Bianca Oliveira de Freitas Fernandes

Erick Silva de Oliveira [1]

Anna Valéria Cabral Marques[2]

RESUMO 

É sabido que o Direito das Sucessões tem evoluído bastante e a cada dia surge uma situação diferente a ser tratada pelo legislador civil. Questão extremamente nova sobre o assunto é a criação de mais um instituto sucessório, intitulado de “testamento biológico”, que tem gerado boas discussões mundialmente. É de conhecimento de todos a utilidade do testamento civil, e certa intimidade com a matéria pode facilitar no entendimento do instituto que será estudado no presente artigo (testamento biológico), pois o mesmo só se diferencia do ora citado por conta da sua finalidade de deixar como herança material genético ao invés de bens materiais. No entanto, por se tratar de sucessão, o estudo perpassa por situações delicadas, sendo necessário utilizar de argumentos favoráveis e desfavoráveis do instrumento. Entende-se, desta feita, que os pesquisadores vão explorar o tema no seu viés internacional, levantando questionamentos sobre sua possível utilização e incorporação nacionalmente.

1 INTRODUÇÃO 

É muito comum se ouvir falar em testamento civil, em que os bens de determinada pessoa são deixados, a partir de sua morte, para outras. No entanto, surgiu há pouco tempo um instrumento parecido, intitulado de “testamento biológico”, que ao invés de deixar bens patrimoniais à outra pessoa, deixa material genético, mais especificamente sêmen ou óvulos, para a reprodução assistida post mortem.

Por se tratar de um tema novo, pouco se ouve falar dele no Brasil, não se encontrando, pelo mesmo motivo, legislação que trata sobre tal. Contudo, por ser uma temática muito interessante, os pesquisadores resolveram analisar como esse instrumento pode ser incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro, levantando questões baseadas no atual Código Civil de 2002.

Praticamente não existe doutrina e nem jurisprudência que trata sobre o “testamento biológico”, todavia já se pode encontrar esse instituto em outros países, sendo interessante fazer um paralelo entre tais e o direito brasileiro.

O enfoque principal vai percorrer o Direito das Sucessões, pois tais “filhos de herança”[3] precisarão do patrimônio do pai já falecido, contudo não se sabe se eles terão direito a tal. Far-se-á, desta feita, um estudo com institutos parecidos constantes no Código Civil de 2002 para tentar solucionar problemáticas como essa.

Além disso, vê-se interessante fazer um paralelo com alguns princípios do Direito Constitucional, haja vista tal tema estar relacionado intrinsecamente com a estruturação da família, que é uma organela social protegida pelo Estado, segundo dispõe o artigo 226 da Carta Magna de 1988.

Desta feita, observa-se que a temática em estudo oferece uma boa gama de discussões, sendo importante destacar que as análises que serão tecidas mais adiante terão cunho precipuamente acadêmico, o que torna a pesquisa mais rica no que tange às informações mais recentes sobre ela.

2 O TESTAMENTO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 

O Código Civil de 2002 divide a sucessão em duas vertentes bem definidas: legítima e testamentária. A primeira que regulamenta a divisão de bens de determinada pessoa que veio a óbito através das disposições legais e a segunda que faz essa transmissão a partir de um ato de última vontade do de cujus, revestido de solenidade exigida por lei, conhecido como testamento[4].

Lembra VENOSA (2007, p. 163) que a utilização deste importante instrumento da sucessão testamentária é bem restrita e os fatores que indicam tal omissão por parte dos civis são estranhos ao direito. Inegável que a questão é principalmente sociológica, seja pelo apego à vida ou mesmo pela lembrança da morte. Além disso, o excesso de solenidades do testamento, com o risco sempre latente de o ato poder sofrer ataques de anulação após a morte, acaba por afugentar os menos esclarecidos e até mesmo aqueles que, por mero comodismo ou receio, não possuem inclinação para disposições de última vontade.

Sobre essa possibilidade oferecida pelo Estado para transferência de bens por ato de última vontade, tendo como parâmetro o Direito das Sucessões, disserta GONÇALVES:

A sucessão testamentária decorre de expressa manifestação de última vontade, em testamento ou codicilo. A vontade do falecido, a quem a lei assegura a liberdade de testar, limitada apenas pelos direitos dos herdeiros necessários, constitui, nesse caso, a causa necessária e suficiente da sucessão. Tal espécie permite a instituição de herdeiros e legatários, que são, respectivamente, sucessores a título universal e particular. (2014, p. 226)

Pois bem, o como dito mais acima, o instrumento idôneo a efetivar a sucessão testamentária é o testamento, que nada mais é que um “ato personalíssimo e revogável pelo qual alguém, de conformidade com a lei, não só dispõe, para depois de sua morte, no todo ou em parte, do seu patrimônio, mas também faz estipulações”[5], podendo estas serem extrapatrimoniais (reconhecimento de filhos não matrimoniais, nomeação de tutor para filho menor, reabilitação de indigno, deserdação de herdeiro, etc.) e patrimoniais (recomendação sobre o cumprimento de obrigações do testador, constituição de renda, etc.), sendo esta última modalidade a mais corriqueira[5], podendo estas serem extrapatrimoniais (reconhecimento de filhos não matrimoniais, nomeação de tutor para filho menor, reabilitação de indigno, deserdação de herdeiro, etc.) e patrimoniais (recomendação sobre o cumprimento de obrigações do testador, constituição de renda, etc.), sendo esta última modalidade a mais corriqueira[6].

As principais características deste instrumento, nos ensinamentos de GONÇALVES (2014, p. 230/233), são: a) é um ato personalíssimo, isto é, privativo do autor da herança, não sendo possível sua feitura por procurador, nem mesmo com poderes especiais; b) constitui ato jurídico unilateral, ou seja, demonstra-se com singular manifestação de vontade (a do testador) e presta-se, exclusivamente, para efetivar a produção de diversos efeitos por ele desejados e tutelados na ordem jurídica; c) é ato solene, tendo validade somente se forem observadas todas as formalidades essenciais prescritas na lei; d) gravado de gratuidade, haja vista não visar a obtenção de lucros para o testador; e) é essencialmente revogável, sendo, portanto, inválida a cláusula que proíbe a sua revogação, pois a revogabilidade é da essência do testamento, podendo o testador, desta maneira, usar do direito de revogá-lo, total ou parcialmente, quantas vezes quiser; f) como dito anteriormente, é ato causa mortis, isto é, produz efeitos somente após a morte do testador.

Depois de conhecidas as características do instrumento de testamento, importante deixar claro quem tem capacidade de testar e de adquirir em decorrência de tal. O critério que se pode utilizar para aferir a capacidade de testar é o da exclusão, pois o Código Civil de 2002, em seu artigo 1860 indica quem não pode testar, abrindo a possibilidade de quem não está incluso nesse rol praticar o ato, veja-se: “além dos incapazes, não podem testar os que, no ato de fazê-lo, não tiverem pleno discernimento”. O parágrafo único do referido artigo autoriza, ainda, os maiores de dezesseis anos a testarem, o que é razoável, pois diversos outros atos da vida civil também são autorizados para quem tem esta idade.

No que diz respeito à capacidade testamentária passiva, sabe-se que sua aferição é guarnecida através da regra genérica de que são capazes de receber por testamento todas as pessoas, naturais ou jurídicas, existentes ao tempo da morte do testador, não havidas como incapazes (art. 1798 e 1799). Desta maneira, percebe-se que a capacidade é a regra, e a incapacidade, a exceção.[7]

Depois de respeitados esse quesitos, evidente que a sucessão será realizada de forma satisfatória, sendo necessário chamar todos os beneficiários para receberem em juízo sua cota estipulada pelo testador. 

3 O SURGIMENTO DO TESTAMENTO BIOLÓGICO 

Superado o estudo sobre o testamento já de conhecimento e cotidiano de todos, interessante conhecer uma nova tendência no que diz respeito ao Direito Sucessório: o testamento genético ou biológico.

Sobre o que vem a ser tal instituto, disserta Jones Figueirêdo Alves:

É o denominado “testamento genético”, quando os futuros pai ou mãe, doadores de sêmens ou óvulos, deixam instruções inscritas no sentido de o material genético congelado ser utilizado para a concepção e nascimento de seus filhos, após suas mortes, com escolha pessoal de quem os utilize. Escolha feita pelo próprio testador ou pessoa por ele indicada. Em resumo: o material genético passa a se constituir um bem de inventário, destinando-se servir à procriação do(a) falecido(a). (2014)

Observa-se, desta feita, que a diferença entre este novel instituto e o testamento comum da sucessão testamentária diz respeito à matéria testada. Enquanto no testamento comum são transmitidos bens patrimoniais e extrapatrimoniais, no testamento biológico o que é deixado para transmissão é material genético do testador, com o objetivo de gerar filhos, mesmo depois de sua morte.

O instituto do testamento biológico teve seus primórdios em Israel, quando aconteceu, pela primeira vez no mundo, o nascimento de uma criança através de uma doação de material genético, de certa forma direcionada a alguém, com características de herança. A partir deste acontecimento, vários outros casos já ocorreram. A ideia do testamento biológico é de autoria da advogada israelense Irit Rosenblum, que criou uma ONG (Nova Família) direcionada exatamente à instrução jurídica para pessoas interessadas em concretizar o referido instrumento[8].

O precedente firmado em Israel, que originou o primeiro caso de testamento biológico, firmou discussões bastante divergentes no que diz respeito à concretização do instrumento, sendo que de um lado a promotoria do referido país levantou argumentos no sentido de que seria um prejuízo sem tamanho pro filho nascido nessas circunstâncias, visto que já nasceria órfão, entretanto, a advogada do caso (Irit Rosenblum), defendendo o instituto, indicou que aconteceria exatamente o contrário, pois em casos específicos como esses o material genético fica à disposição exatamente de pessoas idôneas a proporcionar todo um ambiente familiar confortável à criança advinda por decorrência do testamento biológico.[9]

Observa-se que o referido testamento biológico tem o objetivo pura e simplesmente de dar continuidade à família de alguém que por circunstâncias imprevisíveis acabaram falecendo, deixando somente esta possibilidade para a reprodução. Ocorre de forma idêntica ao testamento da sucessão testamentária, com esse pequeno detalhe de deixar material genético ao invés de bens de outra natureza.

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