A ESTILÍSTICA DO SOM:

ALTERAÇÕES FONÉTICAS EM PATATIVA DO ASSARÉ[1]

Raimunda de Jesus da Silva[2]

RESUMO                                                                                                                   

Este artigo acadêmico-científico objetiva analisar a estilística do som e o uso de recursos sonoros como as alterações fonéticas que ocorrem na poesia de Patativa do Assaré. Na realização deste estudo utilizou-se a pesquisa bibliográfica bem como da análise de um dos poemas deste talentoso autor cearense, ressaltando a importância do trabalho desse autor para a cultura popular. Fundamentando as discussões aqui apresentadas, foram consultados autores como: Martins (2000); Monteiro (2009); Botelho e Leite (...); dentre outros.

PALAVRAS-CHAVE: Alterações fonéticas. Metaplasmos. Estilo.  

 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa apresentar uma análise da estilística do som na poesia de Patativa do Assaré.

Tratando da estilística do som e dos fenômenos que acarretam alterações fonéticas, enfatizamos a questão dos metaplasmos que, dentre outras escolhas de estilo, são recursos muito presentes nos versos de patativa. O poeta deixa transparecer através de seus versos o seu estilo, ou como ele o constrói. Em outras palavras, como ele dá acabamento estético ao seu dizer poético, e como dá voz ao sertanejo em diversas situações discursivas.

A escolha por essa temática justifica-se pela importância desse poeta para a cultura nordestina e por ser os poemas deste autor carregados de marcas lingüísticas próprias dos falantes de sua região que é também nossa.

 Diante disso, inicialmente tratamos da importância da estilística como campo de estudo da linguagem; na sequencia, apresentamos uma definição de estilística do som baseando-se nas idéias da autora Nilce San‘tana Martins, depois procuramos conceituar as alterações fonéticas e o uso de metaplasmos. Em seguida, através de uma análise de um trecho do poema “Aos poetas clássicos”, buscou-se mostrar a presença marcante de metaplasmos e como ocorreram as alterações da forma padrão para a forma popular apresentadas nos versos de Patativa, imprimindo nestes o caráter tão peculiar do autor.

 

  1. 1.    O QUE É A ESTILÍSTICA DO SOM?

Considera-se a Estilística é um dos campos de grande importância para o estudo da linguagem na atualidade.

A pesquisa estilística tem desafiado a argúcia e sensibilidade de muitos estudiosos que, refletindo sobre o fenômeno da linguagem, percebem que certos usos lingüísticos, mais do que simplesmente destinados à pura informação, se caracterizam por uma intenção expressiva, carregando-se de valores afetivos e evocatórios. (MONTEIRO, 2009, p. 7)

De acordo com esse autor, os aspectos relacionados aos componentes emotivos não podem ser explicados somente pelo uso de recursos gramaticais que o sistema lingüístico oferece ao usuário. Daí a importância de se analisar a utilização de outros recursos expressivos, dentre eles a expressividade dos elementos sonoros. 

Segundo a estudiosa Nilce Santana Martins (2000), a estilística do som, que também pode ser chamada de Fonoestilística, trata dos valores expressivos de natureza sonora observáveis nas palavras e nos enunciados. Assim, os fonemas e prosodemas podem ser um elemento sonoro de grande importância na constituição de uma obra, principalmente no tocante à função emotiva e poética.

Para a autora, os sons podem sugerir ideias ou impressões diversas no texto,

Os sons da língua – como outros sons dos seres – podem provocar-nos uma sensação de agrado ou de desagrado e ainda sugerir idéias, impressões. O modo como o locutor profere as palavras da língua pode também denunciar estados de espírito ou traços de sua personalidade. (MARTINS 2000, p.26).

 É o que se pode denominar “motivação sonora”, quando há alguma correspondência entre som e significado. Por exemplo, a vogal /u/ pode estar relacionada à ideia de escuridão nas palavras escuro, noturno; todavia, isso não acontece em luz, diurno.

Isso quer dizer que a escolha dos sons em um texto não é aleatória, cada escolha carrega significados e diferentes valores expressivos, graças às particularidades de articulação deles. Na poesia esse recurso é muito utilizado para ajudar na construção do texto. Cada letra, palavra ou termo pode ser carregado de expressividade, e deve ser observado não como mero acaso, mas como um recurso de estilo, ou seja, uma escolha do autor.

1.2  Alterações fonéticas e Tipos de Metaplasmos

 

A estilística fônica trata de alterações fonéticas que têm valor expressivo na construção dos textos. E nesse sentido, verificamos os metaplasmos, que consistem na alteração dos vocábulos com a adição, diminuição ou modificação dos sons.

Metaplasmos são considerados, portanto, os processos de transformação pelos quais a língua passou ao longo do tempo. 

De acordo com Botelho e Leite, esses processos não se restringem as transformações que a língua sofreu na passagem do latim para o português, mas são eventos que podemos verificar na língua atual, e estes que continuam agindo e transformando a língua portuguesa.

Para esses autores, os metaplasmos podem ocorrer de quatro maneiras, a saber:

  • Por aumento: São os que adicionam fonemas à palavra, Pertencem a essa classe: Prótese, ou Próstese, Epêntese, Paragoge ou Epítese.
  •  Por supressão: São os que tiram ou diminuem fonemas à palavra. São eles: aférese, Síncope, Apócope, Crase, Sinalefa ou  Elisão.
  • Por transposição: São os que consistem na deslocação de fonema ou de acento tônico da palavra. Transposição de um fonema toma o nome de Metátese e pode ocorrer na mesma sílaba ou entre sílabas.
  • Por transformação: eles ocorrem quando um fonema de um vocábulo se transforma, passando a ser outro fonema distinto em lugar do primeiro. Pertencem a essa classe a, degeneração, rotacismo, lambdacismo, ditongação, monotongação, metafonia, palatização e despalatização.

 

 

2. ANÁLISE DE METAPLASMOS NOS VERSOS DE PATATIVA DO ASSARÉ

Sabemos que muitas das alterações fonéticas que ocorrem no uso da língua, normalmente ficam restritas ao uso popular e essa forma de expressão muitas vezes é marginalizada pela sociedade, demonstrando assim, preconceituosamente, a preferência pela normatização, pelo uso da forma padrão.

Em contraposição a isto, há quem valorize essas alterações usando-as como recurso estilístico em suas obras, ou como meio de exercitar sua criatividade sobre a língua, e até mesmo como forma de valorizar a gente que fala dessa maneira.

Há ainda quem valorize esses desvios da norma padrão pelo simples e relevante aspecto regionalista, quando o conteúdo supera a forma, como é o caso da literatura de cordel. Nesse sentido, destaque-se a poesia de Patativa do Assaré que, dentre outros recursos sonoros, apresenta variantes lingüísticas bastante peculiares.

Patativa do Assaré faz parte do mundo rural sertanejo e a sua obra nos traz elementos do seu cotidiano, daquilo que ele viu e viveu, mostrando a linguagem popular, as aspirações sociais, a religiosidade, as reivindicações políticas e econômicas de seu povo. Além disso, o uso da variante popular com seu linguajar próprio faz com que o poeta dê voz ao sertanejo.

Analisando um trecho do poema “Aos Poetas clássicos” de Patativa do Assaré, Botelho e Leite (s/d) em seu estudo sobre os metaplasmos contemporâneos apontam para a presença marcante de metaplasmos.

 

“Poeta niversitaro,
Poeta de cademia,
De rico vocabularo
Cheio de mitologia,
Tarvez este meu livrinho
Não vá recebê carinho,
Nem lugio e nem istima,
Mas garanto sê fié
E não istruí papé
Com poesia sem rima.”

(ASSARÉ, 2008, p.18)

Observa-se nos primeiros versos a ocorrência de metaplasmos por supressão. As palavras “universitário” e “academia” sofreram aférese (supressão de um fonema ou uma sílaba do início de um vocábulo) do fonema /u/ e do fonema /a/.

Na palavra “universitário há ainda o metaplasmo por transformação que é a monotongação (redução de um ditongo em uma vogal) do ditongo /io/ final, resultando em “niversitaro”. O mesmo processo ocorre na palavra “vocabulário”, no terceiro verso.

A palavra “talvez” também sofreu alteração por transformação, só que nesse caso ocorreu o rotacismo (transformação do fonema /l/ em /r/), pois o fonema /l/ foi substituído pelo fonema /r/, passando a “tarvez”.

Já a palavra “receber” sofreu a supressão do fonema /r/ no processo chamado apócope (fenômeno que suprime um fonema no final do vocábulo) e resultou em “recebê”.

Em “Nem lugio e nem istima”, aparece a ocorrência de metaplasmos tanto por supressão como por transposição. A palavra “elogio” sofreu aférese do fonema /e/ e metafonia (nome dado à alteração do timbre ou altura de uma vogal) do fonema /o/, que passou a /u/. Estes processos deram resultado à palavra “lugio”; e a palavra “estima” também sofreu metafonia do /e/, que passou a /i/, resultando na palavra “istima”.

Nas palavras “ser” e “fiel” também há ocorrência de apócope do fonema /r/ do fonema /u/, resultando nas palavras “sê” e “fié”.

Em “E não istruí papé” a palavra “destruir” sofreu três alterações: primeiro por supressão que foi a aférese do fonema /d/ e apócope do fonema /r/, e ainda a há metafonia do fonema /e/, resultando na palavra “istruí”; e por fim a palavra “papel” sofreu apócope do fonema /l/ e passou a “papé”.

Vale ressaltar que uma das características marcantes das obras de Patativa é justamente a presença de traços da fala popular. Assim, pode-se dizer que a poesia patativana é fortemente marcada pela oralidade. Isso justifica o uso dos inúmeros metaplasmos que permeia todos os seus poemas.

Além disso, os versos que hoje podemos ler são graças ao trabalho de outras pessoas que se empenharam em transcrever (com fidelidade fonética) os poemas, seja ouvindo seja através de gravações, ou diretamente do poeta, pois este tinha habilidade inacreditável de memorização, e decorava todos seus poemas, os quais recitava com admirável perfeição até o final de sua vida.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com os estudos realizados ao longo da produção dessa pesquisa, pôde-se perceber que há uma variedade de recursos estilísticos do som que os autores empregam para imprimir seu estilo às suas obras. Dentre estes recursos, destaque-se o uso dos metaplasmos que, em geral, marca a fala de um grupo considerável de falantes. 

Patativa do Assaré é sem dúvidas um dos grandes nomes de nossa cultura nordestina. É dotado de sensibilidade e de um ritmo poético de musicalidade única, grande mestre da arte da versificação e com um vocabulário que vai desde a fala popular do sertão nordestino aos clássicos da língua portuguesa, Patativa do Assaré é a síntese do saber popular versus saber formal.

Portanto, conclui-se que as obras poéticas de Patativa são ricas em recursos estilísticos e a presença de metaplasmos é constante em seus versos, retratando e ao mesmo tempo dando voz ao nordestino revelando o seu saber, sua cultura e sua língua.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino.15ª edição. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.

BOTELHO, José Mario; LEITE, Isabelle Lins. Metaplasmos contemporâneos – Um estudo acerca das atuais transformações fonéticas da Língua Portuguesa. Disponível em: http://www.filologia.org.br/cluerjsg/anais/completos/comunicacoes/isabellelinsleite.  Acesso em 20 de abril de 2014.

MARTINS, Nilce Santana. Introdução à Estilística: a expressividade na língua portuguesa. 3ª Edição. São Paulo: T.A. Queiroz, 2000.

 

MONTEIRO, José Lemos. A Estilística: Manual de análise e criação do estilo literário. 2ª Edição revista e atualizada. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

 



[1]  Trabalho apresentado ao Curso de letras como requisito para obtenção de notas da disciplina de Estilística do Português sob orientação do professor Domênico Cavalcante.

[2] Aluna graduanda em Letras.