O recorte espacial do presente trabalho limita-se à área central da cidade do Rio de Janeiro, então Capital Federal e suas adjacências, composta pela Zona Portuária, o bairro do Estácio de Sá e os primeiros morros cariocas que foram habitados, todos representados aqui, embora sejam citados alguns nomes em particular, todos os redutos do samba serão homenageados durante a exposição. Em uma referência bem humorada de João da Baiana(João Machado Guedes), temos noção de quais eram os redutos qualificados pela classe sambística carioca, para ele “... o samba saiu da cidade. Nós fugíamos da polícia e íamos para os morros fazer samba.” (BAIANA,1970)
Optamos por fazer essa subdivisão porque tais regiões eram conhecidas como redutos da boemia e do samba carioca. Sem desmerecer as demais comunidades, que indubitavelmente colaboraram para a inserção de outras categorias de samba no cenário musical. O objetivo do trabalho é falar do samba de maneira geral. Não buscamos privilegiar o partido-alto, nascido no cais do porto, ou as Escolas de Samba criadas por Ismael Silva e a turma do Estácio de Sá. Nem tão pouco o samba exaltação criado por Ari Barroso(Ari de Resende Barroso), para cair nas graças de Getúlio Vargas. A finalidade da pesquisa como um todo, é valorizar o cotidiano de quem fez e faz o samba carioca. Vamos nos ater às regiões citadas porque foram as primeiras ocupadas pelos artistas populares.
A zona portuária da cidade foi a primeira porção a ser ocupada. Desde a colonização o porto do Rio de Janeiro, situado às margens da Baia de Guanabara, foi a porta de entrada e saída de pessoas e mercadorias. A partir dali a cidade foi se desenvolvendo. Sua principal característica de ocupação reside no fato da mesma estar localizada entre um conjunto de cadeias montanhosas e o mar. Constata-se então que a porção a ser preeenchida sempre foi limitada. Outro fator de entrave para a ocupação era o terreno fluminense, extremamente alagadiço. Para que a região central fosse habitada, ocorreram inúmeros aterramentos.
No que se refere à zona portuária carioca, destacamos três bairros principais Saúde, Gamboa e Santo Cristo. A importância histórica e cultural desses bairros é tamanha, que, em 1998, foi lançado no Centro Cultural José Bonifácio, no bairro da Gamboa, o CD-rom intitulado “Circuito Mauá: Saúde, Gamboa e Santo Cristo” , que conta através de fotos e textos, a história e a importância cultural dos mesmos para a cidade. A ilustração a seguir nos remete para a construção da malha urbana no início do século XX, nota-se ao longo do litoral a presença de infra-estrutura portuária ilustrada no mapa através dos armazéns no cais do porto.O bairro da Saúde localiza-se no centro da cidade e fica entra a Praça Mauá e o bairro da Gamboa. Seu nome é proveniente da fundação da Igreja de Nossa
Senhora da Saúde, no ano de 1789, erguida sobre um pequeno morro de granito, em frente ao mar onde está até hoje. O bairro abrigava na Rua do Valongo o mercado de escravos. Contava também com a fortaleza da Conceição eregida no ano de 1713 sobre o morro com mesmo nome. O bairro da Saúde juntamente com os bairros da Gamboa e Santo Cristo compõem o conjunto artístico, histórico e cultural mais importante da cidade do Rio de Janeiro.
O bairro da Gamboa também está localizado na zona portuária e é conhecido como centro velho da cidade. Seu nome significa pequena lagoa junto do mar. Recebeu esse nome justamente por ocupar a maior parte do porto. O bairro foi durante os séculos XVIII e XIX local preferido das classes mais abastadas para a construção de suas chácaras. A partir da primeira metade do século XX, mais precisamente durante a reforma urbana promovida pelo prefeito Pereira Passos, entre os anos de 1902 a 1906. Não só a Gamboa, como todo o centro da cidade, foi perdendo seu status para os bairros da zona sul carioca, como Laranjeiras e Botafogo. Os casarões antes ocupados pela classe alta da sociedade, passaram a abrigar novos moradores. Migrantes nordestinos ou ex-moradores de cortiços expulsos de suas casas durante a mesma reforma. Foi no início do século XX que passou a ser desenhado o cenário sócio cultural da cidade.
Já o bairro do Santo Cristo é um dos mais pobres da região portuária. Foi inicialmente ocupado por comerciantes portugueses que estabeleceram seu comércio no local e por conseguinte suas moradias. Seu nome é proveniente da igreja localizada em frente ao cais, a Igreja do Santo Cristo.
Os bairros relacionados anteriormente têm em comum a presença negra. E por serem a principal mão-de-obra a época da colonização, os negros e escravos tornaram-se maioria nessas regiões. Inicialmente essas porções urbanas abrigavam os pontos de venda e de engorda de escravos. Após a abolição, os negros optaram por se fixar nesses locais.
Na segunda década do século XX, os nordestinos, em sua maioria baianos, ajudaram a preencher a zona portuária. Muitos vinham em busca de trabalho nos navios recém chegado, ou mesmo como estivadores no próprio porto. Todos eram atraídos pela alta rentabilidade gerada pela atividade. Basicamente a zona portuária era composta por esses dois segmentos. Cada um deles contribuiu para a formação da cultura sambística carioca das formas mais peculiares.
A contribuição da comunidade negra no processo está na dança e no batuque. Encontramos registros da palavra no Brasil desde o século XVIII. Encontramos em SANDRONI(2001):
“ (...) não parece ser muito acerto em política o tolerar que pelas ruas e terreiros da cidade façam multidões de negros de um e de outro sexo os seus batuques bárbaros a toque de muitos horrorosos atabaques, dançando desonestamente e cantando canções gentílicas” (SANDRONI, 2001)
O autor defende a teoria de que enquanto o lundu, tinha seu valor junto às grandes sociedades, o batuque era considerado rural e atrasado, símbolo de selvageria. Aliada a essas influências musicais negras, contamos com a dança presente nesse universo. A famosa umbigada ocorria durante a roda promovida ao redor dos músicos. Ainda em SANDRONI(2001), encontramos referência a dança promovida.
“ Um delírio de samba e fados(...) Uma viola chocalha o compasso, pandeiro acompanha, geme a sanfona(...)A roda fecha(...)Os circundantes batem palmas, marcando a cadência..., olhando o saracoteio lento, ou as umbigadas desenfreadas dos fadinhos...” (SANDRONI, 2001)
Prioritariamente, era batucada, com características fortes da polca, da rixa, do fandango e o maxixe importado da Europa. Na verdade não havia uma característica própria, era tudo misturado. Nem se pode dizer que no final do século XIX havia um ritmo que fosse nacional, não havia uma identidade musical. Porém, no início do século XX, com a chegada maciça da população originária da Bahia, houve uma ruptura.
Os negros provenientes do Recôncavo baiano, motivados por melhores condições de vida e de trabalho na zona portuária, deslocaram-se para o Rio de Janeiro no final do século XIX, carregando consigo as características predominantemente matriarcais de sua cultura, tendo em seu epicentro as tias baianas, que desempenhavam um papel de sustentáculo dessa comunidade negra, conhecida como “Pequena África”, recebendo esse nome por ter arraigado em seu interior tradições bem definidas e amplamente defendidas por seus integrantes, sendo posteriormente agregadas ao cotidiano carioca. As tias baianas exerceram influência em todos os aspectos da comunidade negra no Rio de Janeiro, transmitiam os rituais sócio-políticos e culturais de seu povo, através da música e da religião, suas casas eram como refúgios para a celebração das tradições do povo negro e mestiço.
Após a reforma urbana, promovida pelo prefeito de Pereira Passos(1902 a 1906) e o consequente deslocamento da aristocracia para os bairros da Zona Sul, como Botafogo e Laranjeiras, as tias baianas passaram a habitar os antigos casarões. O espaço era dividido de maneira democrática, na sala era tocado o chorinho, permitido pelas autoridades, no terreiro(ao fundo da casa) ficavam as rodas de samba e as “giras” de candomblé(nome dado a celebração dessa religião) sempre mal vistos. Quando a polícia passava, os chorões tocavam mais alto para que não fosse percebido o batuque no fundo da casa.
Fazendo menção a essa prática, o compositor João da Baiana criou a música “Batuque na Cozinha”, gravada em 1968 em LP intitulado “Gente da Antiga” com participação de Pixinguinha e Clementina de Jesus, que diz: “ Batuque na cozinha sinhá não quer/ por causa do batuque/ Eu quebrei o pé”, fazendo referência ao terreiro, onde aconteciam as reuniões. No que se refere a esse cotidiano, não poderíamos deixar de mencionar a “tia baiana” mais famosa e respeitada da história de samba, Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, representante fiel da realidade carioca, que chegou a cidade em 1876 e preocupou-se em manter vivo o
ritual cotidiano que praticava na Bahia. Sendo mãe-de-santo e cozinheira afamada, o seu principal ofício voltado para a barraquinha que vendia comidas típicas de sua terra. Para Tia Ciata e todas as “tias baianas” era normal passarem o dia vestidas e enfeitadas com colares, pulseiras e panos na cabeça. Essa caracterização era fundamental para seu reconhecimento nas ruas. Na ilustração abaixo, notamos o valor da indumentária para a manutenção e transmissão da imagem tradicional trazida do Recôncavo baiano.
Convém destacar que, a ocupação do centro da cidade do Rio de Janeiro pelas classes mais humildes, não se concentrou na zona portuária, se expandiu para os arredores da Praça Quinze de Novembro, passando pela Praça Onze de Junho(nome oficial, em evocação à batalha naval do Riachuelo, episódio da Guerra
do Paraguai), a estação ferroviária D.PedroII(atual Central do Brasil) e chegando até a Prainha(atual Praça Mauá). Tal ocupação ocorreu prioritariamente em função do fator econômico, muitos trabalhadores necessitavam residir perto de seus empregos, tendo em vista a dificuldade de locomoção, afinal o principal meio de transporte ainda era o bonde elétrico, que chegava a atingir a velocidade máxima de 20Km/hora, no caso de trajetos mais longos o bonde levava horas.
Em relação à expansão urbana carioca, no que concerne a década de 1930, tem destaque a região conhecida como o Largo do Estácio de Sá, porção da cidade que à época detinha grande movimento de pessoas e um comércio muito intenso, sendo “bem e mal” frequentado, o Largo do Estácio segundo Francisco Duarte(1979) em entrevista ao Jornal do Brasil, disse: “ Ponto de reunião, de noitadas de samba de partido-alto, violão, prato-e-faca, palma-de-mão e muita cantoria improvisada, brigas e criação de sambas”, de acordo com muitos sambistas, a alma do samba carioca nasceu no Estácio, ainda em mesma entrevista, segundo DUARTE(1979):
“ Ali, entre 1923 e 1930- arremata o jornalista- entre o Largo do Estácio e a subida do Morro de São Carlos, nas esquinas das Ruas Machado Coelho e Estácio de Sá, no Beco D. Paulina, subida da Rua Maia de Lacerda ou descida da Pereira Franco rumo à zona do meretrício, nasceu o samba carioca, o samba urbano que hoje conhecemos” (DUARTE, 1979)
A evolução do samba, segundo muitos sambistas, aconteceu no bairro do Estácio, ele(o samba) deixou de ser rural e passou se familiarizar com o cenário carioca sucessor da reforma urbanística(1902-1906) de Pereira Passos, iniciando assim um processo de integração com a nova realidade citadina que desenhava-se em meio ao aspecto nacional da cultura, sendo a partir da década de 1920, operada a transformação gradual na capital federal, um borbulhar de acontecimentos cada vez mais rápidos e que se estendiam a todas as áreas que compõem a sociedade, inclusive no âmbito cultural. As manifestações de todas as classes aconteciam em virtude da mutação do meio e as respostas eram as criações intelectuais. E ousamos dizer que todas as produções da época eram de intelectuais, afinal “intelectual” não é só aquele que escreve livros, pinta belíssimos quadros ou faz poemas, estamos falando de todo e qualquer indivíduo capaz de criar uma obra extremamente frutífera, resultando em legado inestimável no que se refere à esfera nacional.
Apesar de discursos inflamados virem à tona, ao longo da problematização do presente trabalho, o objetivo do mesmo é mostrar a realidade, o cotidiano dos trabalhadores, músicos e até os malandros cariocas do século passado.
Os depoimentos exibidos são de pessoas que partilharam dessa realidade que buscamos demostrar, assim como o depoimento do sambista Juvenal Lopes ao repórter Tim Lopes:
“ Fiquei morando numa casa de cômodos da Rua Maia Lacerda, onde foi a primeira sede da Deixa Falar. Mas nó éramos muito perseguidos pela polícia. Chegavam no Estácio, gente corria pra[sic] Mangueira, que lá havia o Nascimento, delegado que dava cobertura e a gente sambava mais a vontade” (LOPES, 13/02/1980 JB)
O depoimento apresentado anteriormente, mostra a realidade difícil do sambista, marginalizado, no final da década de 1920, convém esclarecer algumas menções feitas nessa entrevista. A “Deixa Falar” citada, é um dos primeiros Ranchos Carnavalescos do Rio de Janeiro, criado no bairro do Estácio de Sá e o local de refúgio dos sambistas não poderia ser outro senão o morro da Mangueira, também mencionado. Em relação a ocupação dos morros e encostas cariocas, julgamos importante lembrar, que esse preeenchimento data do final do século XIX, assim como as demais porções do Centro da cidade.
Na verdade, o número de habitações apenas cresceu em virtude da dificuldade de moradia das camadas de trabalhadores mais humildes da sociedade,
os mesmos viram nessas ocupações irregulares dos morros a opção mais útil naquele dado instante, visando a prática locomoção. Em relação à habitação dos morros, segundo uma passagem do cronista Francisco Guimarães, o “Vagalume”:
“ Antigamente o Morro da Mangueira era uma espécie de reduto militar. Ali só moravam soldados do Exército: 22° de Infantaria e dos regimentos de cavalaria e artilharia. Eram em geral nortistas, que, aqui chegando com famílias, construíam suas barracas próximo ao Quartel e se alojavam no Morro.” (GUIMARÃES,1978)
A questão da criação do samba, no seio das classes mais humildes, é incontestável por qualquer estudioso do tema, onde nasceu o samba, qual bairro ou
estado brasileiro é o maior responsável por essa criação, não vem ao caso. O importante é que o samba desceu o Morro, saiu da “Pequena África” carioca e atingiu as massas, chegou ao rádio e depois ao mundo. Hoje, o samba é o representante legítimo da cultura carioca, gera um verdadeiro espetáculo e atrai pessoas de todo o globo.

 Bibliografia:

CALABRE, Lia. Folia na Praça Mauá: Rádio Nacional, Boemia e Carnaval In Circuito Mauá: Saúde, Gamboa e Santo Cristo. Rio de Janeiro, CD-ROM, 1998

LOPES, Nei. Partido-Alto: samba de bamba. Rio de Janeiro: Pallas, 2005
MATOS, Cláudia. Acertei no Milhar: malandragem e samba no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982
SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, UFRJ,2001
SODRÉ, Muniz. Samba o Dono do Corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 2°. ed,1998
VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, UFRJ, 5°. ed. 2004