólogos interiores. À guisa de maior explanação faz-se preciso a leitura do trecho:

“Estava acostumado, tinha a casca muito grossa. Mas às vezes se arreliava. Não havia paciência que suportasse tanta coisa.

 - Um dia um homem faz besteira e se desgraça.

Pois não estavam vendo que ele é de carne e osso? Tinha obrigação de trabalhar para os outros, naturalmente, conhecia o seu lugar. Bem. Nascera com esse destino ruim. Que fazer? Podia mudar a sorte? Se lhe dissessem que era possível melhorar de situação, espantar-se-ia. [...] Por que seria  que os homens ricos ainda lhe tomavam uma parte do osso? Fazia até nojo pessoas importantes se ocuparem com semelhante porcarias.”

                                                                                                                           (Vidas Secas, 1984, p.96)

Aqui Fabiano mostra sua voz, seu ponto de vista diante da situação e das coisas  e a voz do “outro” em sua consciência. No ponto “Pois não estavam vendo que ele é de carne e osso?” Fabiano coloca no seu discurso uma possível questão que o patrão e as demais pessoas que o enganam poderiam refletir. Ou melhor, poderiam pensar a seu respeito. Dentro dessa perspectiva, no  diálogo interior percebe-se a fruição da coisas na mente de Fabiano, sua memória, seu passado e o seu presente correlacionam-se a ponto de provocar um descontrole: para“fazer besteira e se desgraçar”. Tem-se aí o diálogo das “consciências”, ou seja, um circular de vozes na consciência da personagem.

Nota-se o que diz Mikhail Bahktin referente à consciência dialógica:

“Além da realidade da própria personagem o mundo exterior que a rodeia e os costumes que se inserem no processo de autoconsciência, transferem-se do campo de visão do autor para o campo de visão da personagem. Esses componentes já não se  encontram no mesmo plano concomitante com a personagem, lado a lado ou fora dela em um mundo uno do autor, daí não poderem ser fatores causais e genéticos determinantes da personagem nem encarnar na obra uma função elucidativa. Ao lado da autoconsciência da personagem, que personifica todo o mundo material, só pode coexistir no mesmo plano outra consciência, ao lado do seu campo de visão, outro campo de visão, ao lado da sua concepção de mundo, outra concepção de mundo. À CONSCIÊNCIA TODO- ABSORVENTE DA PERSONAGEM O AUTOR PODE CONTRAPOR APENAS UM MUNDO OBJETIVO – O MUNDO DE OUTRAS CONSCIÊNCIAS LEGITIMAMENTE IGUAIS A ELA”

                                                                                                                                (Bakhtin, 1981, p.41-2)

            Outra personagem dialógica em Vidas Secas é sinhá Vitória, cujo nível de consciência aumenta a cada instante da narrativa:

“Sinhá Vitória fraquejou, uma ternura imensa encheu-lhe o coração. Reanimou-se, tentou libertar-se dos pensamentos tristes e  conversar como o marido por monossílabos. Apesar de ter boa ponta de língua, sentia um aperto na garganta e não podia explicar-se”.

                                                                                                                  (Vidas Secas, 1984, p.118-119)

Sem dúvida o mundo visto por Sinhá Vitória ganha, quando nomeado pelo narrador, ganha valores relativos a um espaço introspectivo, inteiramente poético. A ausência da linguagem e ao mesmo tempo à vontade de expressar-se diante do grande silêncio proporciona um mergulho em sua autoconsciência:

“Sinhá Vitória precisava falar. Se ficasse calada, seria como um pé de mandacaru, secando, morrendo. Queria enganar-se, gritar, dizer que era forte, e a quentura medonha, as árvores transformadas em garranchos, a imobilidade e o silêncio não valiam nada. Chegou-se a Fabiano, amparou [...] Falou no passado, confundiu-o com o futuro. Não podiam voltar a ser o que já tinham sido?”.

                                                                                                                        (Vidas Secas, 1984, p.119).

Aspecto de relevância neste fragmento do último capítulo “A Fuga” é a conversa que sinhá Vitória busca com Fabiano: “Não poderiam voltar a ser o que já tinham sido? ela procura amenizar as conseqüências que a seca e a miséria produziram em suas “almas calcificadas”.

Deduz-se assim, que tanto Fabiano como Sinhá Vitória, são “corpos inscritos no silêncio da palavra”, eles existem dentro de um silêncio que é a voz interior. O universo destas personagens mediante a ausência da fala é projetado por meio do monólogo interior que coloca em cheque e em confronto as diferentes visões de sinhá Vitória que tinha uma perspectiva de vida futura X  Fabiano que mantinha suas dúvidas e hesitações X o próprio narrador que a todo o momento nega a possibilidade de resolução dos problemas do sertão, e que também assume a forma de  “refletor” do autor implícito que aponta para o retorno do impasse insolúvel homem-natureza.

Observa-se o exemplo:

“E talvez esse lugar para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado. Fabiano estirou o beiço, duvidando. Sinhá Vitória combateu a dúvida. [...] Com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. Podiam viver escondidos, como bichos? Fabiano respondeu que não podiam.

-          O mundo é grande.

Realmente para eles era bem pequeno, mas afirmavam que era grande...”

                                                                                                                          (Vidas Secas, 1984, p.121)

Logo, este resultado decorrer de três consciências em diálogo e do uso de uma linguagem levada pelo autor aos limites da concisão e que consegue ser  artística sem a menor afetação.

A questão dialógica em Vidas Secas é que tanto o narrador, e o autor como as personagens e a paisagem estão em movimento e interiormente em diálogo.

Ramos construiu, diga-se de passagem, personagens à maneira humana; não uma  coisa, contudo uma voz que vai se revelando e se conhecendo adjacente a outras vozes. Possuem dentro de si, uma tensão existencial prolixa: um passado humilhante só de trabalho e um presente angustiante de conhecimento e reconhecimento de toda a sua vida. São verdadeiras personagens dialógicas: sensíveis, inconclusas e que se alteram em determinados momentos, portanto não há uma compostura a seguir, nem uma função determinada.

O NARRADOR FALA COM O HERÓI E AS VOZES DO “OUTRO”

 

                                                                                                 “Para o autor o herói não é um “ele”

                                                                                                 nem um “eu”mas um “tu” plenivalente”.

                                                                                                                                                  (BAKHTIN)

 

A estrutura narrativa em Vidas Secas compõem-se de vozes  híbridas, ou seja, às vezes, não há como diferenciar a voz do narrador da voz de Fabiano. Veja-se o exemplo:

“Suspirou. Que havia de fazer?. Fugir de novo, aboletar-se noutro lugar, recomeçar a vida. Levantou a espingarda, puxou o gatilho sem pontaria”.

                                                                                                                          (Vidas Secas, 1984, p.110)

Na frase “Que havia de fazer?” é a voz de Fabiano no meio do discurso do narrador. Trata-se de um discurso indireto-livre, cujo uso é proeminente nas construções dialógicas por mostrar que a personagem é um ente independente; e se  assim o é, precisa exteriorizar seu pensamento. O narrador fala em conjunto com a personagem; conforme a teoria de Bakhtin, esse herói não é um “ele”, nem um “eu” mas um “tu”, quer dizer uma voz presente no discurso do narrador.

Nuança importante de ressaltar é que, mesmo na voz do narrador, Fabiano se sobressai, pois a maioria das  percepções é emitida pelo seu ponto de vista e pelo seu pensamento, o mesmo acontece com a personagem Sinhá Vitória, pois o narrador debruça-se nas sensações desses entes narrativos. Por isso, observa-se ao longo da novela, expressões como: “Fabiano pensava”, “Sinhá Vitória pensava”, isto é, o foco principal constrói-se a partir do olhar de Fabiano e sinhá Vitória sobre as coisas e as pessoas. Destoando-se, assim, outro ângulo da personagem dialógica: sua liberdade de voz e visão.

Por outro lado, outras vozes pensam e colocam seu ponto de vista. No geral, ora compreendem ora não compreendem  as atitudes de Fabiano. A exemplo, a voz angustiada da cachorra Baleia a qual começa articular conjecturas em relação a Fabiano:

“Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu:  um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano [...] Olhou-se de novo aflita. Que lhe estaria acontecendo? [..]

Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo [...] Não podia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão [...]”                             (Vidas Secas, 1984, p.88-9)

Logo, Graciliano mostra a complexidade do discurso da cadela Baleia que não possui linguagem articulada. O autor faz parecer possível a cachorra transformar-se em ser humano. Na verdade, Graciliano Ramos, descreve o “outro”  que é diferente de si, mostrando essa diversidade no discurso.

Deve-se ressaltar também o papel do narrador. Vidas Secas não se limita a uma pintura exata e expressiva. Para dar a impressão do fluxo de descontinuidade, a obra de certa forma imita um pouco a técnica das tomadas cinematográficas que compõem na narrativa um movimento de filme. Conseqüentemente, o narrador “capta” as contorções ou fiapos de pensamento das personagens, com a finalidade de “dar voz” as reflexões dos seres ficcionais. É aí que o narrador entra com sua onisciência, ou seja, sua técnica de insinuar-se “por dentro” da personagem. Esse narrador apresenta um olhar de câmera ao aproxima-se para contar a intimidade das personagens: “...Porque tinham feito aquilo? Era o que não podia ser. Pessoa de bons costumes, sim senhor, [...] Achava-se tão perturbado que nem acreditava naquela desgraça...” e  afasta-se para mostrar os aspectos práticos da sua existência: “Arrastaram-se para lá, devagar, sinhá Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folhas na cabeça...”

Por essa via, o olhar do narrador mostra a cena como se ele também estivesse junto, é através desse olhar que a cena parece materializar a paisagem, e o leitor vai construindo pelo movimento do olhar do narrador o olhar da leitura.

A priori, esses momentos de aparecimento da presença do narrador de forma clara, mostram também que o narrador tem um modo de ver os acontecimentos que não precisa ser igual ao da personagem, pois ele não é uma continuação dos entes ficcionais.

Observa-se o seguinte fragmento:

“Com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. Poderiam viver escondidos, como bichos? Fabiano respondeu que não podiam.

- O MUNDO É GRANDE.

REALMENTE PARA ELES ERA BEM PEQUENO, mas afirmavam que era grande...”  

                                                                                                                          (Vidas Secas, 1984, p.121)

 

O pensamento  do narrador “Realmente para eles era bem pequeno”, não é superior ao pensamento da personagem O mundo é grande” ou do escritor, ele apenas é diferente.

Indubitavelmente, a arquitetura composicional denuncia-se como representação literária, isto é, na construção de uma linguagem em prol do silêncio. Como nesta obra as personagens não falam nada e a novela fala tanto?

Segundo Antonio Candido, existe na obra Vidas Secas “uma linguagem virtual a partir do silêncio”, ou seja, a linguagem que por meio da palavra do autor constrói a fala estilizada de Fabiano, sendo este uma composição ficcional, e não um homem que o escritor observou e colocou dentro da narração como um documento.

Em suma, o discurso narrativo desta obra vale-se de um entroncamento de vozes no qual a voz de Fabiano e Sinhá Vitória são as mais intensas, porque o mundo exterior que os acercam é passado para suas autoconsciências; e, pode-se dizer, com efeito, que  as personagens dialógicas situam-se como ponto de vista sobre o mundo e sobre si mesma.

ÚLTIMAS PALAVRAS: A CONSTRUÇÃO É O DIFERENCIAL

“ O que importa é perceber que a existência

 mesma dessas obras, a sua proliferação, a

sua implantação na vida social colocam em

 crise os conceitos tradicionais e anteriores

 sobre o fenômeno artístico, exigindo

 formulações mais adequadas à nova

 sensibilidade que agora emerge”.

( Arlindo Machado, pesquisador brasileiro)

 

De tudo exposto, fica evidente que em Vidas Secas, Graciliano Ramos busca combinações adequadas de composição e tom, visando à construção de uma nova estética regionalista, cuja ruptura está entre o personagem e o modo como é revisto por si mesmo enquanto produtor de discurso, e da fronteira que separa a paisagem regional dominante e tão recorrente nos romances da década de 30, da paisagem graciliana composta por meio da “pintura” dos sentimentos, pensamentos e reflexões inerentes ao discurso dialógico dos entes narrativos.

Uma das maneiras de alcançar esse objetivo foi estabelecer o confronto entre as consciências de Fabiano, sinhá Vitória e do narrador, utilizando o discurso indireto-livre e os monólogos interiores, que emergem da autoconsciência dos personagens.

Em fim, a construção da linguagem silenciosa, do discurso e da paisagem é o diferencial – Graciliano como artesão engenhoso da palavra busca no “corpo lingüístico” o contraste entre o que existe no exterior e interior das “almas calcificadas” dos personagens.

BIBLIOGRAFIA

 

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BARTHERS, Roland. Fragments d’um discours amoureux. Paris: Seuil. 1970

BOOTH, Wayne C. A retórica da ficção. Lisboa: Arcádia. 1980.

CAÑIZAL, Eduardo Penuela. “Graciliano Ramos” in: Duas Leituras Semióticas.

        São Paulo: Perspectiva. 1978.

CANDIDO. Antonio. Ficção e Confissão – Ensaio sobre Graciliano  Ramos.

         São  Paulo: Ed. 34.____

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        Secas. São Paulo: Record. 1984

MARINHO, Maria Celina Novaes. A Imagem da Linguagem na Obra de Graciliano

         Ramos – uma análise de heterogeneidade discursiva nos romances Angústia e

        Vidas Secas. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP. 2000.

MIRANDA, Wander Melo. Corpos Escritos. São Paulo: Edusp. 1992.

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