A ÉTICA COMO RECONSTRUÇÃO DO SENTIDO DO HUMANO EM EMMANUEL LEVINAS


1 INTRODUÇÃO


Emmanuel Levinas nasceu em Kaunas, Lituânia, no ano de 1906. Judeu e de família burguesa foi educado na cultura judaica e russa. Seu pai era dono de uma livraria. Isso o possibilitou entrar em contato com muitos pensadores e literatos clássicos como Tolstói, Gogol, e, sobretudo, Dostoievski. Na leitura das obras de Dostoievski, Levinas encontrou inquietudes éticas e metafísicas com as quais identificou-se. Outro livro que o marcou profundamente e também inspirou sua vida, seu pensar e seu agir foi a Bíblia. Nela ele encontrou elementos para desenvolver uma atitude de reconhecimento, de proximidade e de amor frente à alteridade do Outro.
Em 1914, contando então com oito (8) anos, pode experienciar as atrocidades da Guerra Russa. Por conta desta Guerra, migrou para a Ucrânia em 1916 e ali se dedicou ao estudo. Entretanto, com a expansão da Revolução Russa, a Ucrânia em 1920, foi incorporada a Rússia. Em 1923 Levinas vai para a França e naturaliza-se. Foi aluno de Husserl e Heidegger e em 1923 conclui seu doutorado com a tese acerca da Teoria da Intuição na Fenomenologia de Husserl.
Durante a Segunda Guerra Mundial ? 1939 ? Levinas é convocado para servir de intérprete para as línguas russa e alemã. No ano seguinte, 1940, torna-se prisioneiro de Guerra permanecendo alguns anos no cativeiro. Por ser cidadão francês, recebe um tratamento diferenciado dos demais judeus. Ainda no cativeiro escreve a obra Da Existência ao Existente e a publica em 1947.
Por volta desse mesmo ano, isto é, 1947, durante a experiência do cativeiro, Levinas percebe o quanto o homem, por causa de uma crença , pode se tornar desumano a ponto de vilipendiar outros seres humanos. A guerra não é humana. A guerra aniquila o Outro em sua totalidade, quer dizer, em sua humanidade e em sua divindade. O Outro transforma-se em um objeto, em uma coisa manipulável. O Outro perde a sua dignidade. Nessa experiência de cativeiro, Levinas pode perceber todo o sofrimento, o menosprezo estampado no rosto dos judeus massacrados. Percebeu também, o terror, a maldade figurada no rosto dos algozes.
Era uma sociedade marcada por conflitos étnicos, políticos, por desavenças sociais. O Darwinismo social, político, cultural caracterizava a sociedade ocidental. A tentativa de dominação e de poderio impunha medo e desmantelava sociedades estruturadas. Mas, segundo Levinas, o pior de tudo não era a desestruturação política, mas a aniquilação do sentido do humano. O que poderia se conceber como mais terrível e mais abominável residia na indiferença pela vida e pelo Outro. O Outro era massificado, espoliado; era um objeto. Em suma, não havia alteridade.
A responsabilidade social se pautava no descaso pela vida e pelo acolhimento. A sociedade, fria e insensível, não procurava estabelecer relacionamentos a não ser por interesse ou por vantagem. O egoísmo era a marca de cada indivíduo. Não havia compromisso para com o Outro, portanto, não havia co-responsabilidade. A razão procurou instrumentalizar tudo e com ela surgiram ideologias que se impunham, segregavam e estabeleciam mercado gerando competitividade. Segundo Levinas, a sociedade estava marcada por um anti-humanismo.
Essa é a leitura da realidade feita por Levinas. Com certeza pelo fato de ter vivido longos anos no cativeiro e ter experienciado desumanidades resolveu resgatar o sentido do humano agora esquecido. Resgatar o sentido do humano pelo fato de que Levinas não propõe uma nova ética, mas apenas quer resgatar o verdadeiro sentido do humano concebido pelo cristianismo. Portanto, não se trata de formular e aplicar uma teoria, mas de apresentar caminhos para o retorno, para o resgate e para a reconstrução do sentido do humano. Assim, duas são as características da sociedade da época: realmente uma sociedade decadente e verdadeiramente uma sociedade esperançosa. Uma sociedade que enfrentava uma forte crise, mas, sobretudo, uma sociedade que ansiava por mudanças, por transformações.
Destarte, a saída encontrada por Levinas está fundamentada no reconhecimento do Outro, no rosto do Outro. Através do rosto do Outro é possível devolver-lhe a dignidade de ser humano e também transcender ao infinito. Segundo Levinas, o eu não deve se ocupar de si mesmo, mas do Outro, ou seja, há responsabilidade entre os seres humanos, há direitos e deveres. Portanto, a saída para a reconstrução do sentido do humano, para Levinas, está alicerçada na Ética da Alterpercepção.

2. O EU E O OUTRO


O pensamento de Emmanuel Levinas se constitui como uma tentativa de pôr em questão o primado filosófico, da atitude intelectual, que se apóia na auto-reflexão como instância última de sentido para a filosofia. Por Outro lado, seu discurso defende um tipo de relação entre o Mesmo e o Outro, segundo o qual a auto-reflexão da razão não consegue assimilar, apropriar e esgotar a alteridade do Outro. Nesse sentido, sua proposta defronta-se com a filosofia ocidental como um todo, pois esta sempre se caracterizou pela redução do Outro ao Mesmo.
Por conseguinte, Levinas coloca em questão este desejo do saber filosófico, enquanto sistema teórico, que perfaz um movimento de assimilação de uma identidade às voltas com a diferença. Numa palavra, Levinas questiona esta intenção da filosofia em transformar todo o diferente em idêntico, ou ainda em pensar a transcendência a partir da imanência. Frente a esta suprassunção da diferença pela identidade, ele lança mão do conceito de Desejo (transcendência), enquanto possibilidade para questionar a auto-suficiência e a violência presentes na ontologia. O Desejo (transcendência), tomado em sentido metafísico permite valorizar o Outro enquanto tal e, conseqüentemente, fundar a ética sobre uma relação irredutível ao conceito. O Desejo (transcendência), em Levinas, implica uma saída de si que não visa o retorno, à segurança ou a satisfação.
Para Levinas, a esfera de sentido chamada ontologia não é a única e nem a privilegiada para se pensar a relação humana, pois a relação com Outrem pressupõe um laço irredutível ao ato representacional e compreensivo. Na relação com Outrem, articula-se um chamamento irredutível a um ato intencional.
A relação com Outrem, portanto, não é ontologia. Este vínculo com Outrem que não se reduz à representação de Outrem, mas à invocação, e onde a invocação não é precedida de compreensão, chamo-a religião .

Levinas utiliza o termo religião para pensar a descrever esta relação irredutível à intencionalidade teórica. No entanto, este encontro com Outrem (religião) não envolve uma participação no sagrado, em Deus ou no próprio ser. Vale dizer, esta relação não se descreve mediante o conhecimento ou experiência mística ou religiosa. Trata-se, pois, de uma relação entre os seres humanos, que desponta como algo totalmente que não se reduz apenas ao conhecimento e à representação, mas a uma relação que respeita e resguarda a alteridade do Outro enquanto Outro. Esta relação, descrita a partir do termo religião, questiona qualquer forma de assimilação do Outro pelo Mesmo, isto é, dilacera o esforço que o eu possui de constituir uma totalidade.
Ao escolher o termo religião (Levinas) ? sem ter pronunciado a palavra Deus nem a palavra sagrado ? pensa primeiro no sentido que lhe confere Augusto Comte no inicio de sua Politique Positive. Nenhuma teologia, nenhuma mística se dissimula por detrás da análise que acaba de fazer do encontro com Outrem e do qual lhe interessa sublinhar a estrutura formal. O objeto do encontro é ao mesmo tempo dado a nós e em sociedade conosco, sem que este acontecimento de socialidade possa reduzir-se a uma propriedade qualquer a se revelar no dado, sem que o conhecimento deve contudo anunciar que a relação com homens, irredutível à compreensão, se afasta por isso mesmo do exercício de poder .
Ao tomar a religião como a única e verdadeira relação com Outrem, e para além de qualquer tipo de recurso à racionalidade teórica, Levinas estabelece um Outro horizonte de significação. Significação esta proveniente do sentido primeiro e anterior a tudo o mais, vale dizer, o sentido ético. Este, enquanto verdadeiro sentido ou sentido que se apresenta de forma eminente, é produto de um tipo de relação que a cada momento questiona o poder e a luz do conhecimento.
Esta relação não é pré-filosófica, porque não violenta o eu, não lhe é imposta brutalmente de fora, contra a sua vontade, ou com o seu desconhecimento como opinião; mais exatamente, é-lhe imposta, para além de toda a violência, de uma violência que o põe inteiramente em questão. A relação ética, oposta à filosofia primeira da identificação da liberdade e do poder, não é contra a verdade, dirige-se ao ser na sua exterioridade absoluta e cumpre a própria intenção que anima a caminhada para a verdade .
Esta colocação em questão do poder da luz do conhecimento, de modo algum, nos alerta Levinas, deve ser tomada e entendida como um processo refratário ao estatuto racional, isto é, como meramente irracional. Este pôr o Logos em questão não é o mesmo que cair nas malhas da irracionalidade, mas sim um esforço permanente para pensar para além do que o racional pode abarcar. Pois, o racional, enquanto compreensão e representação, não conseguem esgotar e abarcar a alteridade de Outrem. Alhures, na esteira levinasiana, é preciso evitar, também, os encalços de um processo irracional como esfera última de sentido, uma vez que a ingenuidade destrói a alteridade de Outrem tanto quanto o registro teórico ou racional.
Ao apresentar a filosofia enquanto discurso do Mesmo (ontologia), Levinas almeja questionar a sua pretensão dominadora, seu propósito de apropriar-se de tudo o que é Outro. No fundo, o objetivo de Levinas é questionar a primazia do teórico, para salvaguardar e lutar contra a transformação do primado da diferença em indiferença. Esta identificação ontológica, segundo Levinas,
exige a mediação, o recurso aos Neutros. Para compreender o não-eu, é preciso encontrar um acesso através de uma entidade, através de uma essência abstrata que é e não é. Aí se dissolve a alteridade do Outro. O ser estranho, em vez de se manter na inexpugnável fortaleza da sua singularidade, em vez de fazer face ? torna-se tema e objeto. Coloca-se já sob um conceito ou dissolve-se em relações. Cai na rede de idéias a priori, que emprego para o captar .
O pensamento levinasiano se constitui como descrição fenomenológica da resistência de Outrem aos poderes dominadores do Mesmo. Tal questionamento se dirige à própria razão ocidental, caracterizada como uma forma astuciosa de dominação e tirania. Pois a razão, ao apelar para uma ordem conceitual, acaba por violentar e desrespeitar a resistência que o Outro apresenta, colocando-o no âmbito do ser em geral. Pelo recurso ao conceito universal, a razão desrespeita as singularidades e, inevitavelmente, constrói uma totalidade. Neste processo formal, pelo qual o singular passa ao universal, o Outro fica como que suspenso e privado de permanecer em sua alteridade, e acaba fazendo parte de um sistema total ditando todas as regras, não lhe restando outra alternativa senão agir de acordo com as normas propostas pelo sistema.
Em relação a este sistema dominador e tirânico, Levinas busca descrever um ordenamento humano situado para além do jogo astucioso da razão, que se caracteriza precisamente como luta e violência. O ordenamento humano constituído e estabelecido, por Levinas, mediante a ética não tem sua resistência rompida pela ordem do poder, da liberdade, isto é, da violência do saber. Uma vez que o sentido de Outrem escapa à referência ao ser e ao saber, institui-se uma espécie de relação respeitosa para com Outrem, ficando resguardada e valorizada a sua dimensão de Outro enquanto Outro.

3. A RECONSTRUÇÃO DO SENTIDO DO HUMANO

Se, para Levinas, a filosofia ocidental foi sempre uma tentativa de reduzir o Outro ao Mesmo é preciso entender que esta redução não esgota o sentido daquilo que escapa a qualquer assimilação e a qualquer neutralização da diferença. A filosofia de Levinas é, neste sentido, uma tentativa de por em questão o desejo mais caro ao saber filosófico, pois toma a alteridade do Outro como que dotada de um sentido que escapa ao logos, ao sistema teórico, ao processo dialético que perfaz o movimento da Identidade que se descobre a si mesma, às voltas com a diferença. Em Levinas não há suprassunção ? síntese ? da diferença pela identidade.
É justamente esta desmedida do Outro (Alteridade) em relação ao Eu que possibilita Levinas questionar a auto-suficiência e violência do ser, e conseqüentemente fundar um sentido ético enquanto tensão permanente entre o Mesmo e o Outro, sem redução de um ao Outro. Valorizar o Outro, fundar a ética sobre uma relação irredutível ao conceito, referir-se ao rosto do Outro como primeiro mandamento ético, tudo isso implica de fato uma saída de si sem retorno ou segurança, uma descentralização do eu como condição do sentido ético.
Esta proposta de Levinas não significa uma certa adesão ao relativismo, uma recusa de enfrentar o logos que sempre caminha para consciência identificadora? Nesta perspectiva, Levinas não tem como objetivo primeiro defender filosofia unicamente enquanto discurso do Mesmo, pois o que ele quer é muito mais interrogá-la, a fim de questionar sua pretensão dominadora, seu propósito de manipular tudo que é Outro. O interesse de Levinas não é minar a possibilidade da filosofia pelo discurso relativista ? neste ponto, ele é um árduo defensor do logos ? no entanto, ele quer salvar a ética, os direitos do Outro homem, a justiça irredutível do face a face.
Assim, Levinas nos conduz ao desafio de mostrar como uma sensibilidade irredutível ao sujeito transcendental é a condição de todo o sentido e de toda a inteligibilidade. Em Levinas, a ética é uma forma de relação entre o Mesmo e Outro que precede e dá sentido ao teórico. Isto é, trata-se de um questionamento da primazia do teórico sem se cair na prisão do caos e na multiplicidade. Portanto, a crítica levinasiana ao logos não é uma forma de relativismo, pois o que ele almeja é lutar contra a transformação do primado da diferença em indiferença pura. Em Outros termos, questionar a primazia da unidade do logos é, curiosamente, libertar o logos de uma espécie de sedução pelo Mito, ou seja, vencer a mistificação da ontologia. Das brechas abertas pela crítica efetuada ao saber tradicional, o que surge?
Toda a estrutura da obra levinasiana depende de uma análise do problema da Metafísica enquanto relação (ética) entre o Mesmo e o Outro. Em Totalidade e Infinito (1961), a metafísica é uma procura, uma busca. Busca de quê? De algo que não necessitamos, de algo que não nos faz falta, mas que curiosamente desejamos. A procura que se faz mediante o Desejo não visa ao que se perdeu, mas àquilo que é exterior, separado de nós, estrangeiro. É justamente neste sentido que o Desejo visa Outrem. Este visar não é atingir ou tocar, mas uma relação original (acolhimento, respeito) com o exterior. A relação original com o exterior é a própria produção de sentido. O sentido é algo bem diferente de uma essência ideal ou de um conteúdo de pensamento.
A relação metafísica, assume uma importância decisiva em Levinas, pois é através dela que intervêm o tema da alteridade, do Outro. A primeira vista, o próprio termo metafísica pode causar estranheza, pois está carregado de significações produzidas ao longo da história e, neste sentido, deve ser deixado de lado completamente para se entender o novo sentido que Levinas lhe confere. Por metafísica, Levinas entende uma relação ao Outro que se produz no desenrolar da existência terrena sem culminar na totalidade divina ou humana, e na qual os sujeitos intervenientes se mantém absolutos, transcendentes. Fica substituída a inteligência geral dos seres ou ontologia pela metafísica como relação teórica que preserva a alteridade do interlocutor e se mostra crítica em relação a si mesmo e, neste sentido, como ética realiza a essência crítica do saber. Em que sentido realiza este trabalho critico?
Para explicitar a essência critica do saber, Levinas lança mão do conceito de Rosto do Outro que é Visage, é significação sem contexto; ele não pode ser enquadrado numa intuição eidética. Outrem me vê, dirige seus olhos para mim, questiona todo ato de doação de sentido como sendo originário, isto é, põe em questão a espontaneidade da consciência intencional. Pela presença de um Visage, há uma incrível coincidência entre o revelado e aquele que revela. Não se pode ver o rosto através de categorias, não se pode compreendê-lo, abarcá-lo.
Ao colocar a metafísica (relação respeitosa, acolhimento do Outro) na origem de toda elaboração teórica, Levinas traz para a filosofia um paradoxo. Sem representar o Outro, posso encontrá-lo na sua exterioridade irredutível à teoria. A separação entre os interlocutores é a condição do pensamento teórico e objetivo. Para que este encontro não se integre numa totalidade é preciso que a relação entre Eu e o Outro seja uma não-relação, um contato sem contato, um encontro sem simetria possível.
Que significa questionar a razão e os poderes do Mesmo? Por que o Desejo metafísico não é uma forma de desrazão, de delírio, de fusão mística, amorosa ou religiosa com o Outro? Porque o rosto, Visage impede que o encontro com o Outro se defina como relação com uma plasticidade mística ou religiosa?
A resposta a estas indagações permite penetrar e compreender como o pensamento de Levinas se constrói na permanente tensão entre o discurso coerente que aspira à universalidade e o abalo ético de seu predomínio filosófico. Ética e razão não se separam. O discurso racional garante a validade epistemológica do discurso, ao passo que a ética é o que impede que este discurso violente e ameace a significação por si e em si da Alteridade, do Outro. Portanto, pôr o logos em questão não é cair na desrazão, mas esforço permanente para desenfeitiçar a razão. Porquê?
Na perspectiva levinasiana o conhecimento objetivo, ou a atividade da teoria, é uma luta permanente contra uma mistificação sempre possível dos fatos. Conhecer é lutar contra a mistificação do fato, contra a ideologia do que não tem origem. Impossibilitado de falar, o mundo dos fatos se apresenta como convite a uma permanente interpretação, a uma procura interminável da origem. O rosto, para além de toda a forma, é uma resistência a essa mistificação. O rosto é um falar que desenfeitiça, que desencanta o mundo sem começo dos fatos. Falar a Outrem é um acontecimento irredutível ao saber objetivo. Mais: é o que confere o sentido a todo saber. Outrem é, assim, o interpelado, o invocado. Não se pode considerá-lo segundo a neutralidade do ser. Na medida em que é chamado para falar, Outrem está presente, presta auxílio a si mesmo com sua palavra e, assim fazendo, realiza a vida do presente.
O que isto mostra? Isto significa que, o reino do Mesmo, a busca de conhecimento como assimilação ganham impulso ou são explicados pelo Desejo do Outro, pela relação à exterioridade. A busca de satisfação ou de reciprocidade assentam na assimetria trazida pelo infinito, no Desejo do Outro como Outro, na separação metafísica. Somente a ética, como respeito ao inabarcável, poderia desmistificar a prisão na totalidade.
Levinas inverte os temas: O Desejo é para ele uma saída de si, uma ruptura da imanência da vida interior. O Desejo não é sinônimo de vazio ou nostalgia, pois o estar satisfeito abre a vida para o Outro como ética, e não como ontologia. O Desejo do Outro é a negação da violência inerente a razão, ao discurso racional, ao movimento do Mesmo e da ontologia, é uma resposta ao Outro que é fundamentalmente uma saída de si.
Mas qual é o sentido do conhecimento? O conhecimento é como que uma passagem do singular ao universal ou à generalidade do conceito. No entanto, isso só pode acontecer na medida em que o Outro é acolhido antes de qualquer representação. Em Levinas, a atividade teórica torna-se possível porque o egoísmo estrutural do eu separado pode ser rompido. O Outro como Visage solicita-me de sua miséria e de sua altura. Neste sentido, o "conhecimento" não vem do eu, da alma que desperta para si ou da reminiscência; o "conhecimento" vem do exterior, do absolutamente Outro, ou ainda pelo traumatismo do espanto. Portanto, o Desejo enquanto acolhimento do Outro é a condição ético critico do saber.
Isso demonstra, segundo Levinas, que o homem não é, assim, a medida de todas as coisas. Ou seja, a universalidade do verdadeiro e da idéia são incapazes de medir a transcendência do Outro em relação ao Mesmo. Mediante a quebra da fruição, a sensibilidade pela qual o eu existe recolhido em si mesmo abre-se ao Outro, é Desejo. É este o movimento que dá origem à atividade teórica e ao discurso coerente, racional e unificador.

4. À GUISA DE CONCLUSÃO

Portanto, a ética instaurada pelo Desejo possibilita uma relação entre o Mesmo e o Outro e, portanto, condiciona o pensamento teórico e permite, por isso mesmo, o seu questionamento, o abalo de seu primado. Mas, curiosamente, o discurso só é nesta relação, neste estar diante de, nesta permanente possibilidade de recomeço e de renovação. O ético contém o sentido do falar racional da elaboração filosófica e do conhecimento objetivo. O esquecimento da alteridade é causa de violência e de ausência do humano. Se o pensamento racional pressupõe o face a face da ética, toda tentativa de fundar o humano sobre a universalidade da razão condena o pensamento ao menosprezo da alteridade do Outro.
Considerar o Outro como um ser que afeta, que interpela e que é a partir dele que se toma contato com o Infinito não se constitui, o que se pode designar por, idolatria. Aceitar o Outro não é endeusá-lo e sim torná-lo oriente e ponto de partida para a superação dos problemas acerca do sentido verdadeiro do humano. Assim, aceitar o Outro é tornar-se responsável por ele e, o que é mais interessante, sem esperar nada em troca, pois não é uma relação de interesses que está em jogo, mas trata-se de resgatar a si mesmo recuperando a alteridade do Outro. Portanto, uma nova ética pressupõe uma nova ótica.
Destarte, o predomínio da Totalidade no pensamento ocidental pode ser explicado a partir desta primazia, desse imperialismo inconseqüente do Mesmo. A ruptura ética da Totalidade é o desafio que Levinas propõe. Todavia, despertar-se para o sentimento de pertença e de responsabilidade para com o Outro se apresenta como uma peça chave para tornar possível a restauração do sentido e da dignidade e, sobretudo, da pessoa humana.


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