"Haverá maior insensatez do homem: querer julgar os animais?"
(Platão)

A tutela jurídica da fauna bem como da flora silvestres, passa por uma discussão filosófica (e mesmo religiosa) acerca do conceito ou concepção de natureza por parte da sociedade ocidental. Portanto, é discussão feita no bojo do próprio mundo jurídico, envolvendo concepções de direito, natural ou positivo, cujo ponto de vista ou visão de mundo é fundamentalmente antropocêntrica.

No mundo dito ocidental as relações estabelecidas (unilateralmente é claro, pelo homem) entre Homem – espécie - e a natureza, estão sob o império do verbo dominar.

No que diz respeito, especificamente, á fauna, aos animais, os maus tratos aparecem justificando-se através de uma interpretação literal e sem afastamento crítico de um interprete de 1ª ou de última hora, a partir de princípios inscritos no texto bíblico, de ideologias religiosas, e representam ou simbolizam crenças sobre "Deus" haver outorgado procuração com os mais plenos e dissolutos poderes de proprietário da "razão" ao Homem, para exercê-lo sobre todas as 'outras' criaturas – independente de que reino, se animal, vegetal ou mineral.[1]

Tal concepção, não permite a tese do homem como criatura pertencente ao reino animal, optando pela mítica e mística religiosa e porque não, política, de ter o homem se originado de um Adão de Barro, sendo que as mulheres derivariam de um substrato deste homem: a Eva.

Contam, os gregos, que o Universo surgiu a partir do caos, e, daí, se obteve a sombra (Érebo) e a noite, e da sombra fez-se a luz (Éter) de onde nasceu o dia. Quando a sombra se separou da noite, surgiu o amor, ou Eros, concebido como o verdadeiro criador da vida. Do enlace amoroso estabelecido entre Eros e a Terra, nasceram o céu, o mar e as montanhas, descendendo daí Têmis, a personificação da lei e da ordem universal.Têmis casou-se com Zeus, tiveram três filhas: Paz, Disciplina e Justiça. Da fusão dessas três foi concebido o Direito.[2]

A problemática: homem/natureza parece se traduzir e se reduzir á uma concepção de natureza como bem, uma propriedade, uma relação entre homem e coisa, pois é esta a relação, de dominação e sujeição, a estabelecida entre o homem e a natureza. Uma visão e uma práxis que reduzem, transformam, 'coisificando' a natureza e dando-lhe um conceito e um status, a utilidade.

O código civil brasileiro, recentemente revogado, categorizava os animais como bens semoventes.Ou seja, seriam "bens" que possuem movimento próprio ou que se movem por força alheia. Vê-se, aqui, nitidamente uma concepção funcional ou utilitarista da natureza.

Entretanto, partindo-se desta mesma concepção patrimonial de natureza[3], pode-se assegurar a tutela da fauna e da flora: como bens de patrimônio da Humanidade, e, por isto mesmo, insuscetíveis de apropriação ou exploração individual.

Este exercício de adequação do conceito á situação ou contexto é a relativização, a concreção, a aplicação da norma respeitando-se á finalidade, á teleologia da norma, fazendo-se uma interpretação conforme.

Segundo a melhor doutrina jus - ambientalista[4], entende-se por Fauna doméstica, o conjunto de espécies que foram submetidas a processos tradicionais de manejo, que apresentam características (tanto biológicas quanto comportamentais) de considerável dependência para com o homem, sendo suscetível de serem transacionados, econômica e ou comercialmente.

Já a Fauna Domesticada compõem-se de animais silvestres (nativos ou exóticos) que não mais possuem um habitat natural, convivendo pacificamente com o homem, mas acabam por depender desse para sobreviver.

O jurista Paulo Affonso L. Machado, no seu tradicional "Direito Ambiental Brasileiro", repara: "fauna silvestre não quer dizer exclusivamente a fauna encontrada na selva. A indicação legal para diferenciar a fauna doméstica da não domesticada é a vida natural em liberdade ou 'fora do cativeiro'. Além disso, mesmo que numa espécie já haja indivíduos domesticados, nem por isso os outros dessa espécie, que não o sejam, perderão o caráter de silvestre".

Esclarece a Lei nº 6.605/98 que espécimes da fauna silvestre são "(...) todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro (...)". Portanto, espécime é a unidade representativa da sua espécie.

Os animais domesticados (para algumas etnias indígenas, "amansados", pois domesticar submete, enquanto ao serem amansados guardam sua característica de selvagens, aptos a sobreviver) são aqueles que perderam a capacidade de sobreviver, ou ainda quando é impossível a sua total reintegração ao seu habitat natural, mesmo que ainda sejam, de forma lato sensu, animais silvestres. Desta forma, para poderem retornar ao seu local ou habitat de origem, necessitarão submeter-se a processos de readaptação, para serem nele reintroduzidos. Isto nem sempre é possível ou viável, o que torna admissível e excepcional a posse ou guarda de animais silvestres, a titulo de depositários fieis, com seus proprietários, após análise dos técnicos do IBAMA.

A legislação nem sempre acompanha a evolução e a rapidez dos atos e fatos mundanos ou sociais, da mesma forma como a sociedade nem sempre recebe uma norma suficientemente evoluída para realizar o bem comum.

Mas sendo o direito uma ciência social, todo o arcabouço jurídico deveria refletir o juízo de valor da sociedade, pois só assim este se legitima. Sim, porque dentro dos três planos dimensionais da norma - existência validade e eficácia - é a eficácia quem dá visibilidade, concretude e representatividade ao Estado - Norma. Uma norma nada mais é que um "juízo de valor" que uma sociedade, o poder originário, emite sobre um fato da vida, um fato mundano, transformando este fato em valor, concretizando uma norma, uma regra social normativa, permissiva ou proibitiva, sancionadora ao final. E ela só se legítima, se forjar, provocar uma espécie de mecanismo de identificação e compreensão por parte da sociedade, sendo reconhecida pelos cidadãos como uma regra social, de alguma forma emitida por esta sociedade, e destinada para esta mesma sociedade.

Quanto maior for o hiato ou o abismo entre a sociedade e seus signos de representação, pois a norma é um destes signos, impregnados de valor e sentido, menor a possibilidade desta norma ser incorporada como valor e assim ser compreendida, sendo, portanto, uma norma que dificilmente ou jamais será cumprida. Isto é INEFICACIA.

Assim, não basta que tenhamos normas, selos, sanções ou o que for, em termos legais ou jurídicos, ilustrativos, midiáticos ou panfletários.

Uma sociedade é composta de pessoas, e pessoas precisam se identificar com os múltiplos signos e significados que estão implícitos ou expressos nas normas que regulam a sua vida intra-social sejam elas de caráter penal ou ambiental.

Meio - ambiente, o "mato", Povos da Floresta, Ribeirinhos, pajelanças ou oferendas, nos indicam que, em termos de natureza e cultura, não há oposição ou subsunção entre ambos, pois não se tem 'um' ou 'o' conceito, mas sim uma polifonia, uma polissemia de conceitos, teorias e teses, e por isso talvez sejam chamados ou categorizados de interesses ou direitos difusos, de última geração. Mas, de verdade, sem compreendê-los como tais, eles não serão ou reproduzirão nada, nenhum efeito sequer, se não partirem ou ao menos dialogarem com a visão de mundo dos seus próprios sujeitos, os cidadãos, sejam estes sujeitos ativos, pro ativos ou meramente reativos. Isto é o que nós compreendemos como o 'dever-ser' do direito.

Drª Profª Luciana Job - Procuradora Federal- Especialista em Direito Publico pela UnBe mestre em Antropologia Social pela UFRGS.



[1] Baseia-se nesta idéia antropocêntrica, os pensamentos: romântico, racional e humanista, todos plasmados na redução dualista.

[2]Apud Dias: 2000.

[3] A lei nº 5.197/67, no art. 1º dispôs: "art. 1º. Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento, e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha".

[4] Dias, Edna Cardozo. A Tutela jurídica dos animais. Ed. Mandamentos, BH, 2000.