Werner Leber

DA ESSÊNCIA PLATÔNICA À ILUMINAÇÃO INTERIOR PELA  FÉ: A CRISTIANIZAÇÃO DE PLATÃO POR AURÉLIO AGOSTINHO                                                                         

 

1. A FILOSOFIA GREGA E A TEOLOGIA CRISTÃ: UM ENCONTRO POUCO PROVÁVEL

Os pensadores antigos não puderam evitar a filosofia grega. Os primeiros teólogos sistematizadores da teologia cristã foram um misto de clérigo com filósofo. É o caso, por exemplo, se São Clemente, Eusébio de Cesareia, Ambrósio e também Santo Agostinho. Tiveram de ajustar a fé cristã, isto é, a doutrina cristã que surge da atividade de Jesus e sua porterior condenação por morte de cruz, ao legado filosófico que circulava nas províncias romanas, onde a doutrina cristã surgiu. Os pensadores cristãos, portanto, adaptaram partes da filsofia platônica para descrever e analisar temas e problemas teológicos. Por isso as doutrinas expressas nos concílios era, se me permitem, uma teosofia. É bem óbvio que o primeiro grande teólogo cristão foi Paulo. Suas cartas já foram uma luta contra a filosofia grega. Basta que leiamos parte de Gálatas, Filipenses ou mesmo Corintios para perceber o quanto Paulo sabia que a cultura grega seria um problema para a fé cristã. Paulo sabia que haveria muita confusão entre a mensagem cristã e a filsofia platônica que circulava no Palestina, oriunda do estoicismo. Paulo estava vivo quando Jesus circulava por Israel, pregando que um novo tempo tempo chegaria. Não conheceu Jesus pessoalmente, até onde se sabe. Mas as cartas paulinas somadas aos Evangelhos são os documentos cristãos. Mas como a doutrina cristã se arranjou até ser reconhecida como merecedora de crédito? Quantas voltas e malabarismos foram necessários? Esse caminho foi árduo e os teólogos cristãos dos primeiros séculos tiveram de se esforçar para conseguir expressar o ensinamento de Jesus em linguagem e cultura grega. Essa combinação nem sempre foi tranquila. Temos que nos lembrar que Jesus torna-se o Cristo da fé. Mas o Cristo já é um título grego. Os pensadores cristãos precisaram explicar que Jesus, ao tornar-se o Cristo, o Messias Esperado, não se tornou um filósofo como Platão, Aristóteles ou Sócrates. Em linha direta, os ensinamentos de Jesus nada tem a ver com a filosofia grega. Mas elas floresceram em territórios em que a cultura e a fala grega já estavam constituídas a séculos. Foi, portanto, inevitável que os sistematizadores da teologia cristã se utilizassem de aspectos da filosofia de Platão para tratar da fé e da teologia cristã. Santo Agostinho representa a síntese final desse processo. Antes dele, muitos outros prepararam o caminho. Mas nem por isso, a interpretação de Agostinho deixa de ser genial e digna de admiração.  

 

2. SANTO AGOSTINHO: LUTA EM FAVOR DA FÉ E LUTA PARA DIFERENCIAR FILOSOFIA DE REVELAÇÃO

Santo Agostinho é um homem de Deus. Toda sua vida, depois que se livrou dos enganos maniqueístas, foi uma dedicação à obra de Deus e à divulgação de sua palavra. Não há uma só porta para adentrar à ética de Santo Agostinho. Certamente, porém, uma das mais exemplares, encontra-se na As Confissões,  na passagem em que Agostinho escreve que “Deus é incorruptível (AGOSTINHO, 2010, p. 95). Esse tema, a incorruptibilidade de Deus, será também central em sua mais bem elaborada obra, A Cidade de Deus. Ainda dando sequência àquela argumentação, surgirá também o princípio ético segundo o qual o mal não procede Deus, mas da deficiência das criaturas em relação à perfeição de Deus. De modo semelhante surge também o problema do mal como possibilidade da criatura livre. A liberdade de escolher produz enganos. São os enganos os problemas que nos levam erradamente a acusar Deus de culpa pelo mal.

Santo Agostinho interpreta Platão. Nisso ele está ao lado de outros neoplatonistas da Patrística. Todavia, ninguém como ele pôs Platão tão a serviço da fé cristã. Praticamente toda filosofia platônica dividida entre Luz e Trevas, Caverna e Ideia, surge em Agostinho como Criatura e Deus. Onde Platão via a perfeição da Ideia, a Bondade, a Eternidade, a Justiça, Agostinho cunhou Deus e a Igreja como sua representante fiel. De certo modo, Agostinho reuniu Estado  e Deus em uma grande Caserna – a Igreja como caminho e como ética para o encontro com aquilo que nos falta. Mas Agostinho vai além de Platão ao definir razão não só como raciocínio, mas como Participação. Para Agostinho Deus não é um objeto que o ser humano busca pela racionalidade destacada, como queria Platão em A República, e nas Leis, por exemplo. A revelação, o Cristo da Fé, para Agostinho transformou a realidade pagã: um salto qualitativo entrou na história. A coragem dos Estoicos foi fundamental à organização da fé cristã. Os Estoicos forneceram, via de regra, a base intelectual que transformou o cristianismo rapidamente em uma religião dominante e com pensadores intelectuais. Sem a intelectualidade dos estoicos e das escolas helênicas de modo geral, assumidas pela teologia cristã posterior, certamente a religião cristã na teria tido sucesso em meio à cultura romana (TILLICH, 1992). Santo Agostinho é o desfecho de uma tradição que começou bem antes dele e bem antes do cristianismo. Sem a noção de coragem e destino dos estoicos, sobretudo da ética destes, o cristianismo e a Patrística teriam chances bem menores de ter chegado até nós.

 

3. O CONCEITO “PARTICIPAÇÃO” COMO ONTOLOGIA: A ATUALIDADE DA ÉTICA DE AGOSTINHO NA INTERPRETAÇÃO DE PAUL TILLICH E SEU DESLOCAMENTO PRODUZIDO PELA CULTURA SECULARIZADA

Paul Tillich interpreta Agostinho como o inventor “do homem interior em vez da experiência do mundo fora do homem”. Deus tem um plano, e toda ética agostiniana está alicerçada nesse plano. A noção de preservação é a noção “inofensiva” que os sistemas das ciências modernas, o pensar filosófico moderno de um modo geral também, encontrou para desarmar a fé de sua incisividade profunda e transformadora. Assim o divino já nada representa de significativo para o homem atual porque o elemento ontológico dele já está de antemão posto em segundo plano. É a partir dessas expectativas “mornas” que o pensamento moderno escamoteou princípios fundamentais que eram questões de salvação e perdição, de eternidade e finitude, de santo e demoníaco, de ser e não-ser. Essas são as questões últimas da polaridade ontológica “eu mundo”. As noções filosóficas modernas querem “domesticar” essas noções e tirar delas o sentido último. Através de Agostinho e sua recepção na tradição protestante é possível restabelecer a noção de que Deus não é alguém ao lado do mundo, como a teoria humanista pressupõe com a noção de preservação. O pensar, o ato constituidor da pergunta ontológica implicada na polaridade eu/mundo, já está também tomada pela essencialidade. Portanto, Tillich retoma a noção de preservação do mundo, mas com uma expectativa que o pensamento moderno hispostasiu:

Desde o tempo de Agostinho, dá-se outra interpretação à preservação do mundo. Preservação é criatividade contínua, no sentido de que Deus, a partir da eternidade, cria juntamente as coisas e o tempo. Esta é a única compreensão adequada de preservação. Ela foi aceita pelos reformadores; Lutero a expressou com singular vigor, e Calvino a elaborou radicalmente, acrescentando-lhe uma advertência contra o perigo deísta que já antevia. Devemos seguir esta linha de pensamento e transformá-la em uma linha de defesa contra a concepção contemporânea semideísta e semiteísta de Deus como um ser ao lado do mundo. Deus é essencialmente criativo. Portanto, ele é criativo em cada momento da existência temporal, dando o poder de ser a tudo que tem ser a partir do fundamento criativo da vida divina (TILLICH, 2005, p. 267)

A relação eu/mundo implica uma ontologia uma vez que pressupõe a participação essencial como fundamento do pensar, o que Tillich denomina razão ontológica. Para Tillich, se a razão fosse completamente estranha à revelação, o encontro com ela lhe destruiria por completo. A revelação aniquilaria a razão completamente, mas não é o ocorre. “O ser humano é a imagem de Deus porque seu logos é análogo ao logosdivino, de forma que o logos divino pode aparecer como ser humano sem destruir a humanidade do ser humano”. A razão ganha qualidade; a pergunta ontológica se reconhece na revelação, sabe que está separada de seu fundamento. Mas o “saber” é justamente  “o ontológico”, ou, como quer Tillich, é a essencialidade criadora do eterno presente no condicionado. Via de regra, era isso que Santo Agostinho pretendia com sua teologia depois que se livrou do erro dos maniqueus. E que erro era esse? Confundir a essência de Deus com o mundo e pressupor que o mal é um defeito na criação, conforme se lê na seguinte passagem: “Daqui deduzia eu a existência de uma certa substância do mal que tinha a sua massa feia e disforme [...] a qual eu julgava o espírito maligno investindo a terra (AGOSTINHO, 2010, p. 75).

 

4. ÉTICA DE AGOSTINHO: LUZ INTERIOR E LIVRE-ARBÍTRIO

O mal era incompatível com a Bondade e a perfeição do Deus cristão. Assim, Agostinho encontrou a sua origem na ação humana, definindo o mal desde de então não mais como uma substância corpórea, um defeito na matéria, mas como carência, uma espécie de desvio do bem que ocorre pela liberdade presente nas criaturas. Para explicar a possibilidade desse desvio Santo Agostinho apela ao conceito “vontade”, “desejo”, pois estes, assim como a racionalidade, fazem parte da essência humana. A razão, dessa forma, é a capacidade de conhecer ao passo que a vontade é a faculdade de escolher. É daí que decorre seu conceito mais conhecido e comentado, o Livre-Arbítrio – entendido como a liberdade que têm os humanos de optar.

Fomos criados livres, podemos escolher. Como não somos perfeitos, erramos. Segue-se, pois, que o mal agora é um problema de falta de capacidade dos humanos, um erro de razão e não um defeito na matéria de toda a criação. Mas Agostinho vai mais fundo. Por que não somos então melhores? Por que somos inperfeitos, por que praticamos o mal que não queremos e não conseguimos praticar o bem que desejamos? Assim pergunta Agostinho: “Quem colocou em mim e quem semeou em mim este viveiro de amarguras, sendo eu inteira criação do meu Deus tão amoroso?” (Op. cit, p. 95).

Para compreender a possibilidade do mal moral no pensamento de Agostinho, é preciso considerar sua crença na existência de inúmeros bens, uma vez que ele entendia a criação como obra do amor de um Deus perfeito. Logo todas as criaturas particulares seriam boas, e o conjunto harmônico, formado por elas, seria muito bom e perfeito também. Deus é o Bem Supremo, o Criador, e a natureza humana deveria buscá-lo acima de tudo. Porém, o homem é corruptível por causa do Pecado, da queda, do desvio, e a hierarquia natural – a inferioridade das criação – poderia levar os seres humanos a voltarem-se para coisas inferiores, para os bens terrenos, preferindo estes em vez de Deus. O pecado, desse modo, nada mais seria que essa escolha equivocada. O livre-arbítrio é uma opção da criatura. Mas ele pode tornar-se soberba e afastar o ser humano do alvo final, do encontro com seu Criador e Redentor.  Esse seria  “causa ordinária do pecado” (Op. cit., p. 40). Conforme a ética agostiniana, a corrupção do pecado inclui inclusive as doenças físicas, os flagelos, as pestes, os males físicos de modo geral que vieram da soberba de Adão.

 

5. AGRAÇA: DERROTA DA SOBERBA E POSSIBILIDADE DE REDENÇÃO

Não há saída. O homem não pode fugir de Deus ileso. Está por ele enredado de todos os lados. E se quiser dele fugir, o fará como livre que é, mas não terá como se autossalvar, como se autogovernar. Os males, embora oriundos da vontade humana, não podem ser reparados só pela vontade humana. Mas Deus não deixou a humanidade e sua criação inteira desamparada.

A Graça é o caminho para reconstruir o caminho dilacerado e interrompido pela soberba e pelo orgulho da humanidade. É a Graça que torna boa a vontade corrompida e faz com a humanidade se volte ao verdadeiro bem. O livre-arbítrio pode voltar-se para onde quiser, mas nem todas as opções são boas. Somente se ele direcionar-se à graça, a bem supremo, à luz interna que em nós brilha, somente se ele voltar-se à revelação que é o livre-arbítrio pode libertar a criação do mal do qual ela mesma é culpada.

 

6. REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. As confissões. [Tradução de J. O. santos e Ambrósio de Pina]. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010. (Coleção Folha: Livros que mudaram o mundo, v. 12).

SHELLING. Os Pensadores. [Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho]. São Paulo: Abril Cultural, 2004.

TILLICH, Paul. A coragem de ser. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

______. História do pensamento cristão. Tradução de Jaci Maraschin. 3ª edição. São

Paulo: ASTE, 2004.

______. Teologia sistemática: Três volumes em Um. Tradução de Getúlio Bertelli e Geraldo Korndörffer; revisão de Enio Müller. 5ª edição. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2005.