A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL O Direito Penal é um instrumento de proteção a bens jurídicos de grande importância social. Consiste num órgão controlador e fiscalizador das relações sociais, desta forma deve acompanhar os anseios das populações que variam constantemente, tendo em vista a complexidade e a dinâmica dos homens. Sendo assim, uma vez que aparecem novos bens jurídicos a serem tutelados, os quais acompanham o desenvolvimento e as mudanças sociais, surge a necessidade de alterações daquele instrumento para que a tutela estatal seja suficiente à efetivar proteção dos direitos humanos resguardados. Para tanto, o ordenamento jurídico penal tem o feito "com a introdução de normas penais novas com o intuito de promover sua efetiva aplicação com toda firmeza, isto é, verificam-se processos que conduzem a normas penais novas para serem aplicadas, ou se verifica o endurecimento das penas para normas já existentes" . Trata-se do punitivismo para acompanhar o avanço expansionista. Em poucas palavras de Bitencourt resume o que será tratado neste capítulo: A violência indiscriminada está nas ruas, nos lares, nas praças, nas praias e também no campo. Urge que se busquem meios efetivos de controlá-la a qualquer preço. E para ganhar publicidade fala-se em criminalidade organizada ? delinqüência econômica, crimes ambientais, crimes contra a ordem tributária, crimes de informática, comércio exterior, contrabando de armas, tráfico internacional de drogas, criminalidade dos bancos internacionais -, enfim, crimes de colarinho branco. Essa é, em última análise, a criminalidade moderna que exige um novo arsenal instrumental para combatê-la, justificando-se, sustentam alguns, inclusive o abando de direitos fundamentais, que representam históricas conquistas do Direito Penal ao longo dos séculos. I- Causas geradoras da Expansão Por ser um instituto bastante antigo, o Direito Penal já passou por muitas mudanças para ser compatível com os anseios das sociedades que tutela. São diversos os motivos que geraram essas mudanças, tais como ocorrência de guerras, mudanças nas formas de governos, alterações de sistemas econômicos, etc. E para, ora, se verificar se seria possível o implemento de um Direito Penal mais rigoroso, é necessário ater-se ao contexto atual de mudanças sofridas pelo instituto. Com a Revolução Industrial, houve muitas mudanças na estrutura social predominante. As sociedades, que antes eram praticamente rurais, migraram para as cidades e passaram a realizar atividades laborais voltadas para a produção. Neste momento, também houve a evolução dos meios tecnológicos e de comunicações, que ampliou a competitividade, o que levou diversos indivíduos à marginalidade e à delinqüência, especialmente a patrimonial. Com isto, a sociedade pós-industrial passou a sofrer de uma enorme insegurança, uma vez que as classes marginalizadas passaram a ser vistas como fontes de riscos pessoais e patrimoniais. Ainda, os avanços tecnológicos contribuíram para aumentar o medo das "sociedades de riscos", já que atreladas a eles surgiram novas formas delituosas, realizadas por meio da informática e da Internet. Também não se deve deixar de mencionar os resultados negativos dos excessos praticados pelos meios de telecomunicação, os quais fomentaram as incertezas quanto aos reais riscos que ameaçavam os indivíduos, por meio da divulgação de notícias com demasiado sensacionalismo. Assim, repercutia uma idéia maior de perigos que os realmente existentes, causando fortes dúvidas sobre qual informação realmente correspondia com a realidade. A imprensa, notadamente a sensacionalista, figura como parte integrante das agências penais, etiquetando os criminosos e criando a sensação de alarde social, de total insegurança. Notícias de âmbito regional são ?nacionalizadas? de maneira mítica, como forma de legitimar toda a ação policialesca estatal e inquinar o sentimento de revolta contra os ?criminosos?. Como conseqüência, tais ações reproduziriam a crença no sistema penal como único meio eficaz de combate à criminalidade, logrando, entre outros efeitos, a criação de demandas às agências internacionais de controle, a deterioração dos valores ligados aos direitos humanos e suas garantias e a promoção de fratura artificial da sociedade (bem versus mal). Assim foram os movimentos de Lei e Ordem, que remontam suas origens à década de 60, como meios de combate à contracultura e reivindicação dos princípios basilares éticos, morais e cristãos da sociedade, apontando, novamente o crime como patologia social e o criminoso como o causador desta. Neste momento, houve o implemento de um Direito Penal Simbólico, que procurava dar uma satisfação à sociedade quando os índices de criminalidade aumentam. Os movimentos de Lei e Ordem eram opostos ao abolicionismo penal, porquanto estimulavam uma maior severidade das penas, bem como defendiam a essencialidade delas para o funcionamento social. E, para que fosse possível reprimir violentamente as condutas criminosas, o Estado utilizou-se da mídia como instrumento de legitimação de suas ações, inculcando no senso comum a idéia de perigo constante e iminente, que só poderia ser afastado pela efetiva ação estatal, o que legitimou a ?flexibilização? dos direitos fundamentais e o recrudescimento do sistema penal material. Assim, o Direito Penal de ultima ratio ganhou novos contornos, tornando-se extremamente simbólico e, quiçá, de prima ratio. Acerca do tema, pontifica Bitencourt que todo esse estardalhaço na mídia e nos meios políticos serve apenas como ?discurso legitimador? do abandono progressivo das garantias fundamentais do direito penal da culpabilidade, com a desproteção de bens jurídicos individuais determinados, a renúncia dos princípios da proporcionalidade, da presunção da inocência, do devido processo legal etc., e a adoção da responsabilidade objetiva, de crimes de perigo abstrato, [...]. Na linha de ?lei e ordem?, sustentando-se a validade de um Direito Penal Funcional, adota-se um moderno utilitarismo penal, isto é, um utilitarismo dividido, parcial, que visa somente à ?máxima utilidade da minoria?, expondo-se, conseqüentemente, às tentações de autolegitimação e a retrocessos autoritários, bem ao gosto de um Direito Penal máximo, cujos fins justificam os meios e a sanção, como afirma Ferrajoli, deixa de ser ?pena? e passa a ser ?taxa?. No Brasil, o movimento repercutiu por meio do Golpe Militar de 1964, cuja função era um controle social voltado para eliminação do crime através de agências repressivas, em virtude da ideologia da Segurança Nacional, que, pela visão bifacetada da Guerra Fria forçava pelo Estado de Exceção. Ainda, o aumento da velocidade dos meios tecnológicos diminuiu as distâncias físicas presentes entre diferentes Estados, o que viabilizou uma maior integração entre povos e culturas, e trouxe o processo da Globalização econômica. E, como conseqüência, foram eliminadas as barreiras alfandegárias, o que permitiu um trânsito mais efetivo de pessoas, capitais, serviços e mercadorias. Junto a essas mudanças, também surgiram novas formas de criminalidade, dentre as quais se destaca a econômica que, num aspecto geral, tem como finalidade a obtenção de lucros, apesar de também colocar em risco outros bens juridicamente tutelados. E a esta modalidade delitiva tem-se atribuído os maiores resultados de danos causados à sociedade. Assim, "faz tempo que a investigação criminológica já demonstrou que a criminalidade econômica, objetivamente, supera a criminalidade tradicional contra o patrimônio, tanto no grau de lesividade social como na produção de danos materiais e imateriais (...)" . Dentre os novos delitos também se destaca a modalidade conhecida por macrocriminalidade, que é representada por crimes como o terrorismo, o narcotráfico ou a criminalidade organizada, esta última sendo especialmente voltada para o tráfico de moedas, de armas, de pessoas para prostituição ou de crianças para adoção, além de outros legalmente previstos pelo ordenamento. Ainda, as formas contemporâneas de criminalidade podem ser chamadas de criminalidade organizada, criminalidade internacional ou ainda, criminalidade dos poderosos, sendo que esta última denominação advém do fato de que tais crimes são cometidos por pessoas favorecidas social e economicamente, e possuidoras de elevado status social. Tudo isso torna evidente a clara mudança quanto aos estereótipos dos autores modernos, já que, antes, os criminosos eram predominantemente ligados aos delitos patrimoniais (roubo, furto, etc.) e pertenciam às classes economicamente desfavorecidas, bem como possuíam um grau de instrução bastante inferior e não tinham especificação para atividade laboral. Entretanto, hoje os delitos de ordem econômica são praticados pelas classes favorecidas, dentro de sua própria esfera profissional. Outro importante fator que fomentou a criminalidade neste contexto histórico foram os movimentos de imigração interestatais, que ainda hoje ocorrem com grande freqüência, principalmente nas nações européias. Ocorre que, os estrangeiros que mudam de seus países com objetivo de crescimento econômico, influenciados pelo sistema capitalista, sofrem com as diferenças culturais existentes entre seu país de origem e o lugar onde estabelecem seu novo domicílio. E ainda que, a similaridade das formas de vida e de costumes seja uma evidente característica da globalização, os países ainda possuem aspectos e crenças peculiares, aos quais os estrangeiros se apegam e sofrem ao terem que se desvincularem delas para melhor se adaptarem ao seu novo habitat. Tem-se ainda que grande parte dos países desenvolvidos não reconhecem os estrangeiros que vão tem busca de melhores condições de vida. Os imigrantes são tratados de forma desigual, muitos nem são reconhecidos como cidadãos, além de sofrerem uma forte discriminação social. Nesse sentido, leia-se: As sociedades pós- industriais, com efeito, tendem a integração supranacional, mas se atomizam em seu interior; sofrem um processo crescente de desvertebração. Por outro lado, as formas de vida são cada vez mais homogêneas: mas existem sérios indícios de que, em tensão com o anterior, os grupos humanos tendem a agarrar-se a certos elementos culturais. A tensão entre integração e atomização, homogeneização e diversidade ou multiculturalidade é desde logo criminógena: produz violência. Finalmente, os fatores que modificaram o perfil das sociedades, assim como desencadearam novas formas de criminalidade, também fizeram com que surgissem novos grupos de marginais. Os criminosos modernos praticam crimes com habitualidade e profissionalidade, o que tem gerado uma insegurança constante entre os cidadãos. A freqüência com que eles atuam os traz uma instabilidade social permanente, tendo em vista que, assim como um réu reincide, a vítima não está ilesa após uma agressão. Logo, aqueles que sofrem danos por atos ilícitos não têm garantias de que ficaram livres de os sofrerem novamente. Essa insegurança foi fator determinante para que repercutisse o ideal social pela obtenção de um meio eficaz para garantir a volta da segurança, para que pudessem se sentir livres ou ao menos mais protegidos contra ameaças a sua vida e a seu patrimônio. Para tanto as sociedades se apóiam no poder de controle do Estado, com a crença de que este órgão soberano possa conter os riscos que as assombram. É nesse sentido que se pode falar do papel simbólico exercido pelo Direito Penal. II- O Direito Penal Simbólico e a volta do Punitivismo O Direito Penal tem sido usado pelas sociedades como aparato para que se sintam mais seguras contra o aumento da criminalidade e das condutas consideradas ofensivas à sociedade. Esta, fortemente influenciada pela mídia, defende a atuação máxima desse ramo do Direito, visando não apenas a garantia de segurança, como também a aplicação de punições para satisfazer seu ideal de vingança contra crimes cometidos. Para isto, o poder punitivo tem seguido os seguintes caminhos: ou aumenta as punições a crimes já previstos pelo ordenamento jurídico (como ocorre em muitos países no combate dos delitos ligados ao tráfico de entorpecentes) ou o legislador tipifica novas formas de delitos, antes não juridicamente condenáveis (como condutas de mera comunicação, tais quais os delitos que instigam o ódio racial). Num geral, ocorre a ampliação da punição, ou seja, o Direito Penal Simbólico tem se utilizado do punitivismo para alcançar seus fins. Nesta esteira de raciocínio é que se manifesta Manuel Cancio Meliá, acerca do punitivismo no atual contexto: Neste sentido, se parece evidente, no que se refere a realidade do Direito positivo, que a tendência atual do legislador é a de reagir com <> dentro de uma gama de setores a serem regulados, no marco da <> contra a criminalidade, isto é, com um incremento das penas previstas. Um exemplo, tomado do Código penal espanhol são as infrações relativas ao tráfico de drogas ou entorpecentes e substâncias psicotrópicas: a regulamentação contida no texto de 1995 duplica a pena prevista na regulação anterior, de modo que a venda de uma dose de cocaína _ considerada uma substância que produz <>, ensejando a aplicação de um tipo qualificado ? supõe uma pena de três a nove anos de privação de liberdade (frente à, aproximadamente, um a quatro anos do Código anterior), potencialmente superior, por exemplo, à pena de homicídio culposo grave (um a quatro anos)(...) Por causa disso, para Meliá, o Direito Penal tem se tornado cada vez mais rígido, e afirma ainda que: a carga genética do punitivismo (a idéia do incremento da pena como único instrumento de controle da criminalidade) se recombina com a do Direito Penal simbólico (a tipificação penal como mecanismo de criação de identidade social) dando lugar ao código do Direito penal do inimigo. Ocorre que, o Direito Penal tem se ampliado gradativamente para tutelar situações que antes não eram amparadas pelo Direito (administratização) ou para tornar as punições mais severas. Em conseqüência disso, o princípio da ultima ratio, que determina a intervenção apenas subsidiária do direito, vem sendo mitigado, como já ocorreu em épocas anteriores (movimentos de Lei e Ordem). III- A Administrativização do Direito Penal O Direito Penal desempenha sua proteção quando se trata de conduta que possam vir a causar risco concreto e relevante em si mesmo, praticadas por sujeito determinado, sobre o qual incidirá a penalidade prevista. Logo, para aplicabilidade do instituto penal é necessário que seja possível visualizar a lesividade da conduta do agente no caso concreto. Enquanto que, o Direito Administrativo é o ramo do Direito sancionador de condutas ligadas à perturbação do modelo de gestão estatal, que independe de comprovação de lesividade. Não obstante, o Direito Penal das sociedades modernas, passou a sancionar delitos marcados pela repetição e pela acumulação e não pela lesividade, o que era feito, tradicionalmente, pelo direito administrativo. Com isso, o Direito Penal tem se convertido em "Direito de gestão ordinária de grandes problemas sociais" , fator conhecido por administratização do Direito Penal. Nesse sentido são as palavras de Jesús-Maria Silva Sánchez: De fato, essa orientação à proteção de contextos cada vez mais genéricos (no espaço e no tempo) da fruição dos bens jurídicos clássicos leva o Direito Penal a relacionar-se com fenômenos de dimensões estruturais, globais ou sistêmicas, no que as aportações individuais, autonomamente contempladas, são, ao contrário, de "intensidade baixa". Com isso, tem-se que produzido certamente a culminação do processo: o Direito Penal, reagia a posteriori contra um fato lesivo individualmente delimitado (quanto ao sujeito ativo e ao passivo), se converte em um direito de gestão (punitiva) de riscos gerais e, nessa medida, está "administrativizado". Como já mencionado, a expansão das modalidades delitivas ligadas ao aspecto econômico e as aspirações da nova sociedade (pós-industrial) foram fatores que modificaram o foco de atuação do Direito Penal. Esse, que antes atuava para conter ilícitos de lesão a bens individuais, tais como: o homicídio, o furto, a lesão corporal, passou a direcionar sua tutela, também, aos crimes de ordem econômica, os quais podem atingir vários sujeitos, inclusive o Estado, pode-se dizê-los de "delitos de perigo (presumido) para bens supra individuais". Trata-se, portanto, de crimes de perigo abstrato, fato que vem do funcionalismo penal, assim explica Bitencourt: Nessa linha de construção, começa-se a sustentar, abertamente a necessidade de uma responsabilidade objetiva, com o abandono efetivo da responsabilidade subjetiva e individual. Essa nova orientação justificar-se-ia pela necessidade de um Direito Penal funcional reclamado pelas transformações sociais: abandono de garantias dogmáticas e aumento da capacidade funcional no combate à "criminalidade moderna", uma mudança semântico-dogmática: "perigo" em vez de "dano"; "risco" em vez de ofensa efetiva a um bem jurídico; "abstrato" em vez de concreto; "tipo aberto" em vez de fechado; "bem jurídico coletivo" em vez de individual, etc. Assim sendo, com a expansão, rompe-se com o paradigma da proteção aos bens individuais para dar azo à tutela de interesses difusos, tais como; economia, meio ambiente. Sendo que, este último passou a figurar entre os bens pessoais de máximo valor após a Revolução Industrial e será aqui usado como exemplo para embasar como certos direitos tornam-se essenciais conforme o contexto em que se apresentam. Ocorre que com o aumento da produtividade, também houve um aumento do uso dos bens naturais, tendo em vista que a natureza é a fonte de matéria-prima dos produtos industrializados e comercializados. Mediante a percepção da degradação do meio ambiente, instaurou-se entre estudiosos e governantes uma séria preocupação, especialmente a partir da década de 70, em que o assunto foi levado à discussão entre governantes de diversas nações. Desta discussão, a partir do raciocínio lógico de que a natureza tende a se deteriorar por completo, ficou combinado que o deveria ser feito era desenvolver meios protetivos com o objetivo de adiar este processo. Assim sendo, as propostas foram as voltadas à preservação do meio ambiente. Nessa senda é que se atribuiu ao poder do Estado, em específico ao Direito penal, medidas repressivas capazes de garantir o "desenvolvimento sustentável", que promova o desenvolvimento econômico, sem que se deixe de levar em consideração a necessidade que as gerações futuras também terão de usá-lo para sua sobrevivência. Da mesma forma, o Direito penal moderno tem oferecido tutela contra os crimes de ordem tributária, nos casos de fraude; de ordem econômica, como os de crimes de lavagem de dinheiro; os ligados ao tráfico de entorpecentes, que não sejam capazes de lesionar a saúde pública por ser de pequena quantidade (idéia do pequeno traficante) e ainda, de um tipo mais recente de conduta considerada delitiva pelo consumo de álcool acima do nível permitido para guiar veículo automotor, conforme prevê a Lei nº 11705 de 2008, publicamente conhecida por Lei Seca. Os delitos cometidos contra os bens supra individuais, ora tutelados pelo instituto penal, estão entre os chamados "delitos de acumulação". Esses são descritos por condutas individuais que por si só não são capazes de lesionar o bem jurídico tutelado, somente podendo fazê-lo se a elas forem acumuladas outras igualmente lesivas, porém, ainda assim, devem ser punidos. Isso evidencia o aumento da atuação do Direito Penal, que passou a sancionar, também, atos que não geram a lesividade ao bem jurídico protegido. Nesse diapasão, é de grande valia discorrer sobre princípio da lesividade ou ofensividade, delineado por PALLAZZO, nos seguintes termos: Em nível legislativo, o princípio da lesividade (ou ofensividade), enquanto dotado de natureza constitucional, deve impedir o legislador de configurar tipos penais que já hajam sido construídos, in abstracto, como fatores indiferentes e preexistentes à norma. Do ponto de vista, pois, do calor e dos interesses sociais, já foram consagrados como inofensivos. Em nível jurisdicional-aplicativo, a integral atuação do princípio da lesividade deve comportar, para o juiz, o dever de excluir a subsistência do crime quando o fato, no mais, em tudo se apresenta na conformidade do tipo, mas, ainda assim, é inofensivo ao bem jurídico específico tutelado pela norma. A exigência da lesividade ao bem jurídico penalmente tutelado, consubstanciada na efetiva lesão ou no perigo concreto ou idôneo de dano ao interesse jurídico, é própria de um Direito Penal decorrente do Estado Democrático de Direito. Uma vez que, visa restringir ao máximo o poder punitivo estatal, reconduzindo o Direito Penal a sua verdadeira função, a de exclusiva proteção dos bens jurídicos mais importantes da vida em coletividade. Esse foi o entendimento do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, que ao julgar apelação referente ao delito de direção perigosa, decidiu: EMENTA: EMBARGOS DECLARATÓRIOS - ARTIGO 32 DA LCP - REVOGAÇÃO PELO ARTIGO 309 DO CTB - INCONSTITUCIONALIDADE DAS INFRAÇÕES DE PERIGO ABSTRATO MERAMENTE FORMAIS - ART. 307 DO CP - CONDUTA QUE NÃO TIPIFICA A INFRAÇÃO - INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO, OBSCURIDADE, AMBIGÜIDADE OU CONTRADIÇÃO - EMBARGOS REJEITADOS. 1 - O artigo 32 da LCP foi revogado com a edição e vigência do artigo 309 do CTB, que tratou da infração de forma distinta, exigindo para a sua configuração a existência de perigo concreto ou idôneo, consubstanciado na locução "gerando perigo de dano". 2 - É impossível considerar vigente o artigo 32 da LCP para a punição tão-somente da situação de direção sem habilitação, mesmo que inexistente perigo concreto ou idôneo para a incolumidade pública ou privada, porquanto a punibilidade de tal fato se equipararia ao sancionamento de simples desobediência a preceito legal, em clara ofensa ao princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, pilar do Direito Penal em um Estado Democrático de Direito, que impõe como função primordial do Direito Penal a tutela dos mais relevantes bens jurídicos individuais e coletivos, exigindo que para tanto exista a ofensividade capaz de ensejar a intervenção penal (nullum crimen sine iniuria). 3 - "A definição de crime deve ser dada pela lei. E nossa lei (Código Penal, art. 13) estabeleceu que não há crime sem resultado, que é lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico. Entendido esse resultado em sentido material (consoante a doutrina do bem jurídico), é sempre necessária a comprovação da iniuria (da lesão ou potencialidade lesiva). A presunção legal dessa lesão ou do perigo de lesão, nesse diapasão, viola o princípio da legalidade, e, em conseqüência, a Constituição, que elevou tal princípio à categoria de norma constitucional". [...] Assim, o princípio da lesividade serve como base para diversas críticas doutrinárias. Para os estudiosos, já que se trata de ilícito que não produz riscos relevantes, não há que se falar em ofensividade da conduta, necessária para aplicação de pena. Eles defendem que muitas das sanções impostas, resultantes da ampliação do Direito Penal, deveriam, na verdade, ser reconduzidas à esfera punitiva do Direito Administrativo. Em síntese, para eles, a administrativização do Direito Penal pode provocar o esquecimento de sua função precípua, que consiste na proteção somente dos bens jurídicos indispensáveis para o desenvolvimento dos indivíduos e da sociedade. O motivo é que eles posicionam-se a favor de um Direito Penal Mínimo e que respeite as garantias individuais No entanto, em que pese a proposta dos academicistas de "devolução" do "novo" Direito Penal para o Administrativo, dificuldades não podem deixar de ser observadas, uma vez que a opção político-jurídica pelo Direito Penal tem gerado vantagens relevantes quando se visumbra a sensação da segurança dada pelo Estado à população. Ainda acerca dessa discussão, Winfried Hassemer elaborou a proposta do Direito de intervenção, que consiste na manutenção no âmbito do Direito Penal somente de crimes lesivos aos bens jurídicos individuais e/ou que causem perigo concreto. Os demais delitos, de índole difusa ou coletiva, e causadores de perigo abstrato, por serem apenados de maneira mais branda, seriam regulados por um sistema jurídico diverso. Tendo garantias materiais e processuais mais flexíveis, possibilitando um tratamento mais célere e amplo dessas questões, sob pena de tornar o Direito Penal inócuo e simbólico. Tal proposta apresenta semelhança, em alguns pontos, com a segunda velocidade de expansão proposta por Silva Sanchéz, que será vista adiante. Dentre os vários pontos existentes na expansão do Direito Penal material e processual e, em especial, inerente a este processo da administrativização, um ponto que merece relevância é o da atuação preventiva do Estado, que será exposto no subtópico abaixo. III-1. Neutralização no Direito Penal A idéia de neutralização deixou de ser usada como um fim do Direito Penal no último meio século, pela sua vinculação com o positivismo criminológico. No entanto, os Estados Unidos nunca deixou de focar suas discussões político-criminais sobre esta medida administrativa do Direito Penal. E, atualmente, a política criminal estadunidense busca a segregação de pessoas que possam significar riscos à sociedade. Essa medida tem estado relacionada aos crimes de terrorismo, praticados por autores guiados por fundamentos étnico-religiosos. A neutralização tem encontrado uma grande sintonia com a evolução ideológica da política criminal das sociedades modernas, que está ligada à "elevadíssima sensibilidade ao risco e a obsessão pela segurança que mostram amplos grupos sociais" . O Estado passou a atuar como "Estado vigilante" ou "Estado da prevenção" e o Direito Penal, por meio de sua administrativização, tem agido com prevenção cognitiva para neutralizar delitos, evitando a ocorrência de outros riscos. Hoje, o maior número de delitos que atingem a sociedade são praticados por um pequeno número de indivíduos, que os fazem com habitualidade e profissionalidade. O que estudos mostram é que a segregação dos criminosos reduziria os danos sociais, pois além do efeito coativo, a pena também produz um resultado empírico, que consiste no afastamento do indivíduo da coletividade. E, enquanto estiver preso, ou seja, sob a custódia do Estado, o criminoso ficará impedido de praticar novos delitos. Ademais, a medida ainda poderia servir para a diminuição de gastos do Estado, visto que seriam reduzidos os gastos com segurança, num aspecto geral. Nesse sentido, leia-se: A premissa maior da teoria de neutralização seletiva é a de que é possível identificar um número relativamente pequeno de delinqüentes (high risk offenders), concernente aos quais cabe determinar que têm sido responsáveis pela maior parte dos fatos delitivos e predizer, a partis de critérios estatísticos, que eles seguirão fazendo o mesmo. Desse modo, se entende que a neutralização ou incapacitação de tais delinqüentes ? isto é, sua retenção em prisão pelo máximo período possível ? provocaria uma radical redução do número de fatos delitivos e, por extensão, importantes benefícios ao menor custo. Expresso em termos contábeis: segregar 2 anos 5 delinqüentes cuja taxa previsível de delinqüência é de 4 delitos por ano, gera uma economia para a sociedade de 40 delitos e lhe custam 10 anos de prisão. Em contrapartida, se esse mesmo custo de 10 anos de prisão se emprega para segregar 5 anos 2 delinqüentes, cuja taxa prevista de delinqüência é de 20 delitos por ano, a "economia" social é de 200 delitos; e assim sucessivamente. A neutralização pode se manifestar de várias formas, sendo mais utilizada a medida de segurança, consistente na privação da liberdade ou na liberdade vigiada, melhor definida no II capítulo desta pesquisa. IV- Críticas ao fenômeno da expansão do Direito Penal A intervenção estatal, feita por meio do Direito Penal é fruto do medo da violência, que assola as sociedades modernas, na medida em que, quase sempre, é mais fácil procurar um paliativo legislativo do que enfrentar as profundas causas que geram a criminalidade. E quando se observa a tendência ao punitivismo da legislação brasileira na seara criminal, surgem diversas críticas. São expressivas as de BITENCOURT: Tradicionalmente as autoridades governamentais adotam uma política de exacerbação e ampliação dos meios de combate à criminalidade, como solução de todos os problemas sociais, políticos e econômicos que afligem a sociedade. Nossos governos utilizam o Direito Penal como panacéia de todos os males (direito penal simbólico); defendem graves transgressões de direitos fundamentais e ameaçam bens jurídicos constitucionalmente protegidos, infundem medo, revoltam e ao mesmo tempo fascinam uma desavisada massa carente e desinformada. Enfim, usam arbitrária e simbolicamente o direito penal para dar satisfação à população e, aparentemente, apresentar soluções imediatas e eficazes ao problema da segurança e da criminalidade. Ainda, sobre a ampliação da tutela penal na tentativa de conter a insegurança social, posiciona-se o autor PAULO QUEIROZ: O Estado não pode intervir quão violentamente na vida dos cidadãos a pretexto de infundir um sentimento de segurança jurídica, pois a intervenção penal, por encerrar as mais contundentes e lesivas manifestações sobre liberdade das pessoas, não pode ter lugar senão em situações de absoluta necessidade e adequação. O direito penal não pode se valer, enfim, de simbolismos que, iludindo os seus destinatários por meio de uma solução barata e, não raro, demagógica (a edição de leis penais ou o aumento de seu rigor), as raízes dos problemas sociais subjacentes a toda manifestação delituosa, sobretudo quando se sabe que a intervenção penal é a intervenção sintornatológica e não etiológica, que atinge os problemas sociais em suas consequências e não em suas causas. Daí se dizer que mais leis penais, mais juízes, mais prisões, significa mais presos, mas não necessariamente menos delitos (JEFFERY). Em consonância ao papel simbólico do sistema penal, tem ocorrido uma tendência pelo enveredamento das punições do poder estatal à esfera penal, "já que diante do Direito Civil compensatório, o Direito Penal aporta dimensão sancionatória, assim como a força do mecanismo público de persecução de infrações, algo que lhe atribui uma dimensão comunicativa superior (...)." Assim, ele tem deixado de relegar aos demais ramos do Direito a relevante missão de combate à criminalidade e garantia da paz pública. Em suma, as críticas referem-se à mitigação ao princípio da intervenção mínima do Direito penal, também conhecido como ultima ratio, o qual possui grande importância na garantia aos direitos individuais. Por tal princípio entende-se que a intervenção estatal na esfera dos direitos dos cidadãos deve ser sempre a mínima possível no Estado democrático, com o intuito de permitir o livre desenvolvimento dos cidadãos. O mesmo ocorre com o princípio da subsidiariedade, que considera o Direito penal como um remédio subsidiário, devendo ser reservado apenas para situações em que outras medidas (sanção penal, administrativa, civil, etc.) não são eficazes para diminuir a violência. Ambos os princípios, juntos orientam e limitam o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se faz legítima se constituir meio necessário para proteger determinado bem jurídico. Assim, se outras formas de sanção ou meio de controle se fizerem suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendada. Uma vez que o sistema penal representa a mais forte agressão estatal aos direitos dos cidadãos. Ainda se discute o problema acerca da criação de tipos penais de perigo abstrato em prejuízo de crimes de dano e de perigo concreto. Podendo mencionar a constante opção do uso de leis penais em branco, que ferem outro princípio constitucional: o da legalidade estrita. Enfim, uma vez que a constituição deste novo sistema penal: ampliado, segue sem observar princípios basilares do Estado Democrático de Direito, surte como efeito a diminuição de garantias individuais frente ao poder punitivo do Estado. O que pode gerar um desequilíbrio, sem precedentes, ao sistema democrático. 5 Velocidades da expansão do Direito Penal segundo Silva Sanchéz Tendo em vista a expansão do Direito Penal, o autor espanhol Jesús-Maria Silva Sánchez, revelando uma nítida preocupação com a consolidação de um único Direito Penal Moderno, apresentou a teoria das velocidades do Direito Penal, nos seguintes termos: Uma primeira velocidade, representada pelo Direito Penal "da prisão", na qual haver-se-iam de manter rigidamente os princípios político-criminais clássicos, as regras de imputação e os princípio processuais; e uma segunda velocidade, para os casos em que, por não tratar-se ia de prisão, senão das penas de privação de direitos ou pecuniárias, aqueles princípios e regras poderiam experimentar uma flexibilização proporcional a menor intensidade da sanção. A pergunta que há que elaborar, enfim, é se é possível admitir uma "terceira velocidade" do Direito Penal, na qual o Direito Penal da pena de prisão concorra com uma ampla relativização de garantias político-criminais, regras de imputação e critérios processuais. Para melhor entendimento da teoria, parte-se do pressuposto de que o Direto penal possui dois blocos distintos de ilícitos: o primeiro das infrações penais cominadas com penas de prisão, e, o segundo, daqueles que se vinculam aos gêneros diversos de sanções penais. Sílva Sánchez coloca, de um lado, o Direito Penal vinculado à pena privativa de liberdade, no qual se haveria de manter rigidamente os princípios constitucionais clássicos aplicáveis a ele. Este seria um Direito Penal Mínimo, porém rígido. Esta rigidez remete-se ao garantismo. Esta figura a primeira velocidade da expansão. De outro lado ele entende por razoável um Direito Penal mais distante do núcleo criminal e no qual se impusessem penas mais próximas das sanções administrativas (privativas de direitos, multas, sanções que recaem sobre pessoas jurídicas) se flexibilizassem os critérios de imputação e de garantias político-criminais. Trata-se de um Direito Penal amplo, mas flexível quanto às garantias, o qual representa a segunda velocidade da teoria. Enfim, a proposta é a aplicação de um procedimento amplo e garantista para os crimes nos quais possa resultar a imposição de pena privativa de liberdade. E, em outra perspectiva, quando a sanção penal possível de ser aplicada no caso concreto se limitar às penas mais brandas - como as restritivas de direito, ou as de multa - a ação penal pode ser mais ágil e, portanto, menos garantista. Pois nesses casos, a disputa entre o acusado e o Estado não envolve tão relevante bem jurídico, qual seja: a liberdade do ser humano. Finalmente, a terceira velocidade ou, ainda, "descontrolada velocidade" , pugna pela flexibilização ou mesmo supressão de diversas garantias materiais e processuais, até então reputadas como absolutas. Esta velocidade é representada pelo Direito penal do inimigo, proposto por Jakobs, a qual tem recebido diversas críticas doutrinárias, por ser vista como radical. Enfim, acerca das mudanças ocorridas no ordenamto jurídico penal podem ainda ser feitas diversas pesquisas, pois a dinâmica social e o movimento expansionista da política criminal continua. O estudo do tema não se esgota em um breve resumo, que busca senão chamar a atenção para o recrudescimento penal, que caminha ao lado de novas sociedades e novas formas de violência, ainda bastante presente no Brasil.