Esta é a história de Edmilson, aluno de uma escola pública do município de Iranduba, oriundo de uma família humilde de agricultores de zona rural da cidade.

Até o 2° bimestre do vigente ano letivo, ele se desenvolvia normalmente, aprendia com facilidade e tinha bom relacionamento com os colegas e professores de sua escola.

O drama da sua inadaptação começa quando acontece a substituição de professores em sua sala de aula no término do 2º bimestre.

A previsível dificuldade de aceitação da nova profesora foi possível causa de mudanças no comportamento de Edmilson, que após algumas semanas de convívio, começou a demosntrar certa intolerância ao adentrar no ambiente escolar, apresentando insegurança através de choros, no portão da escola, e quando aceitava entrar em sala de aula, após alguns instantes, simulava mal estar, para ser liberado a voltar para casa.

Sua professora o descreve como um garoto "incapaz de aprender", "bagunceiro", "dispersivo", "desorganizado", "sem vontade nem interesse": "um aluno que não faz

nada!". Além de queixar-se aos seus pais, que o repreendiam.

No caso de Edmilsom, a conjuntura do fracasso escolar explica-se a partir de, pelo menos, três dimensões indissociáveis, um quadro amplo, cuja estrutura e complexidade é inacessível à maior parte dos professores. A busca de qualidade no ensino pelo enfrentamento dos problemas da escola implica uma mudança de concepções e posturas: um desafio que não pode ser desconsiderado pelos programas de formação docente.


Da dimensão cognitiva

Do ponto de vista cognitivo, não há como aceitar a idéia de um menino que, salvo em vida vegetativa, é "incapaz de aprender" ou "que não faz nada".

Ao longo do século XX, os estudos acerca da criança consolidaram-se como um vasto campo que, repensando concepções historicamente enraizadas, acabou por valorizar o potencial infantil não pelo viés transitório do vir a ser, mas pela legitimidade cognitiva, social, afetiva e cultural de cada etapa ou contexto. Com Piaget, decobriu-se a criança como um ser ativo na busca de conhecimento, alguém que não espera para aprender porque toma a si a iniciativa de criar hipóteses para a compreensão do mundo. Comparado com os ensinamentos da psicologia russa, o sujeito epistêmico ganha sentido também no contexto sociocultural, de cujos modos de inserção depende a mediação com o mundo, a aprendizagem e o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores típicos do ser humano. Embora amplamente divulgadas, o significado de tais posturas, a ruptura provocada pelo embate teórico de diferentes interpretações e as suas implicações pedagógicas, ainda mal assimiladas na prática escolar, constituem um importantedesafio a ser considerado na formação de professores. Até quando a profissão docente pode conviver com a idéia de que há alunos sem "vontade nem interesse"'?

Longe de compreender o homem como um ser essencialmente curioso, sem considerar os mecanismos pessoais de construção cognitiva, nem vislumbrar possibilidades de sintonia entre a ação escolar e os processos mentais do garoto, a professora de Edmilson preferem recorrer aos "clichês". No palco das relações escolares, a ótica desvirtuada do potencial do aluno não logra senão o rompimento de  vínculos e o abandono das negociações. Afinal, que escola é essa que, para ensinar, perde de vista a motivação do menino? Que professores são esses que, na progressão do conhecimento, não consideram o já conquistado? Que educação é essa que abandona o aluno e rouba-lhe o ímpeto de saber?


Da dimensão psicopedagógica

Durante muito tempo, a psicologia escolar ou a orientação educacional funcionaram como iniciativas paralelas ao ensino e independentes do projeto escolar. Incorporando a tradicional ótica psicopedagógica restrita, muitos profissionais ainda hoje centram no aluno a culpa pelo fracasso, buscando nele possibilidades de superação dos problemas de inadaptação na escola.

Evidentemente, não se trata de desconsiderar a relevância da Psicopedagogia como um campo legítimo de pesquisa e de atuação responsável, mas sim de denunciar a proliferação das práticas de encaminhamento de alunos feitas ao sabor de interesses e conveniências. Do ponto de vista da escola, elas representam o alívio do "fardo" que representa o aluno que não aprende. Afinal, fica muito mais cômodo encaminhar o aluno problema do que tomar o seu fracasso como falha institucional, obrigando-se a uma revisão de responsabilidades, metas e procedimentos. Do ponto de vista da clínica, o atendimento individual, alheio às dinâmicas em sala de aula e ao projeto de ensino, vem movimentando um considerável mercado, o que acentua o caráter elitista da educação, deixando aos menos privilegiados a falsa sensação de impotência quanto aos problemas vividos na escola.

No entanto, vale ainda perguntar: o fracasso escolar não pode ser resultado de problemas pessoais? A resposta é sim, mas certamente em proporções infinitamente menores do que o anunciado pelos sistemas escolares. Alguns estudos realizados nos mais dramáticos contextos de insucesso escolar (Aquino1997, Ferreiro 1987, Schiff 1994), apontam cifras de alunos-problema que não ultrapassam a 10% da população. O atendimento especializado, feito com moderação e seriedade, parece, portanto, justificar-se a um pequeno número de alunos. Mesmo assim, é preciso considerar que os fatores individuais constituem apenas uma das peças da complexa lógica do fracasso.

À luz de um contexto mais profundo do problema, é possível vislumbrar  nuances, a princípio desconsideradas, nessa "grande bola de neve", que é trajetória do menino. Além de diagnosticar "o que vai mal", importa compreender a gênese, o significado e a intensidade do quadro ("quando, como e por que vai mal"), interpretando-os na perspectiva de possíveis interferências.

Voltando a história de Edmilson, a pedagoga escolar, sensibilizou-se com o caso e decidiu averiguar o que estava acontecendo foi então que o menino relatou o que a professora disse: "você só está aqui por causa da merenda escolar". Tal situação o constrangeu de tal maneira, que Edmilson não se sentia mais a vontade e nem motivado a continuar na escola.

O caso de Edmilson configura-se como um típico exemplo de uma dificuldade (relacionamento professor-aluno) que passou a ser um problema (ciclo vicioso de comportamento e postura prejudiciais à vida escolar). Considerando seus antecedentes, dificilmente poder-se-ia suspeitar de um déficit  intelectual, cognitivo, motor, afetivo ou social. Não se trata de um comprometimento dascompetências básicas para ouvir,ver, lembrar e responder, mas da motivação para isso, razão pela qual o problema limita-se ao relacionamento professor-aluno. Na intrincada relação entre o "poder fazer" (dimensão psicomotora), "saber fazer" (dimensão cognitiva) e "querer fazer" (dimensão afetiva), o terceiro requisito parece ser o responsável por tanto transtorno: a origem das dificuldades de Edmilson está claramente na relação negativa do menino com a professora.


Da dimensão institucional: o projeto político-pedagógico

Por volta da década de 80, os educadores vão se dando conta de que a qualidade de ensino (ou a falta dela consubstanciada pelos problemas de aprendizagem) remete a outras dimensões dentro e fora da escola, propondo a instituição do ensino em nova configuração e dinâmica de trabalho. Por um lado, a orientação educacional, antes mais centrada no aluno (nas relações interpessoais e dinâmicas de classe), começa a se envolver diretamente na esfera pedagógica da vida escolar: o projeto pedagógico, o currículo, a concepção de ensino, a metodologia, a relação professor/aluno e os objetivos pretendidos. Por outro, professores e coordenadores, tradicionalmente preocupados com as questões didático-metodológicas, percebem o processo de aprendizagem na sua relação com o indivíduo e a comunidade: seus valores, anseios, conhecimentos socialmente compartilhados, modos de aproximação com o saber, significados implícitos e explícitos das conquistas cognitivas. A escola constata, assim, que problemas de aprendizagem configuram-se como fracasso institucional, tendo em vista os inúmeros fatores que interferem no aproveitamento dos alunos e na qualidade do ensino. Em contrapartida, o sucesso pedagógico merece ser pensado como um ideal que vai além do simples domínio de conteúdo.

A postura que articula educação e ensino foi reforçada pelos debates promovidos pelo MEC desde 1995, culminando com a proposta de Reforma Curricular expressa nos Parâmetros e Referenciais Curriculares (1997 e 1998), que desafiam os educadores a diminuir a distância entre conhecimento e cidadania. Na prática, isso implica que, ao tradicional compromisso de ensinar conteúdos, o projeto pedagógico tem que assumir como meta a construção de princípios, atitudes, normas e valores, aspectos imprescindíveis da humanização do sujeito e do compromisso político do educador (Coll, 1999).


Considerações Finais

No caso Edmilson, a consideração de diferentes dimensões ilustram os inúmeros fatores envolvidos no complexo quadro do fracasso escolar. Evidentemente, o mérito da análise não é o de esgotar a compreensão dos fatores, mas de pôr em evidência a pequenez dos programas de formação docente. Centrada no eixo metodológico, grande parte dos cursos de formação inicial ou continuada peca pela abordagem excessivamente instrumental do ensino: reducionista porque é incapaz de vislumbrar a amplitude do fenômeno educativo, ineficaz porque despreparada para lidar com as diferenças (e seus significados), superficial porque inibe a mudança de mentalidade na educação e antidemocrática porque perpetua práticas elitistas e etnocêntricas.


Referências bibliográficas:

AQUINO, Julio (org). Erro e fracasso na escola. São Paulo, Summus, 1997.

Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília, MEC, 1997.

Referencial Curricular Nacional, V. 1, 2 e 3. Brasília, MEC, 1998.