A eficácia do direito fundamental e a sua construção na esfera pública nacional: a judicialização do direito à saúde. [*]

Camila Araújo Martins

Carolina Sousa de Araujo Ferreira**

Sumário: 1. Introdução. 2. A esfera pública. 3. Direito Fundamental à saúde sob a óptica da Constituição Federal. 4. Direito Fundamental à saúde sob a óptica da legislação infraconstitucional: a Lei do SUS e o Estatuto do Idoso. 5. A efetivação do direito à saúde mediante intervenção do Poder Judiciário. 6. Conclusão.

Resumo: Uma das formas de tratar sobre os direitos fundamentais é sob o prisma da teoria argumentativa, que aborda uma influência recíproca por meio da linguagem e presume a existência de uma esfera pública como um palco de discussões. No entendimento de Norberto Bobbio, a materialização dos direitos fundamentais depende da evolução da sociedade e das concepções de Jürgen Habermas, que conceitua a esfera pública como palco de discussões e interações, atuante para enfrentar o problema da efetivação dos direitos fundamentais. Mas a maioria das pessoas não têm acesso a tal conhecimento, não sabem que o direito à saúde, em nosso ordenamento, configura-se como um direito fundamental e como tal merece e exige plena eficácia.

Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Direito à saúde. Judicialização. Esfera Pública.

Abstract: One way to deal with on fundamental rights is from the perspective of argumentation theory, which addresses a reciprocal influence through language and assumes the existence of a public sphere as an arena of discussion. In the view of Norberto Bobbio, the embodiment of fundamental rights depends on the evolution of society and conceptions of Jürgen Habermas, who conceptualizes the public sphere as a stage for discussions and interactions, working to address the problem of enforcement of fundamental rights. But most people have no access to such knowledge, do not know that the right to health in our legal system, appears as a fundamental right and as such it deserves and requires full effectiveness.

Keywords: Fundamental Rights. Right to health. Judicialization. Public Sphere.

  1. 1.   Introdução

Bobbio, ao tratar dos direitos fundamentais muda o foco a ser dado nas discussões sobre o tema, declarando que o problema grave de nosso tempo não é mais fundamentar tais direitos, e sim o de protegê-los e, adicionalmente, que não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual a sua natureza e/ou seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro de garanti-los, de efetivá-los.

Este trabalho adota um modelo discursivo de esfera pública, como um palco de debates. Diante da concepção de Habermas, nesta esfera são canalizadas as expectativas de participação ampla e plural no anseio de produzir mudanças reais. Constroem-se interesses comuns através de diálogos e de discussões que permitem encontrar consensos e chegar até um nível de decisão e de ação.

No que concerne ao problema do fundamento dos direitos fundamentais, este é dado como resolvido, não que este seja um problema inexistente, mas cuja solução já não se deve mais preocupar. O problema mais urgente é o de garantir esses direitos, de como efetivá-los. Isto se dá justamente porque, apesar dos direitos fundamentais estarem elencados na Carta Magna, não são efetivados. A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a conferir a devida importância à saúde, tratando-a, como direito fundamental e que por sua vez são tidos como cláusula pétrea. Tal direito fundamental está elencado no art. 6º, caput, da Constituição Federal e reconhece a saúde como um direito fundamental social, ao lado da educação, da moradia, do lazer, dentre outros. Os direitos fundamentais (sociais, individuais e coletivos) gozam de aplicabilidade direita e imediata, conforme dispõe o §1º do art. 5º da Constituição Federal. Logo, não são e jamais poderiam ser meras promessas do legislador, exonerado de qualquer efetividade. Ao lado da Constituição Federal há também a legislação infraconstitucional como a Lei do SUS e o Estatuto do Idoso.

Há, portanto, uma omissão de políticas públicas por parte do Poder Legislativo, e é por isso que muitas das vezes o judiciário é chamado para resolver esses problemas sob uma forma liminar.

  1. 2.      A esfera pública

Esfera pública é o espaço de organização da sociedade civil onde se encontram todos os níveis da sociedade. Esta esfera absorve “todos os discursos, as visões de mundo e as interpretações que adquirem visibilidade e expressão pública”. [1]

Assim os atores problematizam o conteúdo absorvido sendo capazes de formular estratégias para o seu enfrentamento. Sob uma perspectiva democrática habermasiana, tem por função reforçar os problemas, tematizá-los, problematizá-los e dramatizá-los, de maneira eficaz e convincente, para que assim estes sejam assumidos e elaborados pelo complexo parlamentar.

Pela esfera pública, são direcionadas as expectativas de participação ampla e plural na ânsia de produzir mudanças reais. Constroem-se interesses comuns através de diálogos e de discussões que permitem encontrar consensos e chegar até um nível de decisão e de ação. [2]

  1. 3.      A efetivação do direito à saúde mediante intervenção do Poder Judiciário

O paciente pode pleitear de diversas formas a assistência a saúde perante o Poder Judiciário. Frequentemente são utilizados: a ação civil pública, disciplinada pela Lei n. 7347/85; o mandado de segurança; e as ações condenatórias de obrigação e fazer ou de obrigação de dar. 

Porém a maioria das pessoas não tem aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação. Primeiramente há questão de reconhecer a existência de um direito juridicamente exigível. Para muitas (senão a maior parte das pessoas) das pessoas falta o conhecimento jurídico básico para propor tais ações.

Ademais, as pessoas têm limitados conhecimentos a respeito da maneira de ajuizar uma demanda. (...)

Na medida em que o conhecimento daquilo que está disponível constitui pré-requisito da solução do problema da necessidade jurídica não atendida, é preciso fazer muito mais para aumentar o grau de conhecimento do público a respeito dos meios disponíveis e de como utilizá-los. [3]

  1. 4.      Direito Fundamental à saúde sob a óptica da Constituição Federal.

A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a outorgar a devida importância à saúde, estabelecendo-a como um direito fundamental. O art. 6º, caput, da Constituição Federal é o incumbido por reconhecer a saúde como um direito fundamental social.

Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 64, de 2010) [4]

Neste mesmo parâmetro estão estabelecidos também os direitos à educação, à moradia, o lazer, dentre outros. Os direitos fundamentais (individuais, coletivos e sociais) conforme disposto no §1º do art. 5º da Constituição, têm aplicação imediata.

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

  • § 1º – As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. [5]

 Logo, não são e nem poderiam ser, meras promessas do legislador, destituídas de qualquer efetividade. “O Estado precisa encontrar uma forma de harmonizar o caráter prestacional dos direitos sociais com os investimentos em políticas públicas que esses direitos demandam para serem implementados”.[6]

Destarte, outra característica que norteia o direito à saúde na Constituição Federal são os princípios estabelecidos sob uma leitura sistematizada nos artigos 194, 196 e 198 da CF. Já o artigo 199 e §§ dispõem sobre a atuação complementar da iniciativa privada em relação à assistência dada pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Na sequência do rol dos artigos que tratam da saúde, temos o art. 200, sendo este responsável por elencar as competências do SUS.

Diante da análise dos principais dispositivos constitucionais que tratam da saúde, conclui-se que, mesmo que o tratamento dado pelo legislador constituinte não seja eficaz, o detalhamento e estabelecimento desses artigos constitucionais sobre o tema apontam para uma preocupação que em Constituições anteriores não fora demonstrada.

Daí surge o paradoxo. Será que “tais normas são o bastante para obrigar o Estado a fornecer tratamentos/medicamentos a quem deles precisar, efetivando a Constituição?” [7]

  1. 5.   Direito Fundamental à saúde sob a óptica da legislação infraconstitucional: a Lei do SUS e o Estatuto do Idoso.

A Lei Orgânica da Saúde, Lei n. 8.080/90, regulamenta os artigos 196 e seguintes da Constituição Federal e dispõe nos artigos 6º, inciso I, alínea "d" e 7º, incisos I e II:

Art. 6º. Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS):

I - a execução de ações:

d) de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica;

Art. 7º. As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS) são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no artigo 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:

I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;

II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; [8]

Pouco tempo antes da edição da Lei n. 8.080/90, o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente já previa no §2º do seu art. 11:

Art. 11. É assegurado atendimento integral à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde, garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde.

  • § 2º - Incumbe ao poder público fornecer gratuitamente àqueles que necessitarem os medicamentos, próteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação. [9]

Em 1º de outubro de 2003 foi editada a Lei n. 10.741, Estatuto do Idoso, que dispõe:

Art. 15. É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS, garantindo-lhe o acesso universal e igualitário, em conjunto articulado e contínuo das ações e serviços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, incluindo a atenção especial às doenças que afetam preferencialmente os idosos.

  • § 2º Incumbe ao Poder Público fornecer aos idosos, gratuitamente, medicamentos, especialmente os de uso continuado, assim como próteses, órteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação. [10]

Vê-se, portanto, que a legislação infraconstitucional garante expressamente não só a assistência farmacêutica, como também o fornecimento de insumos terapêuticos (tais como órteses, próteses, cadeiras de rodas, marcapassos, etc.). Neste último caso, a previsão legal destina-se tão só às crianças, adolescentes e idosos, que por explícita previsão constitucional possuem tratamento prioritário em nossa sociedade.

  1. 6.      Conclusão

No que concerne sobre a efetivação de direitos fundamentais pelo Poder Judiciário, a discussão não deve focar no fato de se saber se os juízes têm ou não legitimidade para proferir tais decisões contra o Poder Público, ou se deve ou não intervir na omissão de políticas públicas no lugar do Poder Legislativo.

A esfera publica deve ser o palco de discussões sobre o tema para que assim chegue-se a consensos e a um nível de decisão e de ação.

Deste modo o Poder Público deve oferecer à sociedade meios efetivos para que se tenha acesso a saúde e medicamentos. Isto porque, mesmo que o judiciário seja uma forma das pessoas conseguirem efetivar seus direitos, não é o esquema mais apropriado para as questões de políticas públicas, este pode ter uma participação, mas uma participação complementar.

É de grande importância também relembrar que a saúde não é só dever do Estado, como também da família, da sociedade. O poder público e a sociedade devem agir com solidariedade e responsabilidade, caso contrário a saúde não passará de mera promessa do legislador constituinte elencada em nossa Constituição Federal. Reconhece-se, portanto, que os direitos fundamentais detêm uma perspectiva utópica em que a luta pela universalização e efetivação desses direitos acarreta na formulação, implementação e execução de programas  emancipatórios. Evidentemente que para o direito à saúde, essa favorável utopia constitucional da máxima eficácia dos direitos fundamentais passa a ter cunho emergencial. Devendo destacar a saúde, de maneira acertada, como um dos cânones do direito a vida e considerando-a como um dos conteúdos que compõem a dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIA



[*]   Paper apresentado como requisito parcial para aprovação da disciplina de Sociologia Jurídica do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco ministrada pela professora mestra em Direito, Adriana Biller Aparício.

**    Acadêmica do 3º período do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.



[1] HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2 vols., 1997.

[2] Ibid.

[3] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988.

[4] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 13 mar. 2011.

[5] Ibid

[6] GANDINI, João Agnaldo Donizeti; BARIONE, Samantha Ferreira; SOUSA, André Evangelista de. A judicialização do direito à saúde: a obtenção de atendimento médico, medicamentos e insumos terapêuticos por via judicial: critérios e experiências. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/handle/2011/16694>. Acesso em: 17 mar. 2011.

[7] Ibid.

[8] BRASIL. Lei No 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Congresso Nacional, Brasília, DF. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/l8080.htm>. Acesso em: 13 mar. 2011.

[9] BRASIL. Lei No 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Congresso Nacional, Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm>. Acesso em: 13 mar. 2011.

[10] BRASIL. Lei No 10.741, de 1 de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Congresso Nacional, Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.741.htm>. Acesso em: 13 mar. 2011.

NORBERTO, Bobbio, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro, Ed. Campos, 2004.

SADADELL, Ana Lúcia. Manual de sociologia jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

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FELIX, Renan Paes. Direitos Fundamentais e sua eficácia no âmbito das relações privadas. Revista Juristas, João Pessoa, a.III, n.92, 19/09/2006. Disponível em: <http://www.juristas.com.br/mod_revistas.asp?ic=37>. Acesso em 18 mar. 2011.