A FACE NEGATIVA DA NORMA CULTA

Talita Santos Menezes[1]

Resenha de

LEITE, Marli Quadros. Preconceito e intolerância na linguagem. São Paulo: Contexto, 2008.

Há tempos que os trabalhos no campo da linguística brasileira têm como uma de suas principais preocupações a descrição e os modos de ensino da norma culta da Língua Portuguesa. Vista como símbolo do bem falar, a norma culta é, geralmente, associada à norma padrão e amplamente defendida como a “variedade linguística de maior prestígio social”, como vem descrita na maioria das gramáticas; Sarmento (2005, p. 18), por exemplo. Nesse sentido, o ensino do Português, de um modo geral, há muito tempo tem se pautado na transmissão das regras subjacentes a essa norma. As gramáticas e os livros didáticos, além de darem continuidade a um comércio editorial, que se diz capaz de oferecer essa “arte do bem falar” aos incapazes de adquiri-la socialmente, em suas atividades linguísticas cotidianas, apenas reforçam a ideia absurda de que a norma culta é a única aceitável e quem não a seguir fielmente ou não souber dominá-la, será excluído do conjunto dos indivíduos que “sabem falar português”.

Essa ideia de supervalorização da norma culta e de sua superioridade sobre as outras variedades passou (quase que) a ser senso comum na sociedade, gerando, assim, uma onda de preconceito e intolerância entre os indivíduos, já que subtende-se que qualquer uso que fuja à norma será considerado “inferior e desprestigiado”. O livro “Preconceito e intolerância na linguagem”, da professora da Universidade de São Paulo (USP), Marli Quadros Leite, publicado pela Editora Contexto, vem tocar nesse problema.

Leite apresenta os resultados de pesquisas realizadas na Universidade de São Paulo e no Laboratório de Estudos sobre a Intolerância – L.E.I. As pesquisas focam-se nos estudos de formas linguísticas e na ocorrência de preconceito e intolerância a tais manifestações. Assim, a obra “Preconceito e intolerância na linguagem” vem tratar do preconceito e intolerância através de análises de discursos veiculados, principalmente pela imprensa escrita.

O livro é composto por quatro capítulos. No primeiro, intitulado “Preconceito e intolerância na linguagem: algumas reflexões”, é feita uma mostra das definições mais adequadas ao exame do preconceito e da intolerância na linguagem.

Em seguida, é apresentado o procedimento metodológico adotado para evidenciar a ideia em questão: análises de gêneros – em sua maior parte – jornalísticos. As análises e seus resultados são apresentados em dois capítulos, intitulados “Vestígios do preconceito linguístico na imprensa” e “A imprensa linguisticamente intolerante”.

A autora ainda trata, no último capítulo, sobre como a educação é afetada pelo preconceito e pela a intolerância na linguagem.

Preconceito, intolerância e seus sentidos

A primeira reflexão trazida por Leite é a de que o preconceito e a intolerância contra a linguagem não é apenas linguístico, mas de outra ordem (social, política, religiosa, racial etc.) (p.14). A autora, baseada nos estudos de Voltaire (1994 [1764]), Dascal (1989), Bobbio (1992) e Rouanet (2003), apresenta conceitos advindos de perspectivas filosóficas que esclarecem e ratificam seus pressupostos.

Em sentido amplo, o preconceito seria a ideia, a opinião, um sentimento (negativo) a respeito de algo ou alguém e a intolerância seria o comportamento, uma reação explícita, contrária a algo ou a alguém.

No que diz respeito ao preconceito, no Dicionário Filosófico de Voltaire (1994 apud LEITE, 2008:20), o termo é definido como “Uma opinião sem julgamento”. Bobbio (1992) defende que é possível que o preconceito redunde numa discriminação, mesmo que não se manifeste discursivamente e no que tange à intolerância, defende que trata-se da incapacidade de o indivíduo aceitar a diversidade. A esse pressuposto, Rouanet (2003 apud LEITE 2008:21) acrescenta a ideia de que “a intolerância pode ser definida como uma atitude de ódio sistemático e de agressividade irracional”. Por outro lado, a tolerância seria o oposto do conceito de intolerância; uma ideia positiva de aceitação da diversidade.

De modo geral, a tolerância é vista no sentido positivo e a intolerância em sentido negativo. Entretanto, vale ressaltar que também é possível conceber a ideia de uma “tolerância negativa”, quando esta baseia-se  na aceitação e conformidade com algo considerado ilícito diante da sociedade, e de uma “intolerância positiva”, quando esta apresenta-se firme e rigorosa com o que mostra-se conivente com o mal.

Leite, então, demonstra como o preconceito e a intolerância apresentam-se nos discursos sociais, voltados principalmente para a linguagem.

O preconceito e a intolerância nos gêneros jornalísticos

Ao analisar alguns gêneros jornalísticos como: entrevistas, cartas de leitores, ensaios, entrevistas e crônicas, veiculados pela imprensa entre os anos de 1990 e 2006, Leite traz à tona “vestígios” de preconceito e intolerância contra a linguagem utilizada por um grupo de falantes de determinada região, contra “erros” cometidos por um grupo de profissionais e contra a performance de determinados indivíduos.

Através das análises feitas pela autora, foi possível perceber o preconceito e a intolerância contra o povo nordestino, sentimento e atitude estes advindos, principalmente, dos habitantes das regiões Sul e Sudeste. Fica implícita a ideia de que os paulistas são os que mais demonstram preconceito e intolerância contra o povo nordestino e esses sentimentos podem ser resultantes de um descontentamento pela “invasão e desordem” causadas pela migração do povo nordestino. Tal incômodo, então, é refletido pela não-aceitação ou repulsa a tudo que esteja ligado ao nordeste, inclusive a linguagem.

Pelas análises que a autora faz, fica evidente que os argumentos daqueles que têm preconceito contra a linguagem do nordestino, baseiam-se na ideia de que trata-se de uma linguagem “errada”, utilizada por pessoas de baixo prestígio social e que “não sabem falar o português”. Esse tipo de pensamento tem – em grande parte – origem na distinção entre norma culta e norma popular, na negação de outras variedades linguísticas e na ignorância desses preconceituosos diante do fato de que a língua é um fenômeno social e, inevitavelmente, variável, portanto, de difícil padronização.

Não existe – ou, pelo menos, não deveria existir o pensamento de  – forma “certa” ou “errada” de falar; de norma “válida” ou “inválida”. O que, na verdade, existe são normas que adequam-se às situações comunicativas estabelecidas entre os indivíduos no cotidiano.

O estudo de Leite revelou ainda como os jornalistas – aqueles que tão facilmente encontram e denunciam “pecados linguísticos” – também são alvo da sociedade, pelo (simples) fato de cometerem os mesmos “erros” dos quais acusam outros indivíduos.

As análises mostram claramente quão intolerantes são os leitores dos jornais. As pessoas exigem que os jornalistas façam uso da norma culta sem nenhum desvio e, quando identificam algum “erro”, o classificam como “imperdoável”. Tal atitude revela o quanto o preconceito e a intolerância linguísticos estão entranhados nas pessoas. Infelizmente, a visão geral – ou pelo menos a que mais prevalece – é a de que “saber português é saber gramática”, pois ela é quem traz as regras normativas, as regras da norma culta. Por causa disso, as principais reclamações dos leitores são a respeito de erros gramaticais considerados ofensivos e alguns desses leitores chegam a denominar os jornalistas que cometem tais erros de “analfabetos”.

A autora traz também muitos exemplos, tanto de preconceito quanto de intolerância, contra a linguagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Embora possua uma competência discursiva, a performance linguística de Lula apresenta algumas “falhas gramaticais” e isso é, geralmente, atribuído a sua pouca formação, sua origem e o constante uso da linguagem popular.

As críticas sobre a linguagem do ex-presidente, como afirma a autora, não são apenas linguísticas, mas de outras ordens: social, cultural e, até mesmo, pessoal. Lula é criticado por fazer uso de uma linguagem popular muito próxima a da maioria de seus eleitores – moradores da periferia – e por usar expressões típicas da região nordeste. Em alguns textos, segundo as análises feitas por Leite, a capacidade intelectual do ex-presidente é questionada quando, implicitamente, afirmam que Lula “jamais saberá usar uma linguagem elevada” (p. 41) e isso gera uma desconfiança quanto a sua credibilidade política – já que a linguagem utilizada por ele não está (ou estava, na época em que possuía o cargo) de acordo com a linguagem esperada para um presidente.

É comum encontrar em matérias jornalísticas comparações entre Lula e seus companheiros de partido ou candidatos da oposição, como Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, e a maioria dessas matérias sempre conclui com a desvantagem de Lula diante dos outros no que diz respeito à educação formal completa. Tudo isso é reflexo da entranhada ideia – anteriormente citada – de que falar corretamente o português é falar única e exclusivamente a norma culta e o desprezo e não-aceitação às outras variedades linguísticas implica necessária e inevitavelmente à desqualificação da própria pessoa.

As normas e a intolerância na escola

As análises dos gêneros feitas por Leite são de grande valia aos estudos sobre preconceito e intolerância contra determinadas variedades linguísticas, mas sua abordagem sobre a ocorrência desses fenômenos na escola é, sem sombra de dúvidas, o que coroa sua obra, visto que além da influência da sociedade em geral, a escola (infelizmente) tem sido a divulgadora e incentivadora de preconceito e intolerância linguísticos.

A insistência da escola em ensinar de forma supervalorizada as regras gramaticais – às vezes, sem levar em consideração as variedades linguísticas trazidas pelos alunos para a sala de aula – cria na mente dos estudantes a ideia de que a norma culta é a que “reina” na sociedade. Isso gera uma atitude corretiva do indivíduo consigo mesmo – num “policiamento linguístico” – e de um indivíduo para com outro – numa posição soberba e acusadora a que subjaz o pensamento: “Você fala errado! Eu estudo e falo certo, logo, eu posso corrigir seu erro”. Essa “correção linguística”, tratada por Leite numa seção do livro sob o título “Caça às bruxas”, mostra-se também quando os conhecedores e defensores da supremacia da norma linguística ensinam aos “incultos” a escrever corretamente anúncios comerciais, placas de identificação, propagandas, etc.

Essa é a face negativa da norma culta; essa falsa superioridade e desprezo sobre as outras variedades linguísticas, o que infelizmente gera o preconceito e a intolerância não apenas contra a linguagem de quem faz uso de outras normas, mas contra a própria pessoa.

O uso e ensino da norma culta são, sem dúvida, essenciais. Ela deve ter sim seu lugar na sociedade e na escola, de forma que todos possam ter a capacidade de comportar-se linguisticamente de forma adequada em cada situação comunicativa. O que se torna necessário, como conclui Leite, é que as pessoas não julguem umas as outras pela linguagem que fazem uso, mas que haja o respeito, a tolerância, a aceitação e a valorização de todas as normas linguísticas, pois todas igualmente são válidas e essenciais à vida da comunidade linguística. Espera-se, então, a continuidade do estudo para que o conhecimento dos resultados gere na sociedade um novo posicionamento com relação à linguagem e às normas.



[1] Discente de Pós-Graduação em Letras na Universidade Federal de Sergipe.