Os prejuízos que a má apuração jornalística traz a sociedade

 Uma das primeiras lições que se aprende ao ingressar na faculdade de Jornalismo é que devemos sempre checar a informação com no mínimo três fontes. Outro importante princípio é o de sempre ouvir os dois lados da história e principalmente que a função do jornalista é auxiliar o leitor e espectador na percepção do real.  Quando os profissionais de imprensa não se atem a esses três ensinamentos, vemos uma sucessão de equívocos e inverdades em meio à cobertura jornalística.

A espetacularização da notícia, o denuncismo e o sensacionalismo caracterizaram boa parte das reportagens feitas sobre as denuncias de abuso sexual na Escola Base, os assassinos do Bar Bodega e o sequestro da menina Eloá. Os casos foram reportados em anos diferentes e por jornalistas diferentes, mas os erros de procedimento foram similares. Sem dar a devida atenção aos fatos e a versão das fontes, foi praticado o antijornalismo, irresponsável e antiético. Que na ânsia de noticiar escândalos, explora a miséria humana e distante da função de noticiar os fatos, passa a acusar, julgar e penalizar com execração pública.

Em1994 aimprensa brasileira realizou uma das mais irresponsáveis coberturas de um caso ao narrar a investigação sobre a denúncia de abuso sexual praticado contra os alunos da Escola de Educação Infantil Base,em são Paulo. Bastaramtrês semanas para, sem provas conclusivas, a justiça encontrar sete suspeitos - Icushiro Shimada, Maria Aparecida Shimada, Mauricio Alvarenga e Paula Milhim Alvarenga proprietários da escola e Mara Cristina da França Nunes, seu esposo Saulo e o fotografo americano Richard Horrad Pedicini - e a imprensa condená-los bem antes da conclusão do inquérito.

 As manchetes como “Perua escolar levava crianças pra orgia no maternal do sexo”, “Uma escola de horrores” e “Tias torturavam crianças na escola do sexo” não narravam a investigação, não supunham nem confrontavam as denuncias com os dados do inquérito e a versão do acusados, apenas insuflavam o ódio e incitavam a população a fazer justiça com as próprias mãos. 

A escola foi depredada, os acusados tiveram a prisão decretada e a situação virou um circo como descreve o livro Caso Escola Base: os abusos da Imprensa, do jornalista Alex Ribeiro.  Os acusados, inocentes desde o começo, perderam seu empregos e sua reputação graças aos erros da polícia endossados pelos abusos da Imprensa.

Este caso deveria servir como exemplo para Imprensa, mas passados 18 anos ainda são inúmeros os casos de Crimes de Imprensa. Dois anos depois, em agosto de96, amídia brasileira se via caçando os culpados pelo duplo assassinato, do dentista José Renato Tahan, e da estudante de odontologia Adriana Ciola, o ‘clássico’ caso em que a violência atinge a classe média e necessita desesperadamente que os culpados não saiam impunes, independente do rumo da investigação.

Novamente as autoridades e os jornalistas cometem uma sucessão de erros que mais uma vez levava inocentes a prisão e a execração pública, no que foi considerado pelo jornalista José Paulo Lanyi, “a perpetração de uma das maiores injustiças (conhecidas) da história do Brasil.” Como na Escola Base, a mídia se omitiu, fez coro às declarações das autoridades, não considerou que todo acusado é inocente até que se prove o contrário e ignorou as denuncias de tortura feitas pelos acusados, indiferente à verdade irrefutável dos fatos.

Em ambos os casos a imprensa se retratou tarde demais para reparar os danos causados a cidadãos inocentes e o desserviço prestado à sociedade com a publicação de informações infundadas e contraditórias. Ferindo os conceitos da ética quanto à preservação da vida humana. Ambos os episódios ganharam diversos estudos nas faculdades de jornalismo e viraram livros - Bar Bodega – Um Crime de Imprensa  - que deveriam tornar-se leitura obrigatória para os alunos do curso de Jornalismo em todo o país.

Todo o debate levantado sobre ambas as coberturas fez a categoria refletir sobre a preservação das fontes, do nome de acusados e do quão importante é apuração dos crimes para a sociedade e quais os limites para a cobertura de um fato, de acordo com a ética jornalística.

 Seria a Imprensa passível da culpa por um crime? Esta seria a pergunta que o país faria após a ampla cobertura do sequestro da adolescente Eloá Pimentel por seu namorado, Linderberg Alves, em 2008. As cem horas que Eloá passou em cárcere privado foram acompanhadas de perto pelos noticiários de todo o país, Lindemberg assistiu toda a cobertura pela TV incluindo as estratégias e ações da polícia. Outra vez imprensa e polícia cometeriam uma série de equívocos na apuração e solução do caso, tantos que desfecho viria a resultar no assassinato da adolescente. 

Mas o caso Eloá possui um agravante, que beira a ficção: Lindemberg Alves concedeu, em pleno cativeiro, uma entrevista a apresentadora Sônia Abrão, da Rede TV, ao vivo, por telefone, enquanto, armado, mantinha quatro pessoas em cárcere privado. Atitude essa que passa longe dos princípios da ética jornalística e em nada acrescentou a apuração dos fatos. A imprensa se aproximou tanto do cenário do crime e da interlocução com o criminoso que acabou por prejudicar e muito o trabalho da polícia.  A advogada de Lindemberg, Ana Assad, culpou a imprensa e a polícia pelo desfecho trágico, alegando que a cobertura da mídia atrapalhou o caso.

Esses três episódios suscitam a reflexão sobre a conduta da imprensa brasileira e seus exageros na cobertura de crimes ainda na fase de denúncia em sua maioria feita de forma abusiva e degradante. Tamanho estardalhaço na repercussão acaba por colocá-la, como no caso de Eloá, praticamente como cúmplice de alguns crimes.

Em editorial publicado em fevereiro pela Folha do Sul Gaúcho, muitas questões sobre o assunto são levantadas a partir de análise do trabalho realizado durante o sequestro feita pelo jornalista João José Forni: 

“Talvez o episódio sirva para a imprensa repensar e discutir seus métodos na cobertura de sequestros e crimes passionais. Qual a utilidade para a sociedade brasileira dar tanto espaço para esses psicopatas?

Não há consenso de que a divulgação pela mídia incentive assassinos potenciais, sequiosos de se transformarem em heróis de araque, com alguns minutos de glória na TV. O interesse das televisões e rádios é apenas comercial. Crime aumenta a audiência. Audiência aumenta faturamento. Certamente os telejornais acompanharam as descidas e subidas do Ibope, durante a cobertura do julgamento e seguraram o espaço dedicado ao crime até o limite.” ( Forni, João José. Folha do Sul Gaúcho 18 de julho de 2012)

 

Um dos pontos mais interessantes da reflexão de Forni é o interesse comercial por trás da cobertura jornalística. Muitos dos casos foram espetacularizados e explorados a exaustão para vender mais jornais e subir alguns pontos no ibope sem a menor preocupação com a vida e a integridade dos envolvidos, a procedência das informações e a relevância do fato para a população.

O problema é de fato, tão grave que uma comissão de notáveis do Senado, formada por 17 juristas foi criada para discutir se o trabalho realizado de forma irresponsável pela imprensa poderá reduzir a pena de réus condenados, como forma de compensação moral. Afinal, a TV os jornais, as revistas e o rádio não tem direito de condenar ninguém, mas a partir do momento que promovem o linchamento público de um acusado, segundo discute a comissão, a justiça poderá levar em consideração se o abuso à imagem do mesmo não lhe representou uma sanção moral tão grande que merece um atenuante no momento de fixação da pena.

Será mesmo que o mau jornalismo irá ocupar o banco dos réus podendo inclusive beneficiar um criminoso e aquele outro principio aprendido nos primeiros anos da faculdade sobre imparcialidade e compromisso com a verdade também será esquecido?