Ianna Arruda[1]

Rômulo Alves Dias[2]

 

Sumário: 1 Introdução; 2 A evolução dos direitos humanos; 3 O infanticídio indígena na ótica do relativismo cultural e do universalismo dos direitos humanos; 3.1 Uma prospecção da eficiência da dogmática penal na abordagem do infanticídio indígena; 4 Conclusão; Referências.

 

RESUMO

 

Apresenta a controvérsia do infanticídio indígena sob a perspectiva do relativismo cultural e do universalismo dos direitos humanos. Mostra a evolução do constitucionalismo e sua intrínseca relação com os direitos naturais do homem. Aborda a consolidação da internacionalização dos direitos humanos e a sua influência nas constituições locais, relativizando o conceito de soberania estatal para construir a tese de subsidiariedade da jurisdição internacional quando da violação dos direitos humanos.Apresenta os fundamentos teóricos favoráveis e contrários à prática do assassinato de crianças indígenas. Expõe a perspectiva intestina das tribos e das famílias quanto a ceifar a vida de seus próprios filhos em razão de "incompatibilidade" com a cultura doméstica. Analisa a dogmática penal como instrumento apto a coibir a prática do infanticídio indígena em aldeias assentadas em locais ermos. Mostra o diálogo intercultural como forma de apresentar outras possibilidades para os silvícolas que não o sacrifício de suas crianças e para favorecer a adesão dos indígenas ao conceito de direitos naturais do homem.

 

Palavras-chave: Infanticídio indígena. Direitos humanos. Constitucionalismo. Dogmática penal.

 

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

Ter uma vida digna é um direito fundamental. Está predito na Constituição de 1988. Como corolário se tem o regramento penal de que matar é crime com pena de reclusão para o infrator. Frise-se que a mão pesada do Estado pune a) para reprimir individualmente aquele que teve desvio de conduta social e b) para servir de exemplo para que os demais da sociedade não infrinjam a mesma regra.

Não obstante a política criminal supracitada, há controvérsia sobre se é válido o Estado interferir nos costumes existentes em tribos indígenas que assassinam crianças tidas como "incompatíveis" com a convivência no seio do grupo social. Pequenos indígenas com disfunções físicas ou mentais, gêmeos, filhos de mães solteiras e órfãos são exemplos dessa "incompatibilidade".

Também é fato que é constitucionalmente assegurado aos povos indígenas o exercício de sua cultura e de seus costumes. Assim, até que ponto é possível ignorar esse atentado aos direitos humanos? O respeito a essas culturas deve blindar o infanticídio indígena? Se não, a pergunta central é: até que ponto a norma penal geral ou porventura uma norma penal específica seria eficiente para inibir essa prática?

A despeito do conceito de direitos humanos ser alardeado como algo universal e ontológico (direitos do sujeito simplesmente por ser humano), é notório que se trata de uma construção ideológica. E no espírito de tal pensamento

a nova universalidade procura, enfim, subjetivar de forma concreta e positiva os direitos de tríplice geração na titularidade de um indivíduo que antes de ser o homem deste ou daquele país, de uma sociedade desenvolvida, é pela sua condição de pessoa um ente qualificado por sua pertinência ao gênero humano, objeto daquela universalidade (BONAVIDES, 2012, p. 592).

 

Fácil perceber que se edificou uma ideologia garantista com o intuito de proteger o homem em sentido amplo, de forma atemporal e independente de localização geográfica. Contudo, a concretude de diferentes povos com diversidade de costumes mostra que a exaltada figura do ser humano universal é uma ficção forjada nas culturas europeia e americana. A partir disso, está em movimento constante a internacionalização dos direitos inerentes ao homem na tentativa de arvorar de mundial a faceta ocidental do que seriam esses direitos. Porém,

os direitos humanos só poderiam se efetivar legitimamente numa sociedade global se transcendessem o desafio do multiculturalismo, definindo os direitos não como abstratos e universais de acordo com a tradição ocidental, mas a partir de valores das diversas culturas que compõem a comunidade internacional (SANTOS apud LEISTER, 2005, p. 3)

Assim, dada a artificialidade do ideário de direitos humanos, provavelmente não será a simples imposição de normas penais que coibirá de forma eficaz a prática secular de assassinato de crianças nas tribos indígenas mais isoladas.

Afora isso, não é concebível o Estado se escusar de enfrentar a questão do infanticídio indígena sob o escudo do relativismo cultural. O Brasil é signatário de convenções internacionais que veementemente coíbem a prática de desrespeito a direitos humanos fundamentais, mesmo que sob o manto de coadunação com costumes inerentes a determinado povo. Entretanto, aparentemente o problema ocorre em outro Brasil, afastado, incrustado na selva e, como longe dos olhos, não captado a ponto de incomodar. Afinal, não se trata de uma questão que acontece com os "brasileiros de verdade", mas "só" com os índios.

Por outro lado, algo está paulatinamente mudando. Mesmo as tribos mais afastadas tem algum contato com órgãos oficiais (FUNASA, FUNAI etc.) e com missões nacionais e estrangeiras. Sem entrar no mérito da efetividade e interesse desses agentes, o fato é que já chegam aos ouvidos do Brasil do lado de cá que existe muito sofrimento nas famílias que passam pela experiência de sacrificar um filho em respeito a uma prática cogente do ambiente social em que habitam. Não se trata, portanto, de costume pacificamente internalizado e, do ponto de vista pragmático, as minorias que se insurgem contra malfadado hábito não se veem assistidas pelo Estado.

Portanto, trata-se de tema socialmente relevante, pois a partir do momento em que se enevoa o caráter categórico dos direitos humanos, exsurge uma distinção entre pessoas com a tácita criação de classes "mais humanas" que outras. Isso abala toda a estrutura de direitos fundamentais, podendo abrir espaço para desrespeitos horrendos à condição humana, como já ocorreu no passado recente com o nazismo. Ademais, causa interesse o conflito entre discursos firmados em construções lógicas aparentemente constitucionais que atribuem diferentes pesos interpretativos a direitos basilares insculpidos na Carta Maior, conduzindo a desfechos diametralmente opostos, a saber neste caso, a compatibilização ou não do infanticídio indígena com o bojo do arcabouço legal pátrio.

 

2 A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

 

A origem dos direitos humanos se confunde com o próprio embrião do constitucionalismo. Mas para o objetivo deste trabalho não é de muita relevância revolver os motivos que levaram a nobreza inglesa do século XVII a impor ao Rei João Sem Terra as exigências do texto da Magna Carta e sim verificar os efeitos que esse marco trouxe para as constituições modernas. Na prática, a Magna Charta Libertatum retirou autonomia do monarca, instituiu uma ideia de separação de poderes e pavimentou o caminho para os primeiros passos do que hodiernamente se chama de princípio do devido processo legal (LOURENCETTI, 2007). No bojo dessas transformações veio a reboque a centelha da existência de direitos, como o de propriedade e de liberdade, que seriam intrínsecos aos ingleses (a bem da verdade aos barões feudais) e não mais susceptíveis ao simples alvedrio de Vossa Majestade. 

A partir da experiência inglesa vários movimentos de insurgência contra os desmandos do absolutismo foram surgindo, especialmente no século XVIII. Agora capitaneados por uma classe social em ascendência que possuía riqueza devido ao comércio pujante da época, mas que era duramente submetida ao confisco de tributos pela realeza e não possuía os privilégios políticos da Igreja, nem tampouco da nobreza. Tratava-se da classe burguesa que estimulou e se apoiou em diversos movimentos intelectuais da época (conjuntamente chamados de Iluminismo) que discutiam a origem do poder dos dirigentes do Estado e questionavam qual deveria ser o papel dos governantes. Nessa época se fortificaram a negação da origem divina do poder do rei, a explicação de fenômenos sociais e naturais por meio da razão e também a tese de que a origem do Estado é pautada em um pacto social remotamente firmado entre os homens.

Pela ficção do contratualismo os homens pactuaram em abrir mão de parte de sua liberdade para que o Estado mantivesse a harmonia e a segurança social (DALLARI, 2013). O novo ideário de limitar os poderes do Estado era consolidado em documentos normativos a que o próprio governante também estaria submetido. O Estado deixava de ser absolutista (ressalvado o contrato hobbessiano) e passava a ser um Estado Legal. Tais mandamentos sedimentaram o alicerce para as constituições contemporâneas no tocante à existência de direitos que são próprios do homem: direitos naturais anteriores ao próprio direito positivo que serviam de escudo para as pessoas quanto à interferência estatal na esfera privada. Cabe ressaltar que

o contratualismo de Rousseau, que exerceu influência direta e imediata sobre a Revolução Francesa e, depois disso, sobre todos os movimentos tendentes à afirmação e à defesa dos direitos naturais da pessoa humana, foi, na verdade, o que teve maior repercussão prática. (DALLARI, 2013, p. 27).

 

Marcos fundamentais para corroborar a tese dos direitos humanos foram a Declaração de Direitos da Virgínia em 1776 (no contexto da Revolução da Independência das treze colônias americanas) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789 (produção da Revolução Francesa) (PIOVESAN, 2013). Tais documentos inovaram em relação à Magna Carta por trazerem o caráter de universalidade dos direitos naturais do homem, enquanto o documento forjado na Inglaterra se restringia aos ingleses.

Percebe-se o paralelismo evolutivo entre o constitucionalismo e os direitos humanos. Contudo, nesse caminhar apareceram alguns entraves. Na concretização dos Estados Modernos solidificou-se o conceito de soberania estatal, ou seja, os assuntos internos de um país diziam respeito apenas a ele. A despeito de porventura se qualificar os direitos naturais do homem de universais (BONAVIDES, 2012), a soberania estatal era um óbice para que houvesse monitoramento internacional quando esses direitos fossem violados.

Essa concepção extremada de soberania estatal foi duramente criticada quando o mundo foi assombrado pelas atrocidades do nazismo que se travestiram de condutas justas porque encapadas por um texto normativo.  Com a derrocada da máquina de guerra alemã, efetivamente se entronizou a universalidade dos direitos humanos com o advento da Carta das Nações Unidas (1945) e com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), prescrevendo-se a obrigatoriedade das nações de respeitarem os direitos naturais do homem (PIOVISAN, 2013). Enfim, o homem passou a ser sujeito de direitos humanos internacionais.

Repise-se que na onda constitucionalista se verifica um processo de simbiose entre normas/tratados de direitos humanos internacionais e constituições domésticas que passaram a positivar nos seus textos direitos humanos como direitos fundamentais. Não foi diferente no Brasil quando do seu processo de redemocratização em 1985 (PIOVISAN, 1998). A Constituição de 1988 foi extremamente avançada na defesa não só de direitos ligados a liberdades políticas e civis (liberdade de ir e vir, direito à propriedade, direito à vida, direito à escolha dos governantes etc.), como também a direitos sociais, culturais e econômicos (direitos de segunda geração em que o Estado deve atuar em prestação positiva).

Apesar do avanço normativo e ideológico da constituição brasileira, é notório que a prática de suas garantias está aquém da vontade insculpida pelo constituinte. Muitos são os desrespeitos aos direitos fundamentais na vivência do mundo real das ruas do Brasil. Porém, é importante frisar que essas afrontas são vistas como tal: agressões ao ordenamento constitucional que devem ser prontamente combatidas. Se não há concretude nesse cumprimento, pelo menos objetivamente é sabido por todos que é preciso ilidir legalmente tais condutas inconstitucionais.

Por outro lado, mais dificultoso é o embate quando o campo de batalha não tem contornos definidos. É o que ocorre com o assassinato de crianças indígenas em razão de tradições culturais da tribo. Há quem defenda a naturalização desse ritual, posto que os costumes de um povo fazem parte de sua essência. O exercício dos costumes está intimamente jungido ao respeito à diversidade cultural dos povos e tal direito constitucional ombreia com o direito à vida digna (ADINOLFI, [2008?]). Logo, é preciso enfrentar a lógica relativista dos direitos humanos para que o Estado se posicione se é possível atenuar o caráter universal e ontológico dos direitos humanos (LEISTER, 2005). Se os direitos naturais do homem devem ser garantidos pelo simples fato do indivíduo ser um "ser humano", é legítimo algum patamar para atenuar essa ontologia? Se não, o caminho da força penal do Estado é uma alternativa viável para coibir a prática da morte proposital de crianças indígenas?

Essas questões serão analisadas com maior profundidade no capítulo seguinte.

 

3   O INFANTICÍDIO INDÍGENA NA ÓTICA DO RELATIVISMO CULTURAL E DO UNIVERSALISMO DOS DIREITOS HUMANOS

 

Vive-se hoje no Brasil uma democracia alicerçada em uma ordem constitucional avançada no tocante à defesa de direitos fundamentais. A tutela é verticalmente ampla, albergando direitos de diversas gerações (liberdade, direito à vida digna, à saúde, à educação etc.) e também horizontalmente extensa, pois nenhum cidadão brasileiro deve ficar à margem do abrigo da CF/88. Mas a vetusta controvérsia grega sempre volta: afinal quem são os "cidadãos"? Podem os índios ficar à margem da proteção constitucional, máxime em relação à mortalidade provocada intencionalmente em suas crianças?

Primeiramente cabe um esclarecimento. No tocante à terminologia, perante o regramento penal pátrio, existe uma atecnia no uso do termo "infanticídio" para descrever a morte provocada em crianças indígenas.  Segundo o Código Penal brasileiro, o infanticídio difere do homicídio, porque no primeiro "o legislador decidiu criar uma nova figura típica, com pena sensivelmente menor, pelo fato de ser praticado pela mãe contra seu próprio filho, nascente ou recém-nascido, durante o parto ou logo após, influenciada pelo estado puerperal" (MASSON, 2014, p. 63). Assim, no ordenamento nacional, a prática de ceifar a vida das crianças indígenas com motivação fundada na cultura se subsume a bem da verdade na conduta de homicídio.

 Porém, Adinolfi ([2008?], p.3) menciona que o termo pode ter acepção mais ampla, pois "de acordo com a Routledge International Encyclopedia of Women: Global Women's Issues and Knowledge (2000), infanticídio é não somente a morte de bebês, mas também quaisquer 'ações que resultam em mortes de um jovem, dependente membro das espécies' [...]".

Feitas as devidas explicações e superado o entrave conceitual, informa-se que no decorrer deste texto se optou pelo uso do termo infanticídio indígena em sentido aberto, devido ao costume já enraizado quando da discussão da temática.

Avançando na discussão, cabe perceber nesse ponto que uma análise perfunctória sobre a legislação parece dar guarida a ambos os polos da polêmica. De um lado se tem a garantia da inviolabilidade do direito à vida (art. 5° caput CF/88) e do outro a garantia do pleno exercício dos direitos culturais, com destaque para as manifestações indígenas (art. 215 caput e §1°).

Adicionalmente, frise-se que o Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT que prescreve:

Artigo 8°

1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário.

2. Esses povos deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Sempre que for necessário, deverão ser estabelecidos procedimentos para se solucionar os conflitos que possam surgir na aplicação deste princípio.

3. A aplicação dos parágrafos 1 e 2 deste Artigo não deverá impedir que os membros desses povos exerçam os direitos reconhecidos para todos os cidadãos do país e assumam as obrigações correspondentes. (BRASIL, 2004, grifo nosso).

                     

Entretanto, isso de forma alguma pacificou a questão. Basicamente a discussão se centra em qual direito deve preponderar: a) a prática cultural de tirar a vida dos curumins indesejados ou b) a garantia da vida. Wieser e Amaral ([201-]) apontam que numa extremidade da controvérsia está a corrente do relativismo cultural que defende os valores dos costumes tradicionais em face da inexistência de valores universais. Em contraponto, há a vertente que alberga a diversidade cultural como uma garantia legítima, mas não um direito humano absoluto, arrefecendo quando em confronto com outros direitos humanos.

De partida, uma análise ocidental sobre a problemática irá provavelmente rechaçar qualquer possibilidade de permitir essas atrocidades. A questão é então como proceder. O lúcido estudo de Adinolfi ([2008?]) aprofunda a discussão ao trazer os argumentos de dois grandes estudiosos sobre o assunto: Singer, que defende o infanticídio, e Post, que o condena. Para Singer se trata de algo natural e correto do ponto de vista da moral local, pois o infanticídio visa o bem do grupo que sentirá o peso de cuidar de alguém dependente que jamais poderá por conta própria ter uma vida digna. Apregoa que a intangibilidade da vida é algo construído pelo cristianismo e, por conseguinte, desprovido de aceitação universal.  Dentro dessa ótica, moralmente correto seria encerrar a vida de quem não puder vivê-la dignamente. Não se olvidando que ter direito à vida digna é um postulado constitucional que reverbera tanto no ordenamento brasileiro quanto no imaginário das pessoas "civilizadas".

Adinolfi ([2008?]) também traz as importantes considerações de Post. Para ele traduções equivocadas fazem crer que o infanticídio era a forma padrão histórica de tratar as crianças indesejadas. Ademais, ressalta que perceber as comunidades indígenas como ambientes hermeticamente fechados na verdade é um radicalismo trazido de forma consciente pelos antropólogos para contrapor o imperialismo cultural e o universalismo ético, mesmo que com a carga dos pesados efeitos colaterais deste posicionamento.

De qualquer forma, o relativismo cultural é algo que jamais poderá ser desprezado, visto que "a aplicação simplista da ética universal a casos particulares despreza a complexidade da experiência vivida e dilemas do mundo real" (ADINOLFI, [2008?], p. 25). Não significando obviamente a adoção da cegueira moral para quedar inerte frente a costumes indefensáveis como canibalismo, escravidão, genocídio, racismo e caçadores de cabeça (ADINOLFI, [2008?]). Corrobora com esse pensamento a assertiva de que o homem não pode estar preso à cultura, pois é ele que a define (WIESER; AMARAL, [201-]).

Adotando-se como premissa a necessidade da intervenção cultural, cabe então discutir em que bases se dariam o diálogo intercultural, inclusive levantando-se a possibilidade de utilização de medidas estatais coercitivas.

 

3.1 Uma prospecção da eficiência da dogmática penal na abordagem do infanticídio indígena

 

No contexto da controvérsia já apontada sobre a sustentação da hipótese de legitimação cultural que justifique o infanticídio indígena, não é deveras dificultoso se filiar à tese que desconstrói o dogma da universalidade dos direitos humanos como posto pelo Ocidente. Jerónimo (2001) leciona acertadamente que essa máxima é fruto da história e dos valores ocidentais, o que torna o universalismo uma falácia frente ao multiculturalismo das civilizações. Assim, cada povo tem uma visão de mundo particular que reflete diretamente no preenchimento do conceito indeterminado de dignidade humana.

A questão estará em saber até que ponto a origem ocidental destes direitos inviabiliza sua universalização. Porque é inegável - mesmo para os que vêem no discurso dos Direitos Humanos uma forma velada de imperialismo - que estes direitos são hoje uma parte essencial do diálogo internacional e inter-civilizacional. Não podemos ignorá-los. Nem mesmo a pretexto de eles não passarem de uma mentira. (JERÓNIMO, 2001, p. 17).

 

Dito isso, em homenagem ao princípio dogmático do comprometimento com a decidibilidade dos conflitos (FERRAZ JUNIOR, 2008), o Estado brasileiro tem que enfrentar a questão do infanticídio indígena e não simplesmente se esquivar adentrando em infinitos ciclos de debates teóricos.

Assim, a despeito da conduta praticada nas aldeias não ser a bem da verdade passível de vácuo normativo, visto que prontamente encontra tipificação no crime de homicídio, existem tentativas de inovação legislativa para coibir o costume em comento. Wieser e Amaral ([201-]) traçam um panorama geral dos projetos de lei com finalidade de combater o infanticídio indígena com sanções penais específicas. Tais iniciativas parlamentares encontram óbice no discurso da pouca efetividade que alcançariam e sofrem a crítica de que a motivação velada seria criar um ambiente legal propício para monitorar a atividade intestina das comunidades silvícolas ao ponto de interferir nos costumes locais. Nessa linha, Ribeiro (2010) assevera que a simples introdução de um regramento legal deve surtir pouco ou nenhum efeito, visto que para muitos indígenas o não cumprimento do ritual homicida trará maldição para o seu povo.

Parece que o caminho natural para a solução desse impasse perpassa pelo diálogo intercultural. Não basta impor normas cogentes aos povos indígenas sem dar sentido a elas. Importante também frisar a necessária internalização estatal de que a origem dos direitos humanos condiz com uma visão de mundo díspar daquela dos que ficaram alheios a sua construção histórica.

Esta cuestión, trasladada a los derechos humanos, supone tener en cuenta que todas las culturas tienes concepciones propias sobre cómo entender la <>; los conflictos para la construcción de un pacto intercultural comienzan cuando estas concepciones son diferentes y no se expresan como derechos humanos, según el formato construido y exigido por Occidente. Por ello, será necesario, estar atento a aquellas consideraciones de la dignidad humana que en cada cultura están más abiertas a la interpretación y diálogo con otras culturas, puesto que en ellas existen creativas referencias para la consolidación de otra cultura de los derechos humanos. (BRINGAS, 2006, p.86)

 

Uma leitura atenta da Declaração Universal da ONU deixa claro que a universalidade (questionável) dos direitos humanos não se restringe aos direitos de primeira geração, como a vida. A grande inovação foi a de conjugar no mesmo patamar de importância os direitos civis e políticos com os direitos sociais, econômicos e culturais. Dessa forma, não há como plenamente exercer um conjunto dimensional de direitos se o outro estiver ausente.

[...] a Declaração de 1948 introduz extraordinária inovação ao conter uma linguagem de direitos até então inédita. Combinando o discurso liberal da cidadania com o discurso social, a Declaração passa a elencar tanto direitos civis e políticos (arts. 3° a 21) como direitos sociais e econômicos e culturais (arts. 22 a 58). Duas são as inovações introduzidas pela Declaração: a) parificar, em igualdade de importância, os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais; e b) afirmar a inter-relação, indivisibilidade e interdependência de tais direitos. (PIOVISAN, 2013, p. 206-207)

 

Nesse contexto, um legítimo diálogo com os indígenas, a fim de conscientizá-los de que existem alternativas à prática do infanticídio, deve trazer consigo o acesso a políticas públicas de saúde e educação. Alijá-los desses direitos fundamentais de prestação estatal positiva, e concomitantemente premê-los a se apartarem de um hábito cristalizado, será prejudicial para a mútua influência cultural e conseguintemente para ampliação de sua cosmovisão.

A atuação de profissionais de saúde é fundamental para a efetivação do direito à saúde integral, para construção de um diálogo que respeite as tradições locais e ao mesmo tempo assegure que as crianças indígenas e suas famílias possam viver plenamente, sem a sombra do infanticídio a rondar. É preciso que se estabeleça um diálogo que considere o outro, o diferente, como ser autônomo, dotado de racionalidade, capaz de expressar sua vontade e compreender argumentos contrários, aceitando-os e rejeitando-os após análise. Dessa forma, é possível construir alternativas ao infanticídio e morte de crianças, promovendo os Direitos Humanos em sua universalidade e integralidade. (ADINOLFI, [2008?], p. 30)

 

Logo, é evidente que a solução para o intrincado problema da morte intencional de pequenos indígenas transborda o dogmatismo penal. É antes de tudo uma questão de cunho social, que a despeito das discussões ideológicas sobre conteúdo e escopo dos direitos naturais do homem, deve ser firmemente enfrentada pelo Estado brasileiro, mormente com a garantia do acesso aos direitos sociais.

4 CONCLUSÃO

Indubitavelmente há um conflito de direitos fundamentais na questão da morte proposital de crianças indígenas. O direito à vida rechaça tal prática. Na outra banda, o respeito às tradições tenta validá-la. A perspectiva dogmática ocidental tende a conferir maior peso à corrente que eleva o valor da vida. Contudo, o combate ao infanticídio indígena é algo complexo e querer se valer apenas do braço punitivo do Estado para inibir a prática se revela algo ineficiente.

As aldeias indígenas remotas contam com seu próprio direito de convivência e tem seu particular conceito de dignidade humana. Praticam a morte de crianças na certeza de estarem em linha com o bem da coletividade. Assim, não é possível meramente desconsiderar a reiteração que vem ocorrendo há muitas gerações para tentar interromper o infanticídio indígena, sem um diálogo que considere o multiculturalismo. Repisando que nem tampouco é concebível adotar a cegueira moral para legitimar culturalmente a nefasta conduta de ceifar a vida das crianças.

O diálogo intercultural envolve um processo de conscientização de mão dupla. Os defensores dos direitos humanos tem que partir cientes do caráter ficto do seu universalismo, o que por óbvio não anula sua aplicabilidade se considerada as múltiplas cosmovisões das civilizações. Aos não ocidentalizados devem ser apresentadas formas concretas de opções que a monocultura em que estão imersos não lhes propicia. No caso dos indígenas, o acesso a políticas públicas de educação e saúde é crucial para a almejada mudança de postura e consequente aderência a mecanismos menos radicais para tratar os curumins tidos como indesejados no seio da comunidade da aldeia.

REFERÊNCIAS

ADINOLFI, Valéria Trigueiro. [2008?]. Enfrentando o infanticídio: bioética, direitos humanos e qualidade de vida das crianças indígenas. Disponível em: . Acesso em: 18 mar. 2016.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 27. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012.

BRINGAS, Asier Martínez. Los pueblos indígenas ante la construccíon de los procesos multiculturales. Inserciones en los bosques de la biodiversidad. In: BERRAONDO, Mikel (Coord.). Pueblos indígenas y derechos humanos. Bilbao: Universidad de Deusto, 2006. p. 85-105.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

FERRAZ JUNIOR. T. S. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2008. 346 p.

JERÓNIMO, Patrícia. Os direitos do homem à escala das civilizações. Coimbra: Almedina, 2001.

LEISTER, Margareth. Princípio da não-intervenção e soberania nacional. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, VIII, n. 22, ago. 2005. Disponível em: . Acesso em: 19 mar. 2016.

LOURENCETTI, Lucas Tadeu. Magna Charta Libertatum. 2007. Disponível em: . Acesso em: 17 abr. 2016.

MASSON, Cleber. Direito Penal esquematizado: parte especial. 2. v. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.

PIOVISAN, Flávia. Direitos humanos e o direito internacional constitucional. 14. ed. São Paulo, Saraiva, 2013.

 

PIOVISAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998.

 

RIBEIRO, Bruno. Defendendo o indefensável. 2010. Disponível em: . Acesso em: 18 mar. 2016.

 

WIESER, Wanessa; AMARAL, Sérgio Tibiriçá. Infanticídio nas comunidades indígenas. [201-]. Disponível em: . Acesso em: 18 mar. 2016.

[1] autora

[2] autor