Gabriela Braz Aidar[1]

Resumo: O presente estudo analisa o pensamento de Sócrates acerca da formação das cidades ideais, exposto por Platão nos Livros II e III da obra “A República”. A partir do exame dos conceitos de justiça e injustiça que dominavam no século IV a.C, Sócrates exalta e importância da educação e da filosofia para a formação de cidades justas, expondo, segundo os parâmetros da sua época, de que modo tal objetivo poderia ser atingido. Partindo-se da premissa de que o pensamento manifestado na referida obra não pode ser interpretado literalmente, mas segundo os conceitos de igualdade e liberdade hoje vigentes, é possível afirmar que as contribuições de Sócrates são, ainda hoje, extremamente válidas para o atingimento dos objetivos de moralidade e justiça exaltados na Constituição Federal e esperados dos governantes.

Palavras-chave:.Cidades ideais; Cidades Justas, Platão, Sócrates, A República.

Sumário: 1 Introdução – 2 As cidades ideais de Sócrates - 3 O legado de Sócrates para as cidades atuais - 4 Referências.

 

1.      Introdução

O estudo da formação e desenvolvimento das cidades é de grande valia para o Direito Urbanístico, que tem como cerne a regulamentação da relação entre o homem e o meio ambiente urbano, a ordenação do uso e ocupação do solo, o crescimento sustentável das cidades e, mais do que isso, a convivência harmônica entre seus habitantes.

Sobre o nascimento das primeiras cidades, relata Daniela Campos Libório que:

“O conhecimento sobre a existência das primeiras cidades data do ano 3.500 a.C., no vale entre os rios Tigre e Eufrates. Desde então, as cidades passaram por alguns estágios no que diz respeito à organização.  O processo de organização local a América Latina data de 2 mil anos atrás. Existiam núcleos nos moldes do que hoje chamamos “cidades”, com localização, forma, traçado, arquitetura, além de terem sido centros de sistemas políticos, com estrutura social e organização econômica” (grifou-se).[2]

Ainda sobre desenvolvimento das cidades, José Afonso da Silva explica que:

“O primeiro estágio é o pré-urbano e se liga à sociedade gentílica, consistente em pequenos grupos homogêneos e autossuficientes, dedicado inteiramente à busca de alimentação. Podemos acrescentar que esses pequenos grupos, referidos por Sjoberg, são de base familiar, constituindo clãs ou gentes, cujo processo evolutivo provocaria o aparecimento de agrupamentos mais complexos, como as frátrias, as tribos e confederações de tribos, que, situando-se num espaço físico permanentemente, gerando excedente da produção de alimentos e condicionando, mais tarde, a especialização do trabalho com o surgimento da propriedade privada e de uma classe dirigente, dão origem à cidade, consoante síntese de Fustel de Coulanges, que concorda, em essência, com Morgan. Enquanto, porém, tais agrupamentos apresentavam organização simples de base familiar, não se caracterizam ainda como cidade, que é uma organização complexa, com diferenças de posições sociais e econômicas, especialização de trabalho não-agrícola e divisão de classe.

O segundo estágio começa com o aparecimento da cidade e corresponde, no esquema de Sjoberg, à sociedade pré-industrial, quando já se dispunha da metalurgia, do harado e da roda, elementos capazes de multiplicar a produção e facilitar as distribuições; conta-se também com a palavra escrita. Foi nesse contexto que as primeiras cidades se desenvolveram, como Eridu, cidades se desenvolveram, como Eridu, Erech, Lagash, Dish, Ur, Uruk (na Suméria); Daro, Harapp, No vale do Indio (Paquistão); Kontaton (Faraó Amenófis IV), no Egito, Babilônia, na Mesopotamia, com seus Jardins suspensos, seus palácios e templos e sue traado irregular, cercad de muros num perímetro de 40km. Depois: Roma, Atenas, Tebas, modelos de cidades antigas, diferentes das cidades de hoje, porque eram cidades-estados. Nas Américas, contam-se as cidades dos Maia (Tical, na Guatemala), dos Astecas (Teotihuacán, no México) e dos Incas (no Peru). A cidade, então, era uma ilha urbana no meio de um mar rural.

O terceiro estágio é o da cidade industrial moderna”.(grifou-se)[3]-[4]

Muito embora as primeiras cidades datem de 5.500 anos atrás, o fato é que, ainda hoje, o mundo observa um processo de urbanização desordenado[5], com grande desigualdade social. A estes elementos pode-se somar, ainda, a presença de elevado nível de corrupção e desvio de verbas públicas, principalmente em países subdesenvolvidos, como é o caso do Brasil.

Nesse contexto é que a obra “A República”, escrita por Platão no século IV a.C. a partir da transcrição de diálogos travados entre Sócrates e outras importantes figuras da época, ao contrário de ser ultrapassada e inaplicável às cidades atuais, apresenta-se, ainda hoje, como um verdadeiro guia a ser seguido pelos administradores públicos, com algumas ressalvas pontuais.

A referida obra, que tem como tema central o conceito de justiça, traz nos a livros II e III relevante discussão acerca da origem das cidades ideais e da importância da educação e da filosofia para criação de sociedades justas e equilibradas.

Em um primeiro momento, poderia parecer que as considerações platônicas não interessariam ao Direito Urbanístico, já que não cuidam diretamente da ordenação do traçado urbano. No entanto, muito ao contrário de se tratar de questão periférica, a importância dos valores psicológicos e filosóficos do ser humano foi ressaltada logo na Primeira Parte da Carta de Atenas, de 1933[6], considerada um dos documentos mais importantes para os urbanistas, em âmbito mundial.

Segundo resume aquele documento:

“Justapostos ao econômico, ao social e ao político, os valores de ordem psicológica e fisiológica próprios ao ser humano introduzem no debate preocupações de ordem individual e de ordem coletiva. A vida só se desenvolve na medida em que são conciliados os dois princípios contraditórios que regem a personalidade humana: o individual e o coletivo.

Isolado, o homem sente-se desarmado; por isso liga-se espontaneamente a um grupo. Entregue somente a suas forças, ele nada construiria além de sua choça e levaria, na insegurança, uma vida submetida a perigos e a fadigas agravados por todas as angústias da solidão. Incorporado ao grupo, ele sente pesar sobre si o constrangimento de disciplinas inevitáveis, mas, em troca, fica protegido em certa medida contra a violência, a doença, a fome: pode aspirar a melhorar sua moradia e satisfazer também sua profunda necessidade de vida social. Transformado em elemento constitutivo de uma sociedade que o mantém, ele colabora direta ou indiretamente nas mil atividades que asseguram sua vida física e desenvolvem sua vida espiritual.

Suas iniciativas tornam-se mais frutíferas, e sua liberdade, melhor defendida, só se detém onde ameace a de outrem. Se os empreendimentos do grupo são sábios, a vida do indivíduo é ampliada e enobrecida. Se a preguiça, a estupidez e o egoísmo o assolam, o grupo, enfraquecido e entregue à desordem, só traz a cada um de seus membros rivalidades, rancor e desencanto. Um plano é sábio quando permite uma colaboração frutífera, propiciando ao máximo a liberdade individual. Irradiação da pessoa no quadro do civismo”.[7]

Como se vê, o objeto de estudo do Direito Urbanístico vai muito além da simples ordenação das cidades para tratar, também, da dimensão filosófica do ser humano, do seu bem estar, da sua convivência pacífica como os demais membros da sociedade e da sua relação harmônica com o meio urbano que habita.

Muito embora toda essa dimensão do direito urbanístico ainda não esteja clara na legislação – até mesmo porque se cuida de ramo relativamente novo do Direito -, pode ser ela extraída do caput do art. 182 da Constituição Federal, que assim dispõe:

“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes” (grifou-se).[8]

Pois bem. Vista a importância da filosofia e da educação para a formação das sociedades (e cidades) equilibradas, serão expostas a seguir as principais contribuições de Sócrates sobre essas questões, limitando-se este estudo aos Livros II e III da obra “A República”.

Adiante-se que esse texto não tem por escopo analisar as discussões gerais acerca do contexto de justiça trazidas na obra de Platão, ou, ainda, o contexto político e geográfico da época, mas sim as considerações expostas nos Livros II e III da República quanto à formação das cidades justas e importância da educação e da filosofia para essa finalidade.