A queda do muro de Berlim em 1989 selou não só o fim da Guerra Fria e de um sistema internacional bipolar, como também gerou as mais variadas expectativas e anseios da comunidade internacional e, sobretudo, da sociedade norte-americana, de como os Estados Unidos, agora hegemônicos e líderes incontestes do sistema internacional, agiriam a partir de então. O governo Bush de pai, ainda preso à lógica da guerra bipolar que norteou seus dois primeiros anos de mandato (1989-1991), assistiu, inerte e passivo, ao intenso debate entre as correntes políticas/teóricas norte-americanas sobre o caráter das diretrizes estadunidenses no cenário internacional. Daquele período até hoje, os EUA foram o alvo de diversas teorias de contestação de sua permanência como hegemonia no sistema do século XXI. Completados 20 anos da Nova Ordem Mundial , porém, nenhuma delas pareceu ser suficientemente capaz em prever/compreender a continuidade da Pax Americana , agora em mundo notadamente mais cooperativo, multilateral e interdependente.

Tão logo o muro caiu, iniciaram-se os debates em torno da postura
internacional que os Estados Unidos, única superpotência do sistema internacional, deveriam adotar. Alguns setores pregavam a volta ao isolacionismo, outros viam uma oportunidade para a expansão definitiva da liderança, proposta esta que acabou tendo maior aceitação entre a opinião pública e, conseqüentemente, se tornando prioritária, sobretudo após o lançamento da estratégia de "engajamento e expansão" de Clinton (1993).

Não obstante, pelo mundo, foram inúmeros os teóricos afoitos em prever o futuro das relações internacionais, alguns dos quais inclusive chegando a decretar o fim da História , o fim dos conflitos armados com a universalização do modelo democrático americano, o fim de um mundo polarizado entre potências, entre outras hipóteses.

Mas muitos desses analistas viram suas idéias caírem por terra tão logo começaram a pipocar conflitos de toda ordem, sobretudo étnicos e separatistas em regiões como Bálcãs, Leste Europeu e África Subsaariana. A Nova Ordem Mundial não seria tão tranqüila como imaginado e a política externa norte-americana deveria estar adequada a esses novos desafios.
Pecequilo (2005) aponta que o cenário internacional do pós-Guerra Fria daria início a um período caracterizado por uma política externa que recombinaria alguns valores tradicionais da nação norte-americana e que mesclaria traços de continuidade e mudança. Continuidade da ordem política, administrativa, econômica e militar do pós-Segunda Guerra - a exemplo da manutenção da ONU e OTAN, e mudanças, como a ênfase na promoção dos valores tidos como tipicamente americanos: democracia, livre-comércio e direitos humanos (chegando até a surgir a Doutrina da Intervenção Humanitária ), além do combate às forças transnacionais ameaçadoras da ordem, como terrorismo, narcotráfico, entre outras, obviamente respeitando os limites impostos pelo engajamento seletivo .

Os Estados Unidos estavam, dessa forma, adaptando seu discurso ao novo cenário que se desenhava. O sistema internacional apontava três tendências principais: a multipolaridade, a cooperação e uma maior interdependência, especialmente, comercial. Exemplo claro da primeira tendência é a reforma e ampliação das Organizações Internacionais, com relativo sucesso com a OTAN e a OMC e, em menor medida, com a ONU. Com relação ao segundo item, pode-se apontar a maior disposição do governo democrata em promover o novo diálogo com potências tradicionais, como Europa Ocidental e Rússia e com potências emergentes, representadas pelo BRICs . Por fim, a formação de blocos econômicos, em que cada Estado Pivô procurou se fortalecer via comércio regional. Está aí a justificativa para o esforço do governo Clinton em fortalecer os laços econômicos com a América Latina, via ALCA, e com seus países fronteiriços, via NAFTA, através do discurso do livre-comércio.

Esse discurso internacional mais cooperativo e interdependente dos Estados Unidos, baseado no soft power , todavia, só foi implementado a partir do segundo mandato Clinton (1997/2000). Foi a partir de então que as estratégias democratas engajamento e expansão e do engajamento seletivo assumiram contornos mais nítidos e efetivos para a comunidade internacional.

Clinton começava a assumir uma posição mais assertiva, pró-ativa e de maior envolvimento a partir de 1998, aproximando-se, como sugere Pecequilo (2005), da agenda republicana de política externa. De fato, os EUA, agora, mesmo no multilateralismo, exerciam e ampliavam a liderança dentro de estruturas cooperativas, reservando-se, inclusive, ao direito de serem unilaterais quando julgassem conveniente. Todavia, esse maior engajamento não foi isento de defeitos, além de não apagar os vários problemas acumulados ao longo do primeiro mandato democrata. A demora do governo americano em intervir em questões como as crises nos Bálcãs, em virtude do ressurgimento de conflitos étnicos congelados durante a Guerra Fria, e atritos criados com grades parceiros econômicos e estratégicos, como Rússia e China, foram alguns dos problemas da política internacional norte-americana.

Soma-se a isso a configuração do sistema internacional do Pós-Guerra Fria, notadamente, mais interdependente, com novos e/ou fortalecidos pólos de poder (Japão e China e, em certa medida, emergentes como Brasil e Índia) e com novas ameaças ao poder americano, a exemplo do fundamentalismo islâmico que, não raro, se converte em terrorismo anti-americano. Além disso, também temos um cenário com a formação de blocos econômicos regionais e com o crescente peso de atores não-estatais nas relações internacionais, como as empresas multinacionais e as OIGs, o que gera um campo fértil para a ascensão de teorias sobre o fim ou a decadência do poder americano.

Parag Khanna foi um dos analistas que propuseram a superação da hegemonia estadunidense. Ele discute o declínio do poder americano a partir de seu enfraquecimento relativo frente à União Européia e à China e frente a maior interdependência econômica global. Nas palavras dele, "a interdependência de hoje é uma teia, mas são muitas as aranhas" (KHANNA, 2008), sendo o processo de globalização intensificador da competição estatal, especialmente entre as potências, e acelerador do declínio do poder da América:

É precisamente porque o mundo está encolhendo que a coexistência de múltiplas superpotências prenuncia uma era de competição mais intensa que qualquer outra já vista[...]Acreditou-se, a certa altura, que a globalização fosse sinônimo de americanização; na verdade, ela acelera drasticamente a derrocada da Pax Americana.

Contudo, o que nos parece é que a globalização não diminui, mas sim intensifica o poder dos Estados Unidos. Na medida em que os mercados se tornam mais integrados e o fluxo de mercadorias, serviços e capitais são facilitados, a cultura americana mais facilmente se dissemina. A liberalização do comércio, a diminuição de barreiras tarifárias, o estabelecimento de acordos multilaterais e a formação de blocos econômicos não têm outro efeito senão aquele de potencializar a venda de jeans, facilitar a internacionalização de empresas como Microsoft e McDonald?s, facilitar a venda de filmes hollywoodianos, entre outros. Na verdade, o império americano, utilizando as palavras de Khanna, parece permanecer, só que em cenário diferente e com um discurso renovado, embora contenha elementos tradicionais da política externa dos Estados Unidos.

Além disso, a ascensão e o fortalecimento de Estados estratégicos como China ou da União Européia não tem caráter de contestação. China e UE pretendem crescer e se desenvolver dentro das estruturas político-administrativas já estabelecidas, por exemplo, ONU e OMC, que favorecem a liderança estadunidense. Se os EUA dependem cada vez mais, como aponta o próprio Khanna, de produtos chineses baratos e do dinheiro chinês para comprar os títulos do FED, a China depende igualmente das exportações das ZEEs (Zonas Econômicas Especiais) e dos investimentos estrangeiros provenientes, em sua maior parte, de corporações e de investidores dos EUA.

Isso não implica o fim da Pax Americana, mas exatamente o contrário: a permanência dela em um cenário de maior integração e cooperação. Se antes de 1989, a capacidade dos EUA em vencer as chamadas guerras periféricas "quentes" superava em importância sua capacidade econômica, hoje o que prevalece é a força dos produtos norte-americanos e a ideologia carregada por eles.

A ascensão dos neoconservadores republicanos com a vitória de Bush filho (2001) e a mudança das diretrizes da política externa estadunidense foram a munição que muitos analistas precisavam para decretar definitivamente o fim do império. Os atentados do 11/09 foram, na visão de Pecequilo (2005), a oportunidade para uma ala do partido republicano convencer o Congresso e a opinião pública doméstica a empreender uma política externa unilateral. Política essa que, quando necessário, concebia a idéia de os Estados Unidos agirem sozinhos com ou sem a complacência dos organismos internacionais (como ocorreu na invasão do Iraque em 2003).

Com uma proposta de endurecimento do setor externo e com um discurso de "conservadorismo com compaixão" , retomando as idéias da nação americana de patriotismo, família e religião, o governo Bush lança a Doutrina Preventiva . Além disso, elege o terrorismo o inimigo número um da América - e em suas palavras, do próprio Ocidente - empreende uma ofensiva contra os Estados que ameaçariam seu status quo, o chamado Eixo do Mal (Irã, Iraque e Coréia do Norte) e um combate mais ostensivo às demais forças transnacionais, como o narcotráfico, sobretudo na América.

Oito anos depois e um legado de crise econômica, polarização da opinião pública doméstica, perda de legitimidade e credibilidade nas organizações internacionais, constantemente desrespeitadas, e duas guerras problemáticas no Oriente Médio teriam sido, para muitos, como veremos adiante, o indício de que, agora sim, o sistema internacional superaria a hegemonia americana.

Entre os analistas de relações internacionais que decretaram a superação da hegemonia norte-americana estão Richard Haass e Fareed Zakaria . Enquanto o primeiro fala em mundo sem polaridades de poder (Nonpolarity), o segundo propõe o mundo pós-americano. Haass defende, em largos traços, que a emergência e/ou fortalecimento de atores não estatais, o fortalecimento de potências regionais, como o BRIC, os atentados 11/09, a dificuldade de os Estados Unidos em pressionar o Irã ou a Coréia do Norte em terminar com os respectivos programas nucleares e a globalização seriam fatores responsáveis pelo que ele chama de diluição do poder americano.

Já Zakaria fala em "ascensão do resto", ou seja, daqueles atores não-estatais que adquirem uma crescente importância no cenário internacional, tais como ONGs, partidos políticos, instituições religiosas, corporações multinacionais, entre outras, as quais demandam maiores compromissos e cooperação por parte dos Estados Unidos. Esse processo, entretanto, seria, segundo o autor, lento e ainda daria uma importância fundamental à América.

Todavia, é sabido que a distância entre os EUA e as demais potências - as potências médias, é gigantesca, seja em termos econômicos, em projeção de poder, em ideologia, em arsenal militar, entre outros elementos. O PIB norte-americano é mais de três vezes o PIB da segunda economia do mundo; os EUA estão indiscutivelmente no topo da cadeia de inovação tecnológica; eles possuem as melhores universidades (8 entre as 10 melhores ); as ações mais negociadas do mundo são ações da Dow Jones e da Nasdaq; são os maiores vencedores de Prêmios Nobel; os gastos dos EUA com defesa correspondem a algo em torno de 37% dos gastos mundiais ; os arsenais nucleares dos EUA sozinhos conseguiria destruir o planeta mais de 10 vezes, além do fato de dos EUA partirem quase 65% das informações mundiais . A projeção de poder da América e a força de sua ideologia nem são cogitadas, pois são incomensuráveis.

Enfim, os números e os argumentos para mostrar a força da economia estadunidense e o alcance da ideologia americana são inúmeros e não parecem indicar uma superação da Pax Americana. A assimetria de poder entre os EUA e qualquer outro Estado é enorme. Se o sistema internacional caminha para uma maior interdependência e multilateralismo, esses dois elementos terão que se compatibilizar com os interesses da hegemonia. Não há atualmente nenhum Estado que conteste a hegemonia ou as estruturas criadas por ela. Há, pelo contrário, tentativas de se encaixar nessas estruturas, a exemplo do anseio chinês para entrar na OMC, fato ocorrido em 2001, e o apetite da Rússia em fazer o mesmo. Não podemos nos esquecer que há sim tentativas de reformas dentro dessas instituições, como a pressão brasileira para ampliação do Conselho de Segurança da ONU (CSONU), embora essas propostas só sejam efetivadas se tiverem o aval norte-americano.

E é por tais motivos que o século americano tende a permanecer. Mesmo que haja aumento da presença de atores não estatais no sistema internacional, grande parte deles são de origem americana (ONGs, partidos, agencias de informação, grandes multinacionais, etc) e contribuem para a expansão da ideologia dos EUA.

Os EUA são adeptos de um concerto internacional multilateral desde que esse sistema beneficie seus interesses. Caso isso não ocorra, ele age sozinho. Exemplo claro disso foi o fato de os americanos não terem assinado o tratado que cria o Tribunal Penal Internacional e terem editado ainda o American Services Member?s Protection Act em 2003 .

E fazendo menção novamente à metáfora de Parag Khanna, que pode aqui ser empregada para explicar a dinâmica internacional do poder americano: "A interdependência de hoje é efetivamente uma teia, mas são muitas as aranhas"(KHANNA, 2008). De fato, a interdependência fortaleceu antigas potências médias e o papel regional delas. Entretanto, não podemos nos esquecer de que existe uma "aranha-rainha" que determina o padrão da teia e o modo de configuração desta. As outras aranhas não têm força suficiente para construir a teia sem o consentimento do líder (há uma espécie de vácuo de liderança ).

Dessa forma, o teórico que mais sustenta a nossa posição é Joseph Nye Jr . Como ele afirma, os EUA só estão passando por mais um momento de contestação de sua hegemonia, como acontecera diversas vezes no passado, a exemplo da segunda metade da década de 1970 em meio à crise da Guerra do Vietnã. Além de não possuir adversários diretos, ninguém melhor do que os americanos para manejar a política internacional, haja vista a disponibilidade de recursos, de diversas naturezas, que eles possuem. O processo de contestação da hegemonia não passa de um movimento cíclico, que oscila conforme os acertos e os erros da política internacional estadunidense. Portanto, o século XXI mais se aproxima de um cenário unimultipolar . Ele pode ser sino-americano, russo-americano, nipo-americano ou "BRIC-americano", mas, definitivamente, não deixará de ser americano.

REFERÊNCIAS:
CHALMERS, Johson. As aflições do império. Record: Rio de Janeiro, 2007.
CLINTON, Hillary. Hilary?s Clinton Confirmation Hearing Statement. January, 13. Disponível em: http://www.cfr.org/publication/18214/hillary_clintons_confirmation_hearing_statement.html. Acesso em 20 de abril de 2010.

FUKUYAMA, Francis. The end of history. in: The national interest, 1989