Autora: Kelly Porto Ribeiro, Radialista graduada em Comunicação Social com ênfase em Rádio e TV pela Universidade Metodista de São Paulo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A FORÇA DO DOCUMENTÁRIO: O CASO DE

EM NOME DA RAZÃO

 

 

 

 

 

 

 

Em Nome da Razão é documentário, no formato de curta-metragem, lançado em 1979 e dirigido pelo cineasta Helvécio Ratton. O filme representou um marco na história da psiquiatria no Brasil, mostrando as condições desumanas em que viviam os internos do Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, chamando a atenção da área da saúde e provocando uma verdadeira reforma nos hospitais psiquiátricos do país.

 

O filme foi produzido com recursos próprios e simboliza o início de Helvécio na carreira de Direção Cinematográfica. Na época, o diretor era estudante de Psicologia , havia voltado do Chile há pouco tempo e acabou tendo acesso a alguma fotos da unidade, feitas por um fotógrafo, irmão de um de seus professores. Helvécio inconformou-se com a situação daquelas pessoas dentro do lugar e decidiu que algo precisava ser feito, foi então que surgiu a ideia de produzir um documentário dentro do manicômio.

 

Helvécio queria também levar o mito de Barbacena para o resto do mundo, já que a cidade era conhecida por suas instituições manicomiais. Além disso, Barbacena se enquadrava também em todo um contexto de imaginário sobre loucura em Minas Gerais, desde a obra de Guimarães Rosa Sorôco, Sua Mãe e Sua Filha, até o “trem da loucura” que passava pelo interior do estado e seguia em direção à cidade.

 

A época era justamente o período de início da abertura política no Brasil, sendo que as reivindicações populares, provocadas pelo processo da ditadura militar, ainda eram constantes. Helvécio, sendo uma pessoa politizada e que havia lutado contra a ditadura brasileira, voltava de um período de exílio no Chile e ainda assim, ao retornar ao país foi preso por um período. Isto fez com que o cineasta estivesse bem consciente do que podia representar a violência e opressão social.

 

Naquele momento já havia dentro das escolas de medicina e psicologia um movimento Anti-Manicomial, do qual o psiquiatra italiano Franco Basaglia era líder; eles lutavam junto à Associação Mineira de Saúde Mental para denunciar todas as atrocidades contra pacientes. No ano de 1979, a Secretaria do Estado de Saúde de Minas Gerais concordou em abrir o maior manicômio do Brasil para uma visita de profissionais da área de Saúde Mental e jornalistas selecionados; Helvécio estava entre o grupo visitante.

 

A excursão ao hospício deu origem a uma série de reportagens produzidas por Iran Firmino, do jornal O Estado de Minas. A situação vista pelo grupo ali era bem pior que nas fotos; Helvécio voltou de Barbacena alarmado, convencido de que deveria providenciar as filmagens o mais rápido possível, antes que fechassem novamente as portas do “hospital”. Com a autorização do Secretário de Saúde, que alegou não ter nada a esconder, o diretor então levou sua equipe de apenas três pessoas (a diretora de fotografia, sua assistente e o técnico de som) para o lugar e ali trabalharam durante uma semana.

 

O processo de captação foi bem orgânico, sendo que praticamente toda a iluminação utilizada foi a luz do próprio local. O operador de som saiu pelos corredores captando vários depoimentos, músicas cantadas pelos internos e gritos aterrorizantes que estão presentes durante todo o documentário. Helvécio decidiu que não deveria haver trilha musical, já que os próprios sons do manicômio proporcionavam a real sensação que se tinha no local.

 

A câmera percorre os corredores escuros, as celas fortes, enfermarias, pavilhões e para por alguns instantes em um pátio desabrigado em que muitas pessoas se encontram totalmente desamparadas, entregues ao ócio completo e ao passar do tempo. Em estados lamentáveis, maltratados, alguns completamente nus, convivendo sem condições de higiene e sem o mínimo de dignidade.

 

O texto da narração, feita por Roberto Marcondes, foi escrito sob a ótica de Foucault, por Helvécio e Antônio Simoni, psiquiatra e militante da reforma da saúde mental. A intenção foi abordar a violência, presente em instituições fechadas, relacionando-a com o tempo e o ócio.

 

Participa também do filme o administrador do local, Manuel. Conhecemos apenas sua voz em off, contando como era o dia a dia na instituição e fazendo-lhe, indiretamente, algumas críticas. Fato este que se apresenta um tanto quanto ambíguo, já que ele trabalhava no hospício há muitos anos e, até então, nunca havia feito nada que pudesse melhorar ou mudar o tratamento que dado aos pacientes.

 

A equipe conversa também com o próprio diretor do manicômio, que se mostra cinicamente distante daquela realidade. Mas, em nenhum momento podemo ver os nomes, ou, no caso de Manuel e do diretor, suas funções desempenhadas. Isto porque Helvécio não queria que o espectador fizesse um prejulgamento do indivíduo em questão, baseado em preconceitos. O propósito do filme era apenas fazer com que a realidade cruel do local fosse percebida pelo público através dos fatos apresentados, mobilizando-o afim de dar início a algum tipo de mudança.

 

Não há também a inserção de médicos e enfermeiras no filme, pois isso poderia direcionar o espectador a ater-se em uma ou outra história, sendo que o problema era generalizado e envolvia toda a sociedade, não somente o “hospital” em questão. O diretor não queria um personagem principal, como o McMurphy, e um vilão, como a enfermeira Ratched, do filme Um Estranho No Ninho, de Milos Forman. Além disso, o mais sensato era evitar qualquer tipo de desentendimento com os funcionários do local, para que seu acesso não fosse proibido.

 

Helvécio evitou também presenciar e adicionar ao filme cenas de lobotomia, pois o filme já é forte o bastante para chocar a todos que o assistem; não seria necessário mostrar explicitamente uma tortura em eletrochoque para que o espectador se desse conta de todo o horror vivido por aquelas pessoas.

 

A lobotomia então é apenas lembrada no filme, através dos instrumentos usados no ato e de Sueli, citada como “uma forte candidata” a esse tipo de tortura. Outras imagens são poupadas do espectador, havendo um trabalho não só documental mas também de filtragem de determinadas cenas e uma dosagem necessária, tanto por uma questão ética, como também humanitária.

 

O que aumenta, ainda mais, a indignação perante ao local é que muitos dentre os pacientes não possuíam nenhum tipo de perturbação mental quando ingressaram na instituição. Havia casos de pessoas internadas por bebedeiras, brigas, homossexualismo ou por simplesmente serem considerados “dissidentes sociais”. Casos de pessoas que sempre apresentaram comportamento normal e repentinamente tiveram um surto também não eram levados em consideração, isto é, o indivíduo era enviado ao hospício nas mesmas condições que os outros todos. Se alguém ali ainda tinha chances de se recuperar, após adentrar naquele tipo de ambiente, só tendia a piorar ou a desenvolver realmente algum tipo de loucura. Pessoas como a senhora que aparece no vídeo reclamando da falta de médicos eram levadas muito novas para aquele lugar e lá eram abandonadas para o resto de suas vidas. Crianças são mostradas esquecidas, descuidadas, totalmente entregues a uma vida sem perspectivas.

 

O filme termina fora dos limites do Hospital Colônia de Barbacena. Duas mulheres conversam sobre Adão, paciente do manicômio, que aparece anteriormente numa solitária, algemado, esperando pela lobotomização. Agora, após a cirurgia ele está em casa com sua mãe e a irmã, totalmente incapaz de morar sozinho. A irmã lamenta a falta de esclarecimento, por parte do “hospital” em relação aos procedimentos usados no paciente, fazendo-a concordar com o método agressivo sem ao menos tomar conhecimento disso. A mãe sofre pelo filho.

 

O documentário foi um verdadeiro choque para o mundo, desde os que já tinham conhecimento do que ocorria entre os muros do Hospital Colônia de Barbacena, passando por toda a comunidade da área de Saúde, até a sociedade, em geral.

 

Em Nome da Razão foi premiado em festivais do exterior e, até hoje, circula pelo mundo expressando todo o terror do que pode ser considerado como o Holocausto Brasileiro; termo que intitula o livro publicado em 2013, de autoria da jornalista Daniela Arbex. Holocausto Brasileiro – Vida, Genocídio e 60 mil Mortos no Maior Hospício do Brasil relembra a história do Hospital Colônia de Barbacena e a expõe para os que ainda não conhecem este triste episódio do país. Daniela encontrou dezessete sobreviventes e mais algumas pessoas que nasceram em meio ao caos do manicômio. Psiquiatras e outros funcionários da instituição também foram entrevistados.

 

Hoje, o Hospital Colônia de Barbacena mudou de nome, chama-se Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB) e funciona dentro de um novo modelo, mais humanizado. O documentário Em Nome da Razão foi o estopim para que as mudanças naquela e em outras instituições fossem tomadas. O filme proporcionou um processo que provou serem ilegítimos seus métodos de tratamento/atenuação da doença mental e isso ocasionou numa abertura para projetos que já haviam sido iniciados, encontrando espaço para serem colocados em prática.

 

Este caso só comprova a importância e o poder exercido pelo gênero do documentário. Usados como instrumento de impacto e mobilização social, os filmes são capazes de colocar em evidência ações que devem ser questionadas e revistas. É necessário que algo de concreto aconteça, muitas vezes, para que as providências sejam tomadas e um filme tem o incrível poder de ser propagado rapidamente entre a sociedade, principalmente se levarmos em consideração a época em que vivemos, em que a internet representa um dos principais meios de difusão de ideias e materiais audiovisuais.

 

 

 

 

 

 

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

 

 

 

RATTON, Helvécio. EM Nome da Razão. Minas Gerais: Grupo Novo de Cinema, 1979, 24 min. p&b. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=R7IFKjl23LU

 

VILLAÇA, Pablo. Helvécio Ratton: O Cinema Além das Montanhas. São Paulo: IMESP; Imprensa Oficial, 2005. 440p.

 

GOULART, Maria Stella Brandão. Em nome da razão: Quando a arte faz história. São Paulo: Revista Brasileira de Crescimento e Humano, vol. 20, nº 01, abril de 2010.

 

ARBEX, Daniela. Entrevista/Helvécio Ratton, cineasta: 'Ali tinha crime de lesa humanidade'. Minas Gerais: Tribuna de Minas, 25 de novembro de 2011.

 

DUARTE, Elemara. “Holocausto Brasileiro” resgata atrocidades em hospício de Barbacena. Minas Gerais: Hoje em Dia, 17 de junho de 2013.