A FINALIDADE DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

 

Rosaury Francisca Valente Sampaio Muniz*

 

A vida é o bem jurídico de maior importância. As experiências históricas, aviltantes à dignidade humana, tais como escravidão, inquisição, nazismo, stalinismo, genocídios étnicos, tornaram possível o reconhecimento do indivíduo como limite e fundamento do domínio político.  Para resguardar a vida humana, existe um consenso mundial referendado na declaração dos direitos humanos da ONU, 1948, que enlaça as nações e se superpõe às cartas constitucionais.

Significa dizer que, acima da forma peculiar com que os Estados se estruturam, existe a obrigação de preservar a vida, a qual em nossa Carta Magna está consolidada como dignidade da pessoa humana, elemento fundante do Estado, princípio de Direito norteador do ordenamento jurídico, conduzindo interpretações de lei e resguardando os direitos individuais e coletivos.

O Estado, com o intuito de garantir e elevar a dignidade da pessoa humana, intervém de forma protetiva, abraçando, inclusive, aqueles que sequer têm condições de reconhecer eventuais insultos à sua auto-estima, bem como os que perderam sua capacidade de autodeterminação, dentre outras minorias que constantemente são alijadas de sua cidadania.

O Estado é o resultado da vontade de uma pluralidade de sujeitos, definindo-se como laico, para proteger a liberdade de crença, como prerrogativa do exercício do direito que consente a tranqüilidade emocional e espiritual da vida humana.

A dignidade da vida humana, padrão valorativo irrenunciável constitucionaliza o direito à identidade, à integridade física, psíquica e moral da pessoa, através do livre aprimoramento dos direitos da personalidade; cria-se assim, um ambiente favorável ao exercício do direito sobre si mesmo, referendado nos direitos ao corpo (vivo ou morto), à voz e a ter voz ativa; a manter-se íntegro emocionalmente, libertando-se da dor da existência.

O exercício restritivo da liberdade dá-se por meio de mecanismos de sociabilidade, dentre os quais se incluem a manifestação cultural, a viabilização do trabalho, educação, saúde, lazer, moradia, segurança, previdência social, proteção à maternidade, à infância, dentre outras garantias de condições existenciais mínimas como o amparo à integridade moral, através dos mecanismos garantidores do direito à honra e à imagem.

Sendo o homem o centro da ordem jurídica, ponto de partida do progresso do Estado e destino desse mesmo progresso social, toda e qualquer ação do Estado deve encontrar sua fundamentação na preservação da dignidade da vida (eu individual) e da sociedade (eu coletivo), sob pena de ser considerada inconstitucional e de transgredir a dignidade da pessoa humana, paradigma avaliativo de cada ação do Poder Público.

A sociedade é mais do que a soma de indivíduos, é uma relação de vontades manifestada através de um contrato que outorga soberania à Nação, dotando-a de poderes suficientes e necessários para dirimir conflitos e pacificar condutas. A vida e os bens da vida, repise-se, são bens jurídicos relevantes para o Estado e para a sociedade, estando tipificadas as possíveis situações que afrontam a sua integridade.

Permeando a relação estabelecida entre Nação e Estado, há que se observar  a conduta ética a ser observada pelas partes. A eticidade do Estado está plasmada na tridimensionalidade da lei, valorando o fato social regrado na norma. A dogmática penal, norma por excelência, constrange a atuação do Estado, em sua dupla função: chama para a sua tutela direta aqueles que teriam transgredido as suas normas, acompanhando-os, diuturnamente, com vistas a ressocializá-los. Neste intuito, faz baixar uma lei de execução penal (L.E.P.), sob os auspícios dos direitos humanos, reconhecendo a dignidade do apenado e, na mesma medida, seus deveres para com ele.

Muito se tem discutido a respeito da realidade do sistema carcerário brasileiro, quase sempre pelo ângulo daqueles que gozam da liberdade, pela via caolha do umbigo, sem atentar para os direitos inerentes à (falha) da pessoa humana. Soa razoável observar o sistema penal brasileiro por trás das grades, questionando o Estado se ele seria o condutor do início, meio ou fim das condutas reprováveis.

No Brasil o condenado é duplamente punido: a primeira quando sua sentença é selada nos Tribunais extramuros e a segunda, mais cruel, lhe aguarda nos intramuros dos famigerados cárceres de todo o País.

Dispõe a lei que o mesmo conjunto arquitetônico pode abrigar estabelecimentos de destinação diversa desde que devidamente isolados. O regime prisional no Brasil, contrariando o artigo 5° do Capítulo I da Lei de Execução Penal, é o da prisão coletiva, onde estão todos os tipos de delinqüentes, não separados pela gravidade do crime pelos quais foram condenados, mas, normalmente pelos laços de pertencimento, fidelidade ou submissão a grupos engajados no mundo do crime, na medida da rivalidade existente entre eles.

A todo custo, querem fazer crer que a prisão representa o principal instrumento do sistema que busca impedir as atuações criminosas e se propõe à ressocialzação dos detentos, no pressuposto de que o desrespeito às normas esteja relacionado à falta de formação profissional e de  disciplinarização moral para o convívio social e o trabalho.           

A crescente onda de violência que vem assolando o país, aliada a explícita incapacidade do Estado em contê-la, tem trazido à discussão o tratamento da criminalidade e as punições impostas. Desconhecendo ou recusando-se a atacar as desigualdades socioeconômicas, principais matrizes da criminalidade, a justiça e a sociedade continuam confiantes de que a severidade da pena imposta tem eficácia preventiva e, de que o apenado será ressocializado.

Por sua vez, o Estado exige obrigações daqueles que não gozam dos direitos elencados no art.6º, CF/88. Esse mesmo Estado elege como seu inimigo as mesmas fatias da sociedade, as quais sempre foram relegadas à condição de inimigo. Dessa forma, se vê dentro do nosso sistema penitenciário o apogeu da teoria de Jakobs, aplicado à parcela da sociedade, que por ir contra o ordenamento positivado é escolhida pelo Estado para deixar de ser cidadã.

Günter Jakobs, tido como um dos mais brilhantes discípulos de Welzel[i] foi o criador do funcionalismo sistêmico (radical) que sustenta que o Direito Penal tem a função primordial de proteger a norma (e só indiretamente tutelaria os bens jurídicos mais fundamentais). Pontua Luiz Régis Prado (2010), que o inimigo, por conseguinte, não é um sujeito processual, logo, não pode contar com direitos processuais, como por exemplo, o de se comunicar com seu advogado constituído. Cabe ao Estado reconhecer seus direitos, “ainda que de modo juridicamente ordenado”. Contra ele não se justifica um procedimento penal (legal), mas sim, um procedimento de guerra.

Não há dúvidas de que a superlotação nos estabelecimentos penitenciários do Brasil é um dos maiores entraves ao exercício de qualquer política que vise à socialização dos apenados que lá se encontram. Os infratores por crimes leves o são por total descaso do poder público no cumprimento das normas referentes à dignidade da pessoa humana asseguradas pela nossa Carta Magna.

O ponto nevrálgico acerca do sistema penitenciário brasileiro, se início, meio ou final de linha, conduz ao entendimento de que a superpopulação carcerária é prática que vai contra a Constituição Federal e a Lei de Execução Penal vigente no Brasil.

Representa desprezo indesculpável ao ser humano que passa o a ser tratado não como sujeito de direitos, mas como objeto, como inimigo. Trata-se ainda de grave violação de direitos, que não se justifica nem mesmo para quem cometeu o crime mais brutal possível e atentou contra os direitos de outra pessoa. O atual sistema prisional faz um retrocesso no tempo aviltando as garantias que Beccaria declarou no pequeno grande livro: Dos Delitos e das Penas.

Entretanto, nem é necessário sair do Estado da Bahia, no Brasil, para verificar, a teoria de Jakobs, aquela que elege e elimina o outro, como o inimigo do Estado, o não cidadão, como o anti-direito. Basta entender a abordagem policial como uma atividade lombrosiana às avessas, em que os policiais, por métodos puramente instintivos, baseados no preconceito que permeia o imaginário cultural, elegem características e alguns aspectos fisionômicos, ligados estritamente à raça e condição social, para indicar os indivíduos passíveis de delinqüência, procedendo à abordagem, constrangimento e subseqüente detenção para averiguação, demonstrando, de forma insofismável a pratica do anti-direito, da ante-câmera do cárcere.

A superpopulação carcerária acrescenta crueldade à pena, porque as pessoas são amontoadas em local único, onde todos defecam, urinam, com espaço de movimentação restrito. Da prisão deve haver conseqüências restritivas ao direito de ir e vir, mas não além do domínio de dignidade que deve ser conservada pela única razão de se tratar de pessoa humana.

A Lei de Execução Penal estabelece, no artigo 85º, que o “estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade”. Constata-se, entretanto que a Administração Pública não cumpre o seu papel na relação contratual, ferindo, frontalmente, o pactuado, acarretando danos de grande monta à auto-estima, à dignidade e à cidadania do apenado, indestacáveis de sua personalidade e que não se submetem às regras do cárcere. As condições do cumprimento da pena refletem a qualidade das relações internas do país, maculando sua soberania, ensejando sanções internacionais, proferidas pela ONU e outros órgãos afins.

A formatação dada ao sistema prisional brasileiro impede que o apenado possa fazer uma justa reflexão sobre a sua vida pregressa e os motivos que o conduziram à criminalidade. O Estado tem a responsabilidade cumulativa de fomentar a criminalidade, em face da crescente desigualdade econômica e de mantê-la, em seus cárceres, impedindo a efetiva socialização do indivíduo e a plena eficácia da Constituição Federal, seja pela morte prematura do apenado ou pela falta de expectativa e crença no sistema.

O Direito Penal da era da globalização caracteriza-se (sobretudo) pela prisionização em massa dos marginalizados. Os velhos inimigos do sistema penal e do estado de polícia (os pobres, marginalizados etc.) constituem sempre um “exército de reserva”: são eles os encarcerados. Nunca haviam cumprido nenhuma função econômica (não são consumidores, não são empregadores, não são geradores de impostos).

Mas isso tudo agora está ganhando nova dimensão. A presença massiva de pobres e marginalizados nas cadeias gera a construção de mais presídios privados, mais renda para seus exploradores, movimenta a economia, dá empregos, estabiliza o índice de desempregado etc. Os pobres e marginalizados finalmente passaram a cumprir uma função econômica: a presença deles na cadeia gera dinheiro, gera emprego etc. Quem antes não tinha (mesmo) lugar para ir, agora já sabe o seu destino: o cárcere. Pelo menos agora os pobres cumprem uma função socioeconômica. Finalmente a sociedade descobriu uma função para eles, afirma Luiz Régis Prado.

Para a elite político-econômica o atual sistema carcerário representa o início de uma nova ordem comercial; para a mídia, meio de lucro com pontos de audiência e, para os pobres marginalizados encarcerados fim de linha, fim das garantias constitucionais e da possibilidade de algum dia vir a ser tratado como gente.

REFERÊNCIAS

BECCARIA, C., Dos delitos e das penas. Trad. De Florio de angelis.Bauru, Edipro, 1997.

JAKOBS, Günter. Direito penal do inimigo: noções e críticas/ Günter Jakobs, Manuel Cancio Meliá; Organização e tradução: André Luis Callegari, Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

PRADO, Luiz Regis. Direito penal  brasileiro. Disponível em: <www.revistajurídicaunicoc.com.br/midia/arquivos/pdf>. Acesso  em 04/abr/2010



*     Pós-graduada em Metodologia da Pesquisa e Extensão em Educação pela Universidade Estadual da Bahia; Graduada em Ciências Físicas e Biológicas, pela UCSal; Pós-graduada em Gestão Pública com Ênfase em Planejamento de Projetos, pela Faculdade Kurius; Bacharela em Direito pela UCSal.Advogada.



[i] Hans Welzel é considerado o pai da Teoria Finalista da Ação, adotada pela reforma da Parte Geral do Código Penal Brasileiro de 1984.