Maria Angélica Gonçalves de Farias[2]

O soldadinho a olhou longamente e logo se apaixonou, e pensava que, tal como ele, aquela jovem tão linda tivesse uma perna só. “Mas é claro que ela não vai me querer para marido”, pensou entristecido o soldadinho, suspirando. “Tão elegante, tão bonita... Deve ser uma princesa. E eu? Nem cabo sou, vivo numa caixa de papelão, junto com meus vinte e quatro irmãos”. (ABREU, 2000, p.65)

RESUMO

Estudo da exclusão social em O soldadinho de chumbo de Hans Cristian Andersen , visando reconhecer os elementos de exclusão social no conto, construindo possibilidades de educar através da literatura infantil, questionando valores, atitudes, levando até as crianças meios de uma leitura critica para que compreendam a diversidade com riqueza de trocas e experiências, abordando a importância dos aspectos históricos e culturais na visão do “Eu e do outro” na formação de nossa identidade, promovendo a cidadania.

Palavras chave: exclusão; diversidade; identidade; conto; complexidade

INTRODUÇÃO

Os contos infantis de Hans Chistian Andersen retratam a realidade como forma de consciência do mundo, deixando transparecer as suas estórias sua dor de rejeição sofrida na infância. Sua importância reside na coragem que teve para transpor obstáculos e realizar seus desejos fundamentado na construção de um conjunto de paradigmático de textos artísticos que penetrou no sonho da humanidade. Por meio dos contos foi capaz de levar adultos e crianças a repensar os próprios valores e a refletir sobre as diferenças sociais que tanto distanciam os indivíduos. Tentaremos abordar perante um dos clássicos da literatura infantil, O soldadinho de chumbo questões de nosso tempo e problemas universais, inerentes ao ser humano dando ênfase ao preconceito social e sua dificuldade, com tudo isso, apresentaremos no personagem principal um alto grau de complexidade.

A obra chamou nossa atenção por conter um alto teor de transição dos contos de fadas para o mundo real de sua infância buscando revelar seu mundo interior, produto de sua própria vida em dimensões sofridas, descobertas, encantos, possibilidades, entregas e plenitudes, início e término, no entanto Andersen retrata questões morais que tem encantado varias gerações de crianças e adultos.

É importante acrescentar que no decorrer do artigo daremos ênfase ao diferente sendo aquele que não corresponde ao modelo exigido pela sociedade, permitindo-nos a reflexão de que os homens deveriam ter direitos iguais apesar de suas diferenças.

I. ENCONTRO DA IDENTIDADE

Segundo alguns teóricos a literatura infantil surge no impulso do homem contar histórias, no momento em que ele sentiu necessidade de comunicar aos outros alguma experiência sua , que poderia ter significado para todos. Essas histórias são a cultura de um povo e devem ser preservadas.

Em tempos passados, a palavra impôs-se ao homem como algo mágico, como um poder misterioso, que tanto poderia proteger, como ameaçar, construir ou destruir. São também de caráter mágico ou fantasioso as narrativas conhecidas hoje como literatura primordial. Nela foi descoberta o fundo fabuloso das narrativas a.C., e se difundiram por todo o mundo, através da tradição oral.

No século XVII ocorre mudanças na estrutura da sociedade desencadearam repercussões no âmbito artístico. Com o surgimento da Literatura Infantil tendo características próprias, decorre da ascensão da família burguesa, do status concedido à infância na sociedade e da reorganização da escola. Criando um vinculo com a Pedagogia, já que as historias eram elaboradas para se converterem em instrumento dela.

É a partir do século XVIII que a criança passa a ser considerada diferente do adulto, com necessidades e características próprias, recebendo uma educação especial, que a preparasse para a vida adulta. Entretanto, o maravilhoso é um dos elementos mais importante na literatura destinado à criança. Através do prazer ou das emoções que as histórias lhes proporcionam, o simbolismo que estar implícito nas tramas e personagens vem agir em seu inconsciente, atuam para ajudar a resolver seus conflitos internos e externos.

A Psicanálise afirma que os significados simbólicos dos contos maravilhosos estão relacionados com que o homem enfrenta em seu amadurecimento emocional, e durante essa fase surge à necessidade da criança em defender sua vontade, independência ou rivalidade com irmãos ou amigos. É nesse sentido que os contos podem ser decisivos para a formação da criança em relação a si e os outros em sua volta. O maniqueísmo que dividi as personagens em boas e más, belas ou feias, poderosas ou fracas, levam a criança a compreensão de certos valores básicos da conduta humana ou convívio social. No entanto a criança é levada a se identificar com o herói por se sentir nele a própria personificação de seus problemas infantis, por necessidade de segurança e proteção. Pode assim superar o medo que a inibe e enfrentar os perigos e ameaças que sente a sua volta, podendo alcançar gradativamente o equilíbrio adulto.

O escritor também se entrega à descoberta dos valores ancestrais, no sentido ético, de revelar o caráter da raça. Tal como fizeram os Irmãos Grimm. Mas célebre Andersen foi uma revelação na Literatura Infantil o escritor que lança um estilo novo retratando a sensibilidade exaltada pelo Romantismo.

Hans Chistian Andersen um talento nato de família humilde autor de varias obras, dedicou-se a sua produção na sensibilidade humana por situações vividas em sua infância, aprendeu a ler e escrever ouvindo histórias que seu pai contava para amenizar as dificuldades impostas por sua posição social. Com a morte do pai fugiu de casa e mudou-se para Copenhague, onde começou sua trajetória de escritor. Em uma época difícil começa a trabalhar como bailarino, coristor e escritor de tragédias para custear os estudos. Em 1835 e 1842, faz sucesso com a publicação de estórias infantis, obras primas da literatura mundial, independente de gênero.

Uma época que a sociedade estabelece um modelo para as pessoas seguirem sem questionamento, só conseguem acompanhar quem tem vinculo estabelecido por essa sociedade cheia de argumentos. Entre os títulos mais divulgados de sua obra “O Soldadinho de Chumbo” estar preso ao cotidiano, isso prova que Andersen teve a oportunidade de conhecer bem os contrastes da abundância ao lado da miséria sem horizontes. Ele pertenceu ao preconceito social, em seus contos torna mais explícitos os padrões de comportamento exigidos pela sociedade. A par desses valores éticos, sociais, políticos e culturais, que regem a vida dos homens em sociedade, Andersen insiste, também no comportamento cristão que devia nortear pensamentos e ações da humanidade.

Assim, autenticamente romântico a contar estórias para crianças e a sugerir-lhes padrões de comportamento pela nova sociedade que se organizava. Nas abordagens que faziam em seus contos pelos pequenos e desvalidos, encontramos a generosidade humanista e o espírito de caridade do Romantismo. No confronto constante que Andersen demonstrava entre o poderoso e o desprotegido, o forte e o fraco, mostrando não só a injustiça do poder explorador, como a superioridade humana do explorado, vemos a funda consciência de que todos os homens devem ter direitos iguais.

II. Retratando a Exclusão Social: O Soldadinho de Chumbo

Em termos gerais, podemos definir que "Pessoa Portadora de Deficiência" é a que apresenta, em comparação com a maioria das pessoas, significativas diferenças físicas, sensoriais ou intelectuais, decorrentes de fatores inatos e/ou adquiridos, de caráter permanente e que acarretam dificuldades em sua interação com o meio físico e social.

Deficiência Física: "Alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções".

Exclusão social conceitua-se o processo pelo qual o outro não aceita a diversidade, necessariamente a todas as formas possíveis da existência humana. Ser branco ou negro, alto ou baixo, ser deficiente ou não deficiente, homem ou mulher, rico ou pobre, são apenas algumas das inúmeras probabilidades do ser humano, que Hans Chistian Andersen aborda em suas obras primas. Partimos para um dos primeiros contos escritos por ele, “O soldadinho de chumbo” que retrata valores e objetos, e entender melhor as transformações sofridas nas relações sociais.

A criança ao entrar em contato com esses textos vai absorvendo valores essências para sua formação e encaixando peças, como um quebra-cabeça, determinantes para seu futuro caráter

e enfrentamento diante as adversidades que a vida lhe apresenta.

Bruno Bettelheim, em seu livro “A Psicanálise dos Contos de Fadas”

Esta é exatamente a mensagem que os contos de fada transmitem à criança de forma múltipla: que uma luta contra dificuldades graves na vida é inevitável, é parte intrínseca da existência humana – mas que se a pessoa não se intimida mas se defronta de modo firma com as opressões inesperadas e muitas vezes injustas, ela dominará todos os obstáculos e, ao fim, emergirá vitoriosa (BETTELHEIM, 2002, p.6).

Os contos de Andersen pode ser um eficiente instrumento pedagógico, por nos fazer entender as mudanças de paradigmas pelas quais estamos passando e nos traz perspectivas de trabalharmos com a diversidade humana através do discurso literário. Os diferentes ritmos, comportamentos, experiências, trajetórias pessoais, contextos familiares, valores e níveis de conhecimento de cada criança (e do professor) imprimem ao cotidiano escolar a possibilidade de troca de repertórios, de visão de mundo, bem como os confrontos e a ajuda mútua, e a conseqüente ampliação das capacidades individuais.

Andersen fez parte de um tempo e de uma cultura em que o diferente era discriminado e muitas vezes isolado. Quando narra à saga do soldadinho moldado e diferente de seus irmãos, entende-se que cada grupo social deveria ter seu lugar separado, com isso teremos a noção de exclusão, da não aceitação do diferente, do racismo, do dualismo, eram vinculadas pela literatura como uma prática comum da época, às vezes, até parece que as pessoas com deficiência não existam, são fantasmas. Na verdade, desde que o mundo é mundo sempre houve pessoas com deficiência. Mas, nem sempre estas pessoas eram consideradas membros da sociedade produtiva, sem direitos e desolados procuravam meios informais para sua sobrevivência.

O fragmento deixa claro que mesmo com a diferença entre seus irmãos o soldadinho mostra-se firme em sua posição, mantendo-se integrado entre as pessoas.

Numa loja de brinquedos havia uma caixa de papelão com vinte e cinco soldadinhos de chumbo, todos iguaizinhos, pois haviam sido feitos com o mesmo molde. Apenas um deles era perneta: como fora o último a ser fundido, faltou chumbo para completar a outra perna. Mas o soldadinho perneta logo aprendeu a ficar em pé sobre a única perna e não fazia feio ao lado dos irmãos. (ANDERSEN, 2000, p.64)

Assim como toda a obra literária, o conto é cercado de elementos simbólicos. O chumbo em que foi moldado o herói da narrativa representa o princípio da evolução e da incorruptibilidade. Simboliza a matéria que pode sofrer transformações físicas, mas não espirituais.

A cena inicial do conto nos revela uma situação de dificuldade e restrição do herói pelo fato de ter apenas uma perna. Porém existe o sentimento de superação dessa diferença descrita na passagem: “Mas o soldadinho perneta logo aprendeu a ficar em pé sobre a única perna e não fazia feio ao lado dos irmãos” (ANDERSEN, 2000, p.64).

Ao lado do pelotão de chumbo se erguia um lindo castelo de papelão, um bosque de arvores verdinhas e, em frente, havia um pequeno lago feito de um pedaço de espelho. A maior beleza, porém, era uma jovem que estava em pé na porta do castelo. Ela também era de papel, mas vestia uma saia de tule bem franzida e uma blusa bem justa. (ANDERSEN, 2000, p.65).

As bonecas de papel existem desde que o papel surgiu, essas figuras foram usadas em rituais culturais asiáticos, em algumas culturas eram usadas para satirizar a nobreza, as figuras eram criadas também para o divertimento de adultos ricos e crianças. A primeira boneca de papel do conto representava uma bailarina famosa, com isso Andersen introduz uma boneca de papel para retratar uma passagem de sua vida como bailarino, estimulando a imaginação e a criatividade, através das amplas possibilidades oferecidas pelo material.

Em muitas culturas as bonecas é um brinquedo associado às meninas, mas existem versões para meninos, muitos desses caracterizam as formas que lembram os humanos. Na simbologia esses bonecos simbolizam a infância, no caso do boneco O soldadinho de chumbo, caracteriza um personagem de guerra em sua forma humanizada.

A atraente jovem era uma bailarina, por isso mantinha os braços erguidos em arco sobre a cabeça. Com uma das pernas dobradas para trás, tão dobrada, que acabava escondida pela saia de tule. O soldadinho a olhou longamente e logo se apaixonou, e pensando que, tal como ele, aquela jovem tão linda tivesse uma perna só.“Mas é claro que ela não vai me querer para marido”,...”Tão elegante, tão bonita....Deve ser uma princesa. E eu? Nem cabo sou, vivo numa caixa de papelão....” (ANDERSEN, 2000, p.65).

O autor traz á tona conflitos praticamente em todo o conto. As diferenças sociais estão impregnadas no século XIX na Dinamarca, em que as guerras destruíam a economia e aumentavam os contrastes entre as classes de menor poder aquisitivo e a nobreza.

Notamos que o soldadinho admira a bailarina por ter algo em comum com ele, lhe falta uma perna, com isso percebemos sua situação de desconforto, sem uma perna, sozinho, mas quando surge à bailarina começa a fantasiar um mundo possível para sua condição de deficiência. Em função desse amor impossível ele sofre diversas revezas, cai da janela, é colocado a navegar pelos esgotos num barquinho de papel e termina na barriga de um peixe que, para seu grande espanto, é comprado pela cozinheira da casa onde morava. Mas nem essa virada da sorte propícia o amor impossível dos dois: somente na morte, queimado juntos, eles finalmente se fundirão.

Toda essa representação, da idéia de que o amor é impossível para quem possuem diferenças, se tentar construir um sentimento mais forte sofrera serias conseqüências, com as mazelas da sociedade. No entanto, o conto não apenas retrata do amor entre o soldadinho e a bailarina. No conto surge, um feiticeiro, um boneco de molas, (demônio, em algumas traduções), representa o adversário, o opositor ao bem. Representa também, a voz da sociedade da época, e isso fica claro quando o feiticeiro (conhecido como boneco de mola) diz ao soldadinho que ele deve “tirar os olhos” da bailarina. Ela, simbolicamente, está relacionada intimamente com o criador, pois liga-se a ele através da dança, tornando-se divina.

“A literatura, e em especial a infantil, tem uma tarefa fundamental a cumprir nesta sociedade em transformação: a de servir como agente de formação, seja no espontâneo convívio leitor/livro, seja no dialogo leitor/texto estimulando pela escola.” (COELHO, p.15).

Este conto aborda, diferenças culturais, identidade e aceitação, criando um personagem valente e perseverante. “Os soldados eram todos iguais uns aos outros, exceto um que só tinha uma perna. No entanto, mantinha-se em pé tão bem como os outros que tinham duas pernas”, apresentava um caráter heróico apesar de sua aparente fragilidade (Andersen). Por causa da deficiência o soldadinho pode ter dificuldade para realizar algumas atividades e, por outro lado, poderá ter extrema habilidade para fazer outras coisas. Exatamente como todo mundo. O autor buscava transmitir padrões de comportamento que acreditava ser adotados pela sociedade. Como por exemplo, de que todos os homens deveriam ter direitos iguais apesar das diferenças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Notamos como num conto do século XIX nos faz refletir sobre temas atuais como integração, amor, persistência, coragem e finalmente capacidade de enfrentar as adversidades que nos são impostas no dia-a-dia, antes mesmo da criação da Psicanálise e das mudanças nas concepções de infância, brinquedo e literatura para crianças, o boneco O Soldadinho de chumbo se faz presente na historia representando uma gama de afetos para a criança: as perdas, as mudanças, a paixão, facilitando uma possível transferência de sentimentos bons e ruins da criança para o personagem. No entanto Anderson transmite valores no conto, pois, na historia, um homem que ama, sofre e vê esse amor redimido pelo fogo. São valores alcançados pelo sofrimento, como uma maneira de conquistar a felicidade dos céus.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. 11º. Editora Scipione. São Paulo. 2005.

BRASIL, Ministério da Educação. Contos Tradicionais, Fabulas, Lendas e Mitos. 2° .Brasília. Fundescola/ SEF-MEC. 2000. P. 64 á 68.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 16ª edição. [SI]. Paz e Terra. 2002.

COELHO, Nelly. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo. Moderna. 2000. P.15.

ZILBERMAN, Regina; LAJOLO, Marisa. Um Brasil para crianças: para conhecer a literatura infantil brasileira – histórias, autores e textos. São Paulo: Global. 1988. P.14 a 21.

[1] Artigo apresentado a Professora Msª. Miriam Ramos, do componente curricular O Estético e o Lúdico na Literatura Infanto – Juvenil, do curso de Letras Vernáculas, da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus XXI, Ipiaú – BA, como requisito para complementação de nota.

[2] Acadêmico do 3º período, noturno.