ALEXANDRE VALDEMAR DA ROSA*

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* Graduado em História - UNESC
Especialista em História ? UNESC
Especialista em Educação Inclusiva ? UCB-RJ.
Resumo


Este artigo tem por objetivo principal abordar historicamente as estratégias criadas pela elite escravocrata brasileira de impedir o livre acesso da população afrodescendente aos bancos escolares nos tempos da escravidão, sobretudo no século XIX.

Palavras-chave: Educação. Afrodescendente. Império. Escravo.

Summary


This article aims to address historically main strategies created by the elite of Brazilian slavery deny free access of Afro-descended population to school in the days of slavery, especially in the nineteenth century.

Keywords: Education. African descent. Empire. Slave.

Introdução

O presente estudo é resultado de minhas indagações em torno da política educacional voltada para os africanos e seus descendentes no período relacionado à escravidão. Raras são as pesquisas que abordam essa temática, levando-nos a acreditar que entre os séculos XVI ao XIX, os negros em terras brasileiras viveram num completo analfabetismo. Chiavenato# alimentou esse raciocínio ao afirmar que o negro nos tempos do Império "era apenas uma propriedade, não existindo como ser humano", no entanto Munanga e Gomes# ao mencionarem a formação dos escravos Malês na Bahia modificaram a realidade deste quadro. Para eles, estes grupos "pertenciam a sociedades africanas muito desenvolvidas, politicamente independentes, complexas, economicamente avançadas, originárias de um alto nível de civilização, cultura e tradição religiosa".
Segundo historiadores, todo este conhecimento foi ao longo do tempo sendo transmitido a outros escravos no interior das senzalas, preenchendo de certa forma a lacuna deixada pelo "governo" no tocante a educação. Os dizeres até aqui mencionados e os outros que estão por vir, comprovam, que o ensino para o público afrodescendente, historicamente, sempre esteve muito ligado ao anonimato e a clandestinidade.

A EDUCAÇÃO PARA OS AFRODESCENDENTES NO BRASIL DO SÉCULO XIX


Quando pensamos discutir um tema como este, as primeiras ideias que nos vêm à memória são, num primeiro momento, os horrores referentes à escravidão. Isto porque nossa nação, infelizmente, foi o último lugar do planeta a abolir tal regime. Ou seja, torna-se impossível historicamente falarmos de alguma questão em se tratando do negro brasileiro sem antes discutirmos os malefícios que o cativeiro causou aos mesmos ao longo da história.
Essa problemática em torno do negro iniciou segundo Salvador # em 1444 quando os portugueses transportaram os primeiros grupos de africanos da Guiné para o reino português. Com isso, não demorou muito tempo para o governo lusitano e a Igreja perceberem o quanto lucrativo seria essa nova forma de comércio. Pensando nisso, os papas Calixto III e Sixto IV, abençoariam a escravidão por meio de suas bulas papais ao "afirmarem e reafirmarem que o ouro e os escravos são os principais produtos" a serem explorados no continente africano#.
Estava decretado o início do sofrimento dos africanos e seus descendentes, martírio esse que perduraria em todo o mundo através dos tempos. No Brasil, por exemplo, a importação de escravos africanos em grande escala foi legalizada com o advento de uma lei criada em março de 1559, que autorizava todo o proprietário de engenho a importar até 120 cativos desde que este tivesse condições de arcar com os gastos como alimentação e transporte#. Por meio desse incentivo fiscal promovido pelo então rei de Portugal Dom Sebastião, nosso território receberia nos séculos seguintes milhares de trabalhadores que modificaram para sempre a estrutura cultural desta nação.
Com a chegada desse elevado contingente de africanos, profundas mudanças ocorreram na então colônia portuguesa, sobretudo na educação, que até então caminhava a passos lentos. Essa lentidão educacional ocorria porque a política da ignorância e ao mesmo tempo do isolamento dentro da então colônia portuguesa na América, era uma prática adotada pelo governo lusitano para manter o território brasileiro "longe dos olhares e da ganância dos estrangeiros" #.
Coube à tarefa de promover as profundas mudanças na educação brasileira do século XVI aos ditos representantes de Deus, isto é, os jesuítas. Esses educadores para Romanelli (1978, p.36) desenvolveram um papel marcante na história da educação de nosso país, sendo eles os pioneiros a executarem "o modelo de educação segregacionista" #. Ainda segundo a historiadora, foi por meio dessa educação que a então sociedade antes conhecida por escravocrata passaria a ser denominada de aristocrática. Além disso, é importante ressaltar que para tornar consistente a metodologia em todo território do Império, os jesuítas seguiram rigorosamente as diretrizes educacionais do Ratio Studiorum. Promulgada em 1559, pela Igreja Católica, a pedagogia do Ratio Studiorum baseava-se no princípio de uma tríplice aliança, ou seja, a união da matéria, do método e dos professores#. Dentro dessa ideologia, seriam abordadas pelos portugueses temáticas voltadas a pensadores ligados ao catolicismo como: São Columbano, Santo Agostinho, Thomaz de Aquino e outros.
Em síntese, é notório afirmar que a educação transmitida pelos educadores religiosos evidenciava principalmente os conteúdos de cunho religioso, onde estes deveriam ser ensinados de forma rígida e, ao mesmo tempo aplicados de maneira autoritária. Somente tinha direito a essa educação um número restrito:

"porquanto deveriam estar excluídos dessa minoria as mulheres e os filhos primogênitos paternos [...] a escola era frequentada somente pelos filhos homens que não os primogênitos. [...] era, portanto, a um limitado grupo de pessoas pertencentes à classe dominante que estava destinada a educação escolarizada#."

O investimento no que concerne a educação para os filhos de escravos até o século XIX era praticamente inexistente, tendo em vista que o africano era visto apenas como uma mercadoria. Nem mesmo com a chegada da família real portuguesa no Brasil em 1808, os escravos usufruíram de algum benefício quando o assunto em questão era a educação, muito pelo contrário, a escola ficou ainda mais elitizada. Em 1834, por exemplo, é decretado o ato constitucional que delegava as providências o direito de regulamentar e promover a educação do ensino primário e secundário em todo o império, no entanto, uma série de problemas de ordem administrativa prejudicou o bom andamento dessa determinação. Problemas esses, relacionados a um falho sistema de tributação e de arrecadação impossibilitou que as províncias criassem uma rede organizada de escolas. Consequentemente o ensino nas escolas secundárias ficou a cargo de uma minoria de particulares que foram obrigados a modificar o modelo de educação imperial, antes muito ligado ao lado religioso.
Quanto aos africanos, o aprendizado de maneira geral sempre esteve relacionado à clandestinidade, pois como o código de postura proibia a aglomeração de escravos sob pena de prisão, o acesso a educação para os mesmos era cada vez mais difícil. É o que ficou evidente nas palavras do chefe de polícia da corte, Eusébio de Queiroz. Num ofício reservado de:

27 de março de 1835, ele determinou ao juiz de Paz do primeiro distrito de Santana que investigasse uma casa na Rua Largo de São Joaquim, "na qual há reuniões de pretos minas a título de escola de ensinar a ler e escrever".#

O documento ainda informava que estas reuniões ocorriam cotidianamente à tarde e por isso deveria ser investigado o mais rápido possível. Outro delegado, agora na Bahia, ao descrever em seu relatório o incidente ocorrido na província, no mesmo ano, ou seja, o movimento Malê, salienta "o fato de quase todos os revoltosos saberem ler e escrever em caracteres desconhecidos". Caracteres que "se assemelham ao árabe [...]" #. No entendimento de Etiene apud Freyre# o fato de não cometerem roubos ou qualquer tipo de violência contra seus senhores caracterizou esse levante como um movimento de ideal político. Essa ideologia só foi possível, segundo Freyre#, porque nas senzalas baianas de 1835 "havia talvez maior número de gente sabendo ler e escrever do que no alto das casas-grandes".
Os colégios no decorrer do século XIX sofreram uma grande modificação, pois se transformaram em simples cursos de preparação para o ensino superior. Isto aconteceu em decorrência da pressão exercida pela classe dominante "a fim de acelerar o preparo de seus filhos e assim interligá-los no rol dos homens cultos." # Por outro lado, as poucas escolas que persistiam em existir, funcionavam graças a uma minoria de desempregados que na iminência de sobreviver se viam na obrigação de ensinar.
Muito provavelmente é o que pode ter ocorrido com os escravos durante o processo de colonização alemã na região de Joinville, norte do estado de Santa Catarina, durante o século XIX. Lá, segundo Silva# "o emprego de escravos nas terras da nova colônia era vedado aos imigrantes". Ou seja, como alguns colonos alemães possuíam escravos, era comum ver cativos falarem fluentemente o idioma germânico, como relata Editt Vogelsanger:

"[...] eu não sei se até na fazenda do meu avô tinha escravo até. Mais ali tinha, perto de Pirabeiraba [zona rural da cidade], tinha famílias que tinha escravos, ainda. E eles todos falavam alemão também, eles não eram mais tratados como escravos, porque eles eram da família, comiam junto com a família"#.

Diferentemente da realidade educacional vivida pelos escravos e seus descendentes, no século XIX, os indivíduos, filhos de membros da elite estabelecida do período, desfrutavam da oportunidade de estudar em renomados colégios como o Dom Pedro II, localizado no Rio de Janeiro e o Caraça de Minas Gerais. Ambas as instituições desempenharam um papel importante na história da educação brasileira. Isto é, enquanto o primeiro foi criado na corte e o único mantido e ao mesmo tempo controlado pelo Império para servir de modelo de ensino, o segundo, mesmo estando localizado em uma região montanhosa do estado mineiro, "teve importante papel na formação da elite conservadora que fez carreira no Império e na República"#. Na concepção da historiadora Marisa Guerra de Andrade, durante todo o século XIX foi desenvolvido no Colégio mineiro, o Caraça, uma nova filosofia de educação pautada nas ideias humanistas, com inspiração na antiguidade clássica. Ou seja, foram "os padres Vicentinos e lazaristas da Congregação da missão" os responsáveis por tornar essa instituição um importante campo "preparatório para a vida pública ? a carreira eclesiástica ou a magistratura" #.
Edificado no "modelo francês de educação", o Caraça, no auge de seu esplendor (1870 ? 1890), chegou a possuir mais de 300 alunos, superando a média imperial que girava em torno de 60 estudantes por colégio. Com um custo anual de 680 mil réis por aluno, provavelmente o mais caro do país, a instituição era detentora, segundo Andrade de uma das mais completas bibliotecas do estado mineiro. Sua grade curricular era composta por 25 disciplinas, tendo à retórica como sua principal matéria, todavia, era através dela que a "posse da palavra e do discurso constituía uma marca forte da distinção social" #, tal como a posse de escravos, bens e terras.
Percebe-se que em instituições como essa, a prática do ensino teria sido utilizada paradoxalmente para fazer valer a permanência do estereótipo negativo em torno do escravo africano, sobretudo a concepção de que os mesmos eram intelectualmente inferiores. Tal realidade, não causa estranhamento porque pela "legislação do Império os negros não pudessem frequentar as escolas, pois eram considerados doentes de moléstias contagiosas" #. Sobre esta questão, Chiavenato afirma que mesmo sendo outorgada a Constituição do Império Brasileiro em 1824, em nenhum momento o termo escravo é citado, mostrando como isso, que o negro enquanto ser humano não existia. Somente com o decreto de 1854 e com o de 1878 é que os negros foram lembrados no tocante a educação.
O primeiro estabelecia "que nas escolas públicas do país não seriam admitidos escravos e a previsão de instrução para adultos negros dependia da disponibilidade de professores. O decreto n.º 7031 ? A, de 6 de setembro de 1878, estabelecia que os negros só podiam estudar no período noturno [...]" #.
Discordando dessa situação, Rui Barbosa e Joaquim Nabuco difundiam a ideia de que somente o país se desenvolveria a partir do momento que a educação fosse apresentada a todos os brasileiros, "independente da cor de sua pele". Por este motivo, ambos ganharam a antipatia de boa parte da elite imperial, principalmente os escravocratas. Em 1882, Rui Barbosa apresentou à câmara o seu parecer sobre a reforma do ensino, no qual aspirava num futuro muito próximo à criação de "uma escola pública gratuita, obrigatória e laica no país como um todo" #. Muito respeitado no cenário político brasileiro, tanto nos tempos do Império, como na República, o nordestino nascido em Salvador revolucionou a política nacional, que alicerçada nos horrores da escravidão, teimava em extinguir das suas entranhas as mazelas decorrentes dos séculos de servidão e cativeiro. Para ele, ao investir no ensino público, o Brasil em pouco tempo se tornaria uma nação democrática, ocasionando a modernização de sua sociedade. Compartilhando da mesma bandeira defendida por Rui Barbosa#, o político e escritor pernambucano Joaquim Nabuco#, via na "universalização da educação" a chance de transformar o Brasil. A escola, para Nabuco, seria:

A instituição mais útil ao Estado. Seu propósito seria de educar os antigos escravos e ensinar "aos nossos homens de fortuna os deveres da propriedade e as relações da riqueza particular com as ideias de justiça e de solidariedade e o nível moral da população toda" #.

Além de trabalhar por uma educação comum a todos os cidadãos brasileiros, Nabuco acreditava que a indústria teria um papel de grande relevância no desenvolvimento do país, porque "tiraria o Brasil da resignação da escravidão e geraria iniciativa, invenção e energia aos indivíduos, fortalecendo a confiança nacional" #. Entretanto, para que ocorresse tal mudança era necessário que algumas providências fossem tomadas, como: melhor aplicação dos recursos públicos por parte do governo, alteração na taxa cambial e o fim da escravidão.

Os ideais almejados por Rui e Nabuco para a população brasileira, ou seja, um território cuja fundação estaria sempre sustentada nos princípios de uma sociedade justa e ao mesmo tempo igualitária, ganhou força com o fim da escravidão e com a Proclamação da República.


Considerações Finais


Conclui-se que ao longo do século XIX, foram criadas inúmeras estratégias com o intuito de impedir o acesso pleno da população negra brasileira aos bancos escolares, pois sabemos que era mais simples para um senhor de engenho ludibriar um escravo leigo do que enganar um cativo com o mínimo de informação.
Historicamente, nosso país como colônia, império e republica no aspecto legal, infelizmente agiu de forma ativa e permissiva diante da grande discriminação e do racismo que assombra a população afrodescendente até os dias atuais. Nesse sentido, é crível afirmarmos que para haver uma mudança neste paradigma faz-se necessário um maior investimento no tocante a educação brasileira, sobretudo na capacitação dos professores para melhor trabalharem os assuntos relacionados à cultura afrobrasileira e africana. Mesmo usufruindo das pequenas migalhas do ensino no Império, os afrodescendentes proporcionaram a esta nação um legado cultural que ainda hoje se faz presente, felizmente.

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