A formatura ? a busca pela construção de um mito pessoal


Ontem, fui convidada para uma "formatura". Ser convidada para um "evento" como este, me embrulhou o estômago. Nem sabia que existia mais isso! Achei que essa era uma realidade da época de minha avó. E, que, portanto, estava determinada a ficar congelada no tempo da tradição, de todas aquelas mesmices que a década de 1960 colocou em xeque-mate, com os movimentos de contra-cultura pelo mundo afora. Que tempos são estes!! É um tempo de variadas temporalidades. Pois é, o passado e seu ranço de direita batem à porta. Fiquei pensando em todos os brasileiros e brasileiras que vivem ainda, em pleno 2010, uma realidade século XVI. É a de um trabalho escravo, de prostituição infantil, de desemprego, de sub-emprego, de trabalho precário, mal remunerado, de jornadas duplas, de salários mínimos indignos e escandalosos, de fome, de miséria, de pouco caso. Deve ser isso que se comemora numa formatura! "Olá! Seja bem-vindo ao mundo do pleno emprego e da legalidade!" Então, você é um felizardo! Um ser diferente, melhor, especial que enfim irá engrossar outras estatísticas mais felizes de um Brasil legal. Parabéns!! Você fará parte agora, daqueles brasileiros, que informam sobre o maravilhoso ensino espalhado por este Brasil".

Fiquei pensando no que dizer para aquele rosto feliz e alegre que me fazia o convite. "Oh! Muito obrigada. Será uma honra compartilhar com você essa felicidade! Sinto muito, morreu alguém na família, não poderei ir. Ah! Que bacana, né? Seus pais devem estar felizes. PQP comemorar o que? Você se acha formado pra quê? É claro, esqueci, você acha que vai ganhar mais dinheiro com um canudo, né?" O velho golpe da Caos, a tal da ascensão social pelo estudo. Gostaria de viver num mundo em que as desigualdades sociais fossem menores, bem pequenas, quase inexistentes. E onde ao invés de buscarmos "ascender" pudéssemos ter todos um mínimo comum para se viver com dignidade. E aqueles que ascenderam pudessem descender encontrando nesse ato glórias ainda não reconhecidas. E, aqui não estou a fazer apologias para uma economia planificada. Que existir é esse? Onde as pessoas não valem pelo que são, mas pelo que podem vir a ter!! Porque ninguém fez uma "formatura" quando uma menina mênstrua pela primeira vez? Porque ninguém fez uma "formatura" quando se têm uma primeira relação amorosa, quando se perde um ente amado? Já sei, essa é boa para responder: "Puxa vida! Você não tinha percebido que havia entrado no mundo dos adultos? ou Será que você se imaginou entrando no ?mundo dos adultos? pela porta da frente, com tapete vermelho estendido e começando por cima! Sinto muito, mas você foi enganado durante todos estes anos". Os meus pensamentos vagavam para todos os lados, e o desconforto era generalizado. Então resolvi calar-me, para não parecer inconveniente demais, falsa demais, hipócrita demais, sincera demais, velha demais. Respondi, secamente, com um - "Obrigada".

Este deve ser um drama vivido por alguns. Ser fiel a si mesmo ou viver a mesmice de se seguir regras sociais sem sentido. Quando os valores não correspondem mais com a prática é tempo de mudança. Fiquei pensando nos sentimentos que me invadiram quando terminei a faculdade, alívio, medo, força. Sim, não temos como negar que é uma etapa concluída. Assim, como tantas outras na vida. Pena, que as práticas humanas não são isentas de valorações, se fossem não seríamos humanos mais uma outra espécie qualquer. Porque não valorizamos, com a mesma intensidade, o nascimento de um filho, a permanência de uma amizade, a passagem, marcadamente profunda, tanto biologicamente, quanto psicologicamente, do ser menina para o ser mulher? Em que local se alojam nossos valores? Em que caverna de Platão eles estão habitando, na esperança vã de achar que valores são exatamente aquilo que dizemos quando nossas práticas falam de outras coisas e de outros valores?

Toda essa estória de formatura me conduziu a reflexão acerca dos mitos pessoais, de nossas escolhas pessoais. A idéia de uma formação, de uma building, uma construção a partir de modelos sociais efetivados pela cultura das sociedades. Como os modelos que nos são impostos pela cultura de massa como os de moda, os de conduta, ênfase em valores materiais que enquadram nossa perspectiva de sucesso, felicidade, bem viver, amor e tantos outros valores. Um determinado modelo ou padrão cultural enfatizado em detrimento de outras dimensões humanas que deveriam ser mais importantes. As crenças sociais fazem da busca por determinada formação uma construção natural o que não é. Os padrões culturais são construídos socialmente e, portanto, variam no tempo e no espaço. Como podemos verificar com as formas pelas quais as famílias se constituem na atualidade numa continuidade e descontinuidade no modo de ser e de existir ao longo da história. O que significa dizer que não existe um padrão cultural universal do que deve ser uma família. A padronização cultural castra a inventabilidade humana. A possibilidade do novo surgir, novas escolhas, novas respostas, mesmos problemas. E quem disse que a tradição tem sempre razão? O que caberia perguntar é o quanto, mesmo diante de novas possibilidades sociais, ainda vivenciamos os mesmos rituais tradicionais?

Os marcos de existência humana como o nascimento, a morte, o amor, a dor, o sofrimento não podem ser meros acontecimentos triviais de uma vida. Eles dizem respeito aos dramas de sentido ou de significados pelos quais cada um de nós passa ao longo de uma vida. São as nossas perdas afetivas ou os nossos ganhos afetivos e fazem parte do que somos, dizem sobre o material de que cada um de nós é feito. Dentro desse sentido, as lembranças nos servem como consolo ao restituir as imagens passadas sua presentificação. Os sentidos e significados pelos quais contemplamos as memórias que nos constitui como pessoas, sejam elas reais ou imaginárias são uma interpretação sempre a ser feita, uma convocação perpétua e ininterrupta, pois as lembranças só existem no exato momento em que lembramos dela. O senso comum nos lega o ditado de que "Se a vida lhe der um limão, faça uma boa limonada" nada mais real e verdadeiro. Mas o que significa essa frase se não atribuir uma substituição de sentido aos acontecimentos da vida? O que significa dizer que ao invés de viver uma determinada experiência como negativa, dolorosa, limitadora, rancorosa contemple-a de outra forma? As "crises são momentos de oportunidades" que são também conhecidas em sociedades sem escrita como "rituais de passagem".

Essa idéia de crise como oportunidade não faz nenhum sentido para mim, a não ser que substitua o sentido atribuído a idéia de "crise". Então, os momentos em que não me agüento em mim mesma, em que tudo perde sentido, em que fico espaçosa e meus limites passam a ser constrangedores. É o momento em que a "crise", a "passagem" se instala. Quando atribuímos as coisas cotidianas e as pessoas o senso mais trivial, tedioso e cansativo. Nesses momentos é necessário "contemplar" esses "restos humanos", os "fragmentos de uma vida" e atribuir um novo rearranjo, uma nova disposição a tudo isso. Alinhar as vozes internas, as emoções e razões humanas em uma nova correspondência, em um novo modelo social a ser buscado. As respostas que outros encontraram para as perguntas que todos fazemos não servem para cada um de nós. E, os rituais possuem uma função social de ressaltar os modelos, os padrões de conduta social por isso que Walter Benjamim, o apologista da modernidade irá escrever um livro importante chamado as "Passagens", no final do século XIX, em que irá apontar variados momentos de ruptura ou crise de sentido das pessoas que viviam nas grandes cidades naquela virada de século, em relação a percepção da realidade social urbana que viviam que eram múltiplas, variadas, sem modelos, abertas para um novo e não necessariamente melhores.

Às vezes a gente não entende que as lembranças não dizem acerca de um passado distante, mas nos falam de acontecimentos recentes como o evento de hoje de manhã, o filme da semana passada, o doce que comi ontem. Todos estes eventos fazem parte de nossas memórias que são revividas em cada lembrança, no interior de nós como uma potência de acontecimento. Muitos de nós por vezes não conseguimos dormir porque estamos a pensar acerca dos acontecimentos do dia. O que estamos fazendo é não nos desligar de nossas lembranças sobre os fatos do dia ficamos remoendo as lembranças de como agimos ou como gostaríamos de ter agido. E, a lembrança não é a realidade daquele momento não é a realidade de fato, essa não existe, porque a dita realidade é vivida e somente existe dentro de cada um de nós. A realidade é única e, por isso, que a lembrança é uma potência para os acontecimentos ela as reatualiza. O que as ditas "crises" ou as "passagens" fazem é reatualizar os sentidos que atribuímos aos acontecimentos, sejam eles passado, presente ou futuro. A tarefa da "crise" e da "passagem" é provocar uma guerra de interpretação acerca das ocorrências em nossas vidas, fazer com que as "cenas" de nossas lembranças entrem em contato com outros sentidos derivados de outras experiências.

As "crises" ou "passagem" são momentos permitidos pela disposição de nossa humanidade que nos interroga acerca do que fomos até aquele momento, do que somos agora e nos projeta para um futuro de intencionalidades. Uma obra em aberto que partindo de perguntas comuns busca respostas únicas e diferentes para cada um de nós. Um mito pessoal não se faz com mesmices, com normatizações, com fechamentos de sentidos e possibilidades seu material emocional é mais interrogativo, instável e indeterminado do que gostaríamos de acreditar. Sendo assim é mais fácil de nos apegarmos ao já existente, a tradição, ao sempre assim, mesmo que estas não respondam mais as perguntas que poderemos fazer em relação ao nosso futuro ou ao nosso presente. Acabei não indo a formatura, mas não disse o real motivo de minha ausência. Dei uma desculpa e como todo mundo a felicitei pela formatura.