A explosão sígnica: o signo como ícone do caos na poesia deÁlvaro de Campos

À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricasda fábrica

Tenho febre e escrevo.

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,

Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

ODE TRIUNFAL

Da poética racionalista de Fernando Pessoa-um sol refletido num prisma-, cuja despersonalização culminou nos raios heteronímicos, vem à baila Álvaro de Campos, poeta imergido no caos da modernidade do século XX, o qual representa o "eu" que se quebra nas contradições de um cosmo mecanizado, veloz e elétrico:o sujeitoque sente osruídos da nova era perpassar a consciência; sobretudo, o sujeito que se estilhaça procurando o amálgama de todas as formas de sentir talhadas no verbum poético a fim de se conhecer:

Multipliquei-me, para me sentir.

Para me sentir, precisei sentir tudo,

Transbordei, não fiz senão extravasar-me.

(Ode Triunfal)

E, ao cantar em suas odes esse admirávelmundo novo, traz uma nova percepção de beleza: a das fábricas e do mundo de concreto das cidades; sob os quais, até então, não se erigiam as imagens poéticas. O quadro dobelo míticodo paraíso adâmico e natural dá lugar à paisagemdo mito da máquinae da paisagem caótica dametrópole. É conveniente falar que engenhosamente Campos engendra a poesia com a vertigem desse caos. Disso surge, fazendo uma analogia, uma equação: Mundo caótico= "eu" disperso no caos = linguagem vertiginosa do caos.

No que tange a linguagem vertiginosa e prismática de Campos, ou seja, a materialização do sentido no signo, envereda-se este trabalho. O ponto nodal é a reflexão sobre a poesia icônica desse heterônimo pessoano, um verdadeiro construtor da palavra palpável.

1-O Lapidário da "poesis"icônica

"A sensação incorporada no signo e para o signo feito objeto e fonte de sensações."

  Fernando Segolin (1992)

De olhar singular, agressivo, inadaptado, acreditava na palavra como caminho de enlace entre as sensações e os objetos. Todavia, Segundo Fernando Segolin, essassensações em Campos são independentes do objeto que as provoca, enquanto presença na consciência, enquanto eco subjetivo a repercutir e multiplicar-se, obedecendo a diferentes modulações do sujeito. Compreende-se, por essa via, que suapena arquitetava a prioria dispersão do ser,a ponto de tentar sentir tudo de todas as maneiras. A guisa de exemplo, perceba a sensação de tédio eabsurda monotonia do mundo com a imagem de uma máquina de datilografia na qual transparece no "eu" um grito de náuseacontra a regularidade das coisas:

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,

O tique-taque estalado das máquinas de escrever.

Que náusea da vida!

Que abjeção esta regularidade.

(Datilografia)

Trata-se, pois, de um poeta-lapidário da poesis icônica: lapida em sua poesia a sensação do "eu" diante dos objetos em ritmos dissonantes, a angústia existencial, a inquietação conjugada com a agressividade; e, de fato, essas nuanças transparecem no corpus poético, ou seja, materializam-se no poema, de modo que os"media" expressivos tornam-se ícone das sensações:

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!

Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!

Em fúria fora e dentro de mim,

Por todos os meus nervos dissecados por fora,

Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!

Ode Triunfal.

Do excerto emerge uma analogia: as engrenagens, iconizadas na onomatopéia(r-r-r-r-r-r), e os nervos do "eu ". A sensação de fúria analogicamente aparece com a imagem das engrenagens e as exclamações colaboram para um ritmo de tédio. Visualiza-se, a partir desses matizes, a explosão da emoção no próprio corpo sígnico: a explosão sígnica. Por conseguinte, é lícito ler esse poema como ícone (acepção de Pierce), poisocorre uma relação necessária entre a parte que expressa, formalmente, o conteúdo (=significante) e o conteúdo expressado (= significado).

Desse modo, pode-se dizer que a explosão das sensações em Campos tem vida nos signos; a distância entre significado e significante é transgredida. Conforme Fernando Segolin (1992), Álvaro de Campos desvia-se do uso do signo apenas como veículo, mero substituto de um referente com o qual nada tem de comum, para transformá-lo em sensação.

Nesse caso, a poesia de Álvaro de Campos pode ser lida como uma poesia artificial, à luz da teoria de Max Bense, visto que compreende um labor artesanal com os signos: a linguagem é forçada exaustivamente a representar e, sem dúvida, a tornar-se corpo do mundo em desordem, de modo que a sintaxe, de fato, aparece em fragmentoslivres de hierarquização; assim o é por tratar-se de uma parataxe: termos ligados por coodernação. No excerto a seguir do poema Lisbon Revisited, nota-se isso pelo fato dos versos não estarem concatenadospor subordinação, pois o mundo na verdade a ser iconizado é um mundo de contrastes semlógica de ligação. Na consciência do eu lírico, a sensação éde opressão, o que resulta na materialização do caos nos signos desse rio no qual a estética e a moralafogamogrito do ser.

Não: Não quero nada,

Já disse que quero nada.

Não venham com conclusões!

A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!

Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!

2 – Ode Marítima: a sensaçãodo "eu" nomar

Em Ode marítima, Campos confecciona um eu lírico que sente a sensação da vida em um cais, cuja consciência vai fazendo umelo analógico entre a vida marítima e a vida interior:

Toda a vida marítima ! tudo na vida marítima!

Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina

(...)

A extensãomais humana, mais salpicada, do Atlântico!

O índico, o mais misterioso dos oceanostodos!

O Mediterrâneo, doce, sem mistério nenhum, um mar para bater.

Ponto importante de ressaltar é que o olhar, a imaginação, ou seja, a sensação é analogicamente um "volante" que vai direcionando a percepção dessa vida marítima:

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,

E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

2.1 O ritmo dissonante entre o presente e o Passado iconizado.

Em ode marítima, à proporção que o "volante" interior do eu líricovai mudando o seu olhar, o ritmo se altera; o ritmo se amplifica gerando um enunciado agressivo. No início do poema observa um paquete, signo do mundo moderno, no mar, o indefinido. A pontuação, a priori, é de calmaria iconizando a manhã.

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de verão,

Olho por outro lado da barra, olho por indefinido,

Olho e contenta-me ver,

Pequeno ver, negro e claro, um paquete entrando.

Mais adiante, porém, a linguagem mostra a vertigem da sensação do "eu" num mundo passado das grandes navegações, representado, sobretudo pela figura dos veleiros:

Eu o engenheiro, euo civilizado, eu o educado no estrangeiro,

Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,

De não saber doutra vida marítimaque antiga vida dos mares!

Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,

O Puro longe, liberto do peso do Atual...

E, ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,

Esses mares, maiores, porque se navega mais devagar,

Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles.

Com uma sintaxe coordenada, o eu lírico condensa na imagem dos veleiros e barcos de madeira um mundo mais devagar,longe da rotina veloz do atual, cuja condensação se dá na imagem dos navios carvoeiros e dos paquetes. A explosão da sensação do passado no "eu"é sentida mais a frente, onde ocorre uma explosão sígnica,pois o ritmo dos versos aumenta: a pontuaçãosente a vertigem da emoção, o uso da exclamação é mais constante. Com isso, o "eu" abre as cortinasdo passado no seu interior, dialoga com a "distancia Absoluta" e aumenta "giro vivo do volante".

E com um ruído cego de arruaça acentua-se

O giro vivo do volante.

Nesse momento, o "eu" quebra-se na sensação da fúria do mar mitológico do passado, deixa se levar pelo ventoinconsciente longe da realidade cruel e individual; mostra-se impaciente diante da vida. Envereda-se para a "Distância absoluta",para o encontro com o mistério longe do século das definições e mecanizado, no qual não há mais espaço grandioso a ser percorrido; o que sobraé a viagem pelo inconsciente e pela memória.

Ah, seja como for, seja por onde for, partir!

Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar,

Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata,

Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,

Levado, como a poeira, p'los ventos, p`los vendavais!

Ir, ir, ir, ir de vez!

Percebe-se que o ritmo aumenta, os versos sem pontos finais conferem uma maior velocidade rítmica junto à reiteraçãodo verbo ir e das preposições, cuja função é abrir o leque de lugares que o "eu" quer ir. Dessa maneira, pode se dizer que o significado da explosão interioracha-se condensado nas figuras sonoras, no falar de Ezra Pound, na melopéia. Encontra-se também, nesses versos,a liberdade sintática que rompe com qualquertipo de lógica,a parataxe: vestígio da sensação interior do eu lírico.

A experimentação é outro ponto digno de nota nessa composição de louvor ao mar. Veja isso na materialização da emoção da vida marítima do passado.

 

EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!

EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!

EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!

 

Na última parte o "volante" da sensação pára e volta à atualidade , a imagem do navio a vapor e do cais moderno surge aos olhos singulares do eu lírico. Ergue-se no eu a melancolia do mundo. Isso se materializa em mais uma figura sonora:

 

Com um ligeiro estremecimento,

(T-t—t---t-----t...)

O volante dentro de mim pára.

 

 

3- Últimas palavras

Ler Álvarode Campos é deliciar-se nas sensações transmutadas nos signos. É observar que a linguagem pode ser rompida com a tradição, que a ver tal qual um todo regular. Esse heterônimo de Fernando Pessoa fez experimentações com as palavras,engendrando um corpolingüístico dissonante propício às irregularidades do ser, pois o cerne dos procedimentos é materializar o significado dentrodos próprios signos.