EXCEPTION AS A RULE: INSERT ATTEMPT NEGRO IN THE BRAZILIAN SOCIETY

Francisco Thiago Silva

Resumo: Buscaremos relacionar o caso de racismo verídico por meio da história do operário Vicente do Espírito Santo, no documentário A Exceção e a Regra, com as tentativas de inserção do negro na sociedade brasileira. Sobretudo a partir da visão das obras de importantes estudiosos que desenvolveram teorias em torno da questão racial: Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e Clóvis Moura. Este trabalho objetiva apresentar uma visão historiográfica do negro após a abolição e analisar as conseqüências na atualidade, trazendo à tona, a questão do preconceito racial e o mito da democracia racial.
Palavras-Chave: escravos, negro, sociedade, preconceito.

Abstract: We seek to relate the case of true racism through the story of the worker Vicente of the Holy Spirit, in the documentary "The Exception and the Rule, with attempts to insert the black in Brazilian society. Especially from the perspective of the works of prominent scholars who developed theories about the racial issue: Gilberto Freyre, Florestan Fernandes and Clovis Moura. This work presents a vision of black historiography after the abolition and analyze the consequences today, bringing up the issue of racial prejudice and myth of racial democracy.
Keywords: slaves, black society, prejudice


1. Introdução

Todo brasileiro se sente como em uma ilha de democracia racial, cercado de racista por todos os lados. (SCHWARCZ, 1996, p. 155.)

A sociedade escravista brasileira nos séculos XIX, XX e XXI assistiu curiosa as diversas tentativas que o negro liberto desenvolveu para sua inserção no meio social. Este artigo tem por objetivo entender de que maneira a sociedade brasileira absorveu os nossos cidadãos, ex-escravos e como eles enfrentaram na contemporaneidade as marcas do passado de seus ancestrais, principalmente na questão do preconceito racial. Buscaremos a opinião de renomados estudiosos sobre o assunto: Florestan Fernandes, Clóvis Moura e Gilberto Freire, além das ideias de Abdias Nascimento, um dos líderes do movimento afro brasileiro, autores que desenvolveram ideias essenciais para o entendimento do papel do negro na sociedade brasileira.
Analisaremos ao longo da pesquisa, as marcas de teorias como a do "embranquecimento" e do "mito da democracia racial", claramente ilustradas no enredo do vídeo-documentário: A exceção e a regra (São Paulo, Brasil, 1997) dirigido por Joel Zito Araújo.
O filme, baseado em fatos verídicos apresenta com clareza e com alguns depoimentos dos envolvidos, o caso demissional do técnico em eletrônica, Vicente Francisco do Espírito Santo, demitido em 1992 de uma grande empresa, a ELETROSUL, Companhia Energética de Santa Catarina, e readmitido em 1995, após o processo tramitar em várias instâncias judiciais, e ganhar projeções nacionais.
O empregado demitido buscou entender o real motivo de ter sido dispensado, sem justa causa e pôde verificar que um dos chefes da companhia havia dito que sua demissão provocaria uma "limpeza no ambiente", configurando evidências de crime racial, ao saber disso, Vicente buscou apoio judicial, de movimentos sociais e ONGs, mesmo desempregado, trabalhando como vendedor autônomo conseguiu divulgar em todo estado os motivos reais de sua demissão.
Vicente perdeu em primeira instância no STF, que deliberou a favor da empresa, mesmo com as evidências de racismo. O ex técnico, no entanto conseguiu levar adiante o processo, que foi reaberto e devidamente investigado e julgado, resultando em ganho de causa para o trabalhador que foi reintegrado a empresa, a qual passaria por uma investigação séria para punir os responsáveis diretos pelo crime discriminatório, real motivo da demissão, segundo a justiça.
O documentário apresenta ainda, duas regras em casos de racismo claro, no mercado de trabalho de São Paulo, envolvendo duas jovens afro descendentes: Mônica (recusada em um emprego, mesmo com todas as qualificações exigidas, somente por ser negra) e Kelly (trabalhou como babá por 3 meses, mas não recebeu salário, demitiu-se e ainda foi vítima de crime racial por parte de seu ex-patrão). Em ambas as histórias, os processos foram arquivados e o crime discriminatório não foi provado, ao contrário da grande exceção, que foi o caso vitorioso do senhor Vicente do Espírito Santo.
A história do Brasil foi construída lado a lado com a do negro, vários abolicionistas defendiam que o país havia sido construído por cada um dos afro-descendentes que aqui estiveram, o escritor e líder negro, Abdias do Nascimento compartilha dessa ideia, para ele,

Nossos ancestrais nos legaram outra herança: a construção de um país chamado Brasil, erguido por africanos e somente por africanos. Um país com um território enorme, a metade da América do Sul; um país maior que o território dos Estados Unidos. A tarefa de construir a estrutura econômica e material desse país significou o holocausto de milhões de vidas africanas (NASCIMENTO, 1982, p. 25).

Desde a abolição, o negro, considerado livre, na verdade, não conseguiu sua libertação no sentido propriamente dito da palavra, continuou à margem social e viu nos anos posteriores, pesquisadores desenvolverem as mais diversas teorias de cunho racista, que no fundo são justificativas para o preconceito de cor que cada descendente de escravo sofreu e ainda vive no seu próprio país, sobre isso Nina Rodrigues afirma,

O negro, principalmente, é inferior ao branco, a começar da massa encefálica, que pesa menos, e do aparelho mastigatório que possui caracteres animalescos, até as faculdades de abstração, que nele é tão pobre e fraca. Quaisquer que sejam as condições sociais em que se coloque o negro, está ele condenado pela sua própria morfologia e fisiologia a jamais poder igualar o branco (RODRIGUES, 1977, P. 268).

Foi com esse tipo de opinião que a sociedade brasileira foi sendo alicerçada, principalmente no tocante às questões de raça e classe, a citação acima expressa o que pensava o médico baiano Raimundo Nina Rodrigues, para justificar, segundo ele a inferioridade do negro, uma espécie de racismo científico. O vídeo "A exceção e a regra" ilustra isso perfeitamente, pois o trabalhador assalariado retratado, apesar de possuir as qualificações profissionais exigidas, foi duramente colocado a margem social exclusivamente por uma razão: a cor da sua pele. E isso é mais comum do que imaginamos, principalmente nas relações de trabalho, as quais os afros descendentes foram submetidos após a abolição da escravatura.



2. A Lei Áurea e suas conseqüências.

Em 1888, a regente do Brasil, princesa Isabel, assinou a Lei Áurea, número 3.353 em 13 de maio, onde por apenas dois artigos extinguia o modelo escravista que perdurou oficialmente por mais de 300 anos em nossa terra. Para o ex-escravo, ter esse direito registrado em forma de lei foi muito importante, segundo Wlamyra de Albuquerque,

Diante desse quadro de tensões crescentes, a princesa regente promulgou a Lei de 13 de maio de 1888 que extinguiu em definitivo a escravidão no Brasil. Com dois artigos apenas, a lei colocava fim a uma instituição de mais de três séculos. Por ela os senhores não seriam indenizados, nem se cogitou qualquer forma de reparação aos ex-escravos. Entretanto, a escravidão foi extinta no auge de um movimento popular de grandes proporções. No curso da luta contra a escravidão foram se definindo projetos, aspirações e esperanças que iam além do fim do cativeiro. Para os ex-escravos a liberdade significava acesso a terra, direito de escolher livremente onde trabalhar, de circular pelas cidades sem precisar de autorização dos senhores ou de ser importunado pela polícia, de cultuar deuses africanos, ou venerar à sua maneira os santos católicos, de não serem mais tratados como cativos e, sobretudo, direito de cidadania (ALBUQUERQUE, 2006, P. 194).

Analisando o trecho supracitado, poderíamos facilmente vislumbrar um Brasil livre de preconceito e cheio da democracia racial e da equidade que tanto se buscou. A Lei Áurea no entendimento de muitos, trouxe benefícios sem medidas aos negros, porém comentando sobre o período pós-abolição, o historiador Roberto Lopez reflete que,

Poderia se pensar que através da abolição o Império resolvia uma espinhosa questão social. Entretanto, a verdade é que criou outra igual ou mais grave. Feita de improviso, a abolição encontrou o negro despreparado para atuar como homem livre. Não se colocou em prática, com a abolição, nenhum plano de reeducação do ex-escravo ou de reforma agrária. Nas Zonas atrasadas, muitos ex-escravos ficaram nos latifúndios por salários irrisórios, ao passo que outros, dispensados a pretexto da "liberdade" concedida, ficaram marginalizados. Em São Paulo o negro livre não teve como ingressar no trabalho industrial de tipo capitalista não só por causa do despreparo como também porque o imigrante se adonou do mercado de trabalho (LOPEZ, 1994, p. 13).

Ou seja, o escravo, agora liberto não encontrou espaço no meio social, em que foi inserido, este mesmo mercado de trabalho ainda não considera o negro como uma força de trabalho, que mesmo qualificado, não tem o status que o branco alcançou ao longo de toda sua existência, talvez por esse motivo, os afros descendentes continuam a margem social, e têm acesso diferenciado ao trabalho, a cultura, a educação e as infra-estruturas de base.
O negro teve de procurar mecanismos para tentar inserir-se no meio social, principalmente no mercado de trabalho, mesmo, não tendo como oferecer uma mão-de-obra qualificada. Nesse período já podemos perceber que os escravos, agora libertos, foram condenados à marginalização, exemplo disso foi o processo de favelização se iniciando, comentando sobre o assunto, a historiadora Regiane Augusto de Mattos reflete que,

os negros eram subempregados em atividades domésticas, no transporte, na limpeza das ruas, no carregamento de cargas e na venda de jornais. A exclusão social não aconteceu apenas no âmbito do trabalho. Pode-se notar também que os negros foram excluídos geograficamente. Por conta da sua precária condição financeira, eles foram obrigados a residir nas regiões periféricas das cidades, habitando cortiços e pequenas casinhas de aluguel nos bairros afastados do centro paulistano e favelas que surgiam nos morros cariocas (MATTOS, 2009, p. 187).

Percebemos com essas afirmações que o negro continuou sentenciado a viver num mundo que se alicerçou para não tratá-lo em condições humanas igualitárias, com os cidadãos brancos. Mesmo nossa Carta Magna criminalizando racismo, no Título II, Capítulo I e Artigo 5º, estabelece que,

Todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros visitantes no país, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. (..) XLII ? a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da Lei. (BRASIL, Constituição ? 1988)

Certamente em primeira instância, no caso do trabalhador Vicente do Espírito Santo, seu ato demissional, não foi enxergado como crime racista pelo juiz que primeiro proferiu a sentença, posteriormente o desempregado conseguiu provar que foi vítima desse crime, previsto, como vimos na nossa Constituição.
Estudiosos negros, como Abdias do Nascimento tratam a libertação dos escravos, como sendo uma abolição de fachada, pois o negro recém liberto foi atirado para a morte lenta na história, como expressa Abdias,

Quando a Abolição da escravatura em 1888 e a Constituição da República em 1889 asseguram teoricamente que o ex-escravo é um cidadão brasileiro com todos os direitos, um cidadão igual ao cidadão branco, mas, na prática fabrica um cidadão de segunda classe já que não forneceu ao negro os instrumentos e meios de usar as franquias legais ? atingem profundamente sua condição de homem e plantam nele o germe da revolta. As oligarquias republicanas, responsáveis por essa abolição de fachada, atiraram os quase cinqüenta por cento da população do país ? os escravos e seus descendentes ? à morte lenta na história, dos guetos, do mocambo, da favela, do analfabetismo, da doença, do crime, prostituição (NASCIMENTO, 1982, p. 93-94).

No período pós-abolição não havia tantos mecanismos que favorecessem a defesa dos afro-descendentes, talvez por isso ele percebesse o quanto seria difícil desarticular essa estrutura social tão bem estruturada nos interesses das elites brancas, para o negro restaria apenas uma liberdade cheia de grilhões, onde o seu desprivilegio e sua discriminação seriam cada vez mais usuais, justificados somente pela cor da sua pele.

3. Brasil: "paraíso racial" de habitantes que têm "preconceito de não ter preconceito"

É fato, que o escravo recém liberto, foi lançado aos cuidados de uma sociedade sob a ótica de uma classe dominante branca, superior, excludente e racista. Um dos grandes pensadores que ofereceu seu conhecimento para libertação das minorias, principalmente dos negros, foi o sociólogo Clóvis Steiger de Assis Moura, que por meio de obras clássicas, como Os quilombos na dinâmica social do Brasil, percebeu que o escravo foi marginalizado desde a abolição e que sua exclusão perpetua-se com fácil notoriedade nos dias atuais, para ele,

O escravo foi riscado com força dinâmica do projeto de mudança social, e a abolição realizou-se de acordo com os interesses e a estratégia das classes dominantes. A rebeldia negra, na fase conclusiva da abolição, ficou subordinada àquelas forças abolicionistas moderadas, conciliadoras e politicamente tímidas. Nenhuma reforma foi executada na estrutura brasileira, visando os interesses do escravo: era o início da marginalização do negro após a abolição que continua até os nossos dias (MOURA, 2001, p. 284).

Confirmando o que muitos teóricos já constataram: a existência de um mito da democracia racial, sobre esse assunto, Sylvia da Silveira Nunes afirma que,

A esperada cidadania após a abolição não aconteceu e, até hoje, é uma luta constante em uma sociedade em que a desigualdade racial é arraigada e as tentativas de apagar a memória da barbárie contra os escravos são permanentes, quer pela eliminação de documentos, quer pela disseminação do mito da democracia racial (NUNES, 2006, p. 17).

Apesar de achar que a escravidão assalariada iria substituir a escravidão racial (clássica) e que isso traria benefícios para toda a sociedade, Florestan Fernandes, concluiu que mesmo após a abolição, o negro continuou abandonado pela sociedade, sendo paulatinamente excluído e não tendo oportunidade de desenvolver seu trabalho, o sociólogo acredita ainda que essa democracia racial vai exigir muito do negro e do mulato, onde os mesmos precisarão dar de si mesmos o que possuírem de mais criador, mesmo assim,

O negro permaneceu sempre condenado a um mundo que não se organizou para tratá-lo como ser humano e como "igual". (...) Ao contrário, para participar desse mundo, o negro e o mulato se viram compelidos a se identificar com o branqueamento psicossocial e moral. Tiveram de sair de sua pele, simulando a condição humana padrão do "mundo dos brancos". Essa situação constitui, em si mesma, uma terrível provação. Que equilíbrio podem ter o "negro" e o "mulato" se são expostos, por princípio e como condição de rotina, a formas de auto-afirmação que são, ao mesmo tempo, formas de autonegação? (FERNANDES, 2007, p. 33)

Por isso a luta do trabalhador da ELETROSUL foi considerada uma exceção, Vicente do Espírito Santo não desistiu de provar sua indignação e mais: de constatar que ainda no Brasil contemporâneo, os negros são vistos como incapazes como propagadores de ideias errôneas e como seres inferiores a "raça dominante". E tudo isso Vicente fez sem precisar encaixar-se no branqueamento, estudado por Florestan, ao contrário, ele trouxe a tona, a discussão a cerca dos perigos que o preconceito racial traz para qualquer meio social, ele não se calou diante das explicações dadas, mesmo sendo consideradas num primeiro momento, como as únicas e corretas, o técnico demitido por meio de sua luta jurídica conseguiu evidenciar certo tipo de racismo, o silencioso, que contribui para perpetuar as afirmações preconceituosas que nos foram impostas desde o advento do tráfico de escravos negros, Sobre essa questão, José Tadeu de Arantes menciona que,

Se é verdade que, em um mundo dividido por ódio e preconceitos mesquinhos, o Brasil se diferencia como um grande espaço multiétnico multicultural de relativa tolerância e convivência, também é fato que um racismo silencioso, que se prevalece de desigualdades econômicas herdadas dos tempos da escravidão e contribuiu para perpetuá-las, continua vivo e atuante (ARANTES, 2006, p. 1).

Já alguns estudiosos do assunto pensam diferentes. Gilberto Freyre é categórico em afirmar que desconhece esse preconceito racial que se tenta evidenciar, ao contrário, ele chega a acreditar que a escravidão no Brasil ocorreu de forma suave, provavelmente o juiz que indeferiu o pedido do trabalhador representado no filme, e foi favorável a grande empresa, desconsiderando a existência de qualquer preconceito racial, concordaria com os pensamentos de Gilberto Freyre, quando afirma ser possível viver num "paraíso racial", numa democracia social por meio da própria mistura de raças, para ele,

Há, diante desse problema de importância cada vez maior para os povos modernos ? o da mestiçagem, o das relações de europeus com pretos, pardos, amarelos ? uma atitude distintamente, tipicamente, caracteristicamente portuguesa, ou melhor luso-brasileira, luso-asiática, luso-africana, que nos torna uma unidade psicológica e de cultura fundada sobre um dos acontecimentos, talvez se possa dizer, sobre uma das soluções humanas de ordem biológica e ao mesmo tempo social, mais significativas do nosso tempo: a democracia social através da mistura de raças (FREYRE, 1938, p. 14).

Ainda discutindo a situação do negro liberto, Clóvis Moura ao contrário de Gilberto Freyre, culpa justamente esse mito da democracia racial, elaborado pela elite, como um artifício para desarticular a consciência crítica e o ideal revolucionário do afro-descendente. Para Moura,

Ao dizer-se que somos uma democracia racial, jogamos, ao mesmo tempo, sobre negro explorado e discriminado a culpa da sua situação atual no sistema de estratificação social e posição de classes. Porque, se há iguais oportunidades para todos, o negro não se encontra no cume da pirâmide porque não quer: dissipa o seu tempo no samba, na maconha e no álcool. A igualdade perante a lei desse discurso justifica a desigualdade social em que o negro brasileiro se encontra. O formalismo jurídico, a concepção formalista do processo de interação social determina, em última instância, que esse discurso liberal absolva os racistas (MOURA, 1983, p. 11).

Nos anos 50 e 60, teóricos como Roger Bastide e Florestan Fernandes estudaram a obra de Gilberto Freyre e até alargaram essa noção de "democracia social e étnica", os dois acreditavam que preconceito de cor e a possível democracia racial poderiam co-existir como práticas contraditórias, mas nem sempre excludentes, segundo eles,

Nós, brasileiros, dizia-nos um branco, temos preconceito de não ter preconceito. E esse simples fato basta para mostrar a que ponto [o preconceito racial] está arraigado ao nosso meio social. Muitas respostas negativas [que dizem não haver preconceito racial no Brasil] explicam-se por esse preconceito de ausência de preconceito. Por esta fidelidade do Brasil, ao seu ideal de democracia racial (BASTIDE; FERNANDES, 1955, p. 123).

Diante de tantas correntes teóricas, não podemos fugir da práxis, que evidencia uma forte segregação racial no país, uma disparidade nos salários com relação à cor da pele, e óbvio o acesso ao ensino, o superior principalmente, ainda é muito excludente, pois ainda desprivilegia os afros descendentes, que poderiam buscar nesses espaços, uma alternativa de firmarem e consolidarem sua identidade cultural/racial para fortalecer as suas lutas e encorajar outros a coparem lugares, antes só dos grupos brancos dominantes, como defende José Licínio Backes,

À medida que aumenta o nível de ensino, diminuem as chances das classes populares terem acesso a ela. Quando estas classes populares são negras, por razões históricas de discriminação e preconceito, as dificuldades são maiores ainda. Porém, apesar dessas dificuldades, os afro descendentes, por meio de muita luta, organização e resistência, subvertem a lógica da exclusão do ensino superior e, ao ocuparem este espaço, afirmam sua identidade cultural/racial, contribuindo positivamente para que mais sujeitos deste grupo cultural e de outros grupos culturais em situação de desvantagem sintam-se encorajados para lutar e ocupar lugares tradicionalmente freqüentados pelos grupos dominantes (BACKES, 2006, p. 3).

Por conseguinte, o preconceito racial impera de forma inconsciente, muitas vezes sutilmente, não podendo ser identificável, o mito da democracia racial serve de vestimenta para encobrir isso, como discute Ricardo Franklin Ferreira ao tratar da principal conseqüência do mito democrático racial, que segundo ele,

encobre o preconceito e torna muito mais difícil o combate efetivo das injustiças para com indivíduos e grupos etno raciais diversos do branco europeu. Assim, a discriminação opera no nível dos indivíduos de maneira inconsciente e nem sempre identificável como tal (FERREIRA, 2000 apud BRAGA, 2008, p. 50).

O que o trabalhador Vicente do Espírito Santo teve que enfrentar, foi um caso muito claro, onde percebemos, apesar de ter saído como vitorioso, como a imagem do negro é ligada ao negativismo, pois eles são representados como subalternos dos brancos. Esses grupos "superiores" ao subjugarem o menos poderoso acabam por enfraquecê-lo, como discute Norbert Elias ao tratar das relações estabelecidas entre outsiders e estabelecidos. Conforme o autor,

Afixar o rótulo de ?valor humano inferior? a outro grupo é uma das armas mais usadas pelos grupos ?superiores? nas disputas de poder, como meio de manter sua superioridade social. Nessa situação, o estigma social imposto pelo grupo mais poderoso ao menos poderoso costuma penetrar na auto-imagem deste último e, com isso, enfraquecê-lo e desarmá-lo. Conseqüentemente, a capacidade de estigmatizar o outro diminui ou até se inverte, quando um grupo deixa de estar em condições de manter seu monopólio das principais fontes de poder existentes numa sociedade e de excluir da participação nessas fontes outros grupos interdependentes ? os antigos outsiders. Tão logo diminuem as disparidades de força ou, em outras palavras, a desigualdade do equilíbrio de poder, os antigos grupos outsiders, por sua vez, tendem a retaliar. Apelam para a contra-estigmatização (...) (NORBERT, 2000 apud BRITTO, 2005, p. 44).

Alguns discursos científicos se propagaram com facilidade e foram absolvidos completamente por muitos, essa retórica carregada de um preconceito racial latente, não permite em muitos casos, a chegada de fato a uma sociedade igualitária e de concretude histórica. Por conseqüência não percebemos a valorização dos afro-descendentes, um fato contraditório na história do nosso país, já que eles fazem parte basilar da construção da identidade nacional, social, religiosa e cultural da nossa nação.

4. Considerações Finais

É preciso acreditar que a problemática racial que foi vivida pelo negro Vicente Francisco do Espírito Santo, não se restrinja de fato, a uma exceção. Os casos de racismo, que são crimes, devem ser divulgados, denunciados e os culpados devidamente punidos, não sendo admitidos que se transformem em regra de exclusão social clara, como foram às histórias das cidadãs negras que não tiveram voz e o crime que sofreram mais uma vez, encontrou respaldo na sociedade branca e dominante. Estamos ainda longe de viver o que se chamou, de democracia racial, as discussões em torno de classe/raça estão em pleno desenrolar, o que não se pode admitir é a propagação de ideias que circulam há anos e que reforçam a inferioridade do negro, enquanto povo, uma delas é a de Nina Rodrigues ao afirmar que,

A alegação de que por largo prazo viveu a raça branca, a mais culta das secções do gênero humano, em condições não menos precárias de atraso e barbaria; o facto de que muitos povos negros já andam bem próximos do que foram os brancos no limiar do período histórico; mais ainda a crença de que os povos negros mais cultos repetem na África a phase da organisação política medieval das modernas nações européias, não justificam as esperanças de que os negros possam herdar a civilização européia e, menos anda, possam atingir a maioridade social no convívio dos povos cultos (RODRIGUES, 1935, p. 390).

Mas, fechar os olhos para a questão racial no Brasil é abdicar de tentar compreender a história brasileira. O negro ainda é duramente apontado como o responsável pela inferioridade da nação, portanto seu genocídio por vezes, é entendido como algo natural. Pudemos perceber isso ao conhecer todo o suplício que afligiu por anos o trabalhador negro Vicente do Espírito Santo, ao ser demitido para que o ambiente ficasse mais limpo, em situações como essa, na grande maioria dos casos, segundo Abdias do Nascimento, para que esse cidadão de pele negra possa atingir algum degrau mais alto da escala socioeconômica, ele precisará primeiramente abandonar sua origem, esquecer suas raízes e construir uma subjetividade caracteristicamente branca, por meio da miscigenação compulsória sobre isso Nascimento assevera que,

Já que o ex-escravo se tornara cidadão, O Brasil se tornava inegavelmente um país negro; circunstância que a elite dominante branca não podia tolerar. As teorias científicas da época diziam que o negro "permaneceria para sempre como motivo básico da nossa inferioridade como povo". Era necessário acabar com ele. (...) E assim começa o genocídio, nesse século, do povo negro do Brasil, de duas maneiras: através da liquidação física, inanição, doença não atendida, e brutalidade policial; mais sutil é a operação da miscigenação compulsória. Esta política demográfica, pregada como ideal social pelas camadas dominantes, dita que o cidadão brasileiro atinge os direitos civis e humanos, a ascensão na escala socioeconômica, enfim, a sobrevivência física e econômica, somente na medida em que ele atinja as características do branco, na cor da pele, nos traços somáticos e no comportamento social, não importando sua competência profissional, seu caráter ou inteligência (NASCIMENTO, 1982, p. 27)

Clóvis Moura (1994, p. 13) ao afirmar que a substituição do negro pelo imigrante europeu foi uma forma de embranquecimento da população, conclui que esse trabalhador branco, só diferenciava-se do negro, senão pela cor da pele, fora isso nada mais podia oferecer que sua força de trabalho, igualmente permitido ao ex-escravo também disponibilizar, sem óbvio ter o retorno esperado.
Essa questão da cor da pele também pode ser percebida nos escritos de pensadores como Luiz Gama, que atribuiu a ela, os estigmas sofridos pelos negros ao longo dos anos, ele reflete que,

Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime. Mas nossos críticos se esquecem que essa cor é a origem da riqueza de milhares de ladrões que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão, tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade (GAMA, 1859 apud CARDOSO, 2007, p. 1).

Alguns historiadores evidenciam em seus estudos a riqueza e a importância da existência social, econômica e cultural do negro para a formação da sociedade brasileira, Sobre isso, Regiane Augusto de Mattos frisa que,

Após a abolição da escravidão, os africanos e seus descendentes tiveram de enfrentar o difícil acesso ao mercado de trabalho livre, a discriminação e a exclusão racial. Diante desses novos obstáculos, os negros não se abateram, organizaram-se em associações políticas e culturais, que deram origem a um forte movimento da identidade negra, na tentativa de derrubar os preconceitos e alcançar a igualdade social (MATTOS, 2009, p. 207).

As teorias raciais apresentadas neste trabalho, foram criadas principalmente no século XIX na Europa e nos Estados Unidos, tiveram grande aceitação no Brasil no fim do século XIX e início do século XX, todas unânimes em exaltar a raça branca e colocá-la no patamar mais auto da escala de evolução, sendo seres superiores e dotados do direito de discriminar e excluir as outras raças, utilizando os mais diferentes artifícios. Um dos mais explícitos foi o incentivo exacerbado do governo republicano para a imigração européia, visando branquear a população e apagar as marcas do africano nas terras brasileiras, como afirma Albuquerque,

A esperança era que, em médio e longo prazo, o país se tornasse predominantemente branco. E o caminho para o branqueamento era a miscigenação. Desse modo a "raça branca", considerada mais evoluída, corrigiria as marcas deixadas na população brasileira por aquelas tidas como "raças inferiores", negros e índios (ALBUQUERQUE, 2006, p. 206).

É evidente a presença maciça do negro e de seus afro-descendentes em toda a sociedade brasileira, desde a colônia, mas também é clara a sua discriminação e a tentativa diária de pormenorizar a sua raça, e isso é uma construção histórica, como já foi apresentado neste artigo, seja nas correntes teóricas ou na realidade concreta que cerca o afro descendente, uma sociedade que o exclui constantemente, às vezes prazerosamente, volto a recordar a garra e o afinco com que lutou o senhor Vicente, do vídeo A exceção e a Regra, para demonstrar a todos que ele não poderia ser excluído, como seus antepassados foram, somente por ser negro. Por isso é necessário que haja a desconstrução dessas ideias racistas e excludentes, pois o negro, o mulato, o afro descendente, todos eles foram basilar na construção e no desenrolar da história do nosso país, portanto fazem parte de toda ela, não podendo ser colocados à margem.
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