A discricionariedade dos atos administrativos praticados com fundamento em conceito jurídico indeterminado e a possibilidade do controle judicial de seu mérito

 

Danilo Lemos de Miranda

 

1 INTRODUÇÃO; 2 CRITÉRIOS DE DEFINIÇÃO DA DISCRICIONARIEDADE OU VINCULAÇÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS; 3 O CONTROLE JUDICIAL DOS ATOS ADMINISTRATIVOS FUNDADOS EM CONCEITO JURÍDICO INDETERMINADO; 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.
 

RESUMO

 

Trata-se de estudo em torno do controle judicial de mérito do ato administrativo ante a existência de conceitos jurídicos indeterminados que podem servir como fundamento para a atuação da Administração, em atendimento ao princípio da legalidade. Neste sentido, serão tratados dos mais importantes conceitos relacionados ao controle da Administração Pública no sistema brasileiro, merecendo destaque a distinção entre vinculação e discricionariedade, além da definição de mérito administrativo e da distinção entre controle de mérito e controle de legalidade, apresentando-se ainda os limites do controle exercido pelo Poder Judiciário.

Palavras-chave: Constitucionalização do Direito Administrativo. Atos administrativos. Mérito administrativo. Controle judicial. Conceito jurídico indeterminado.

 

1 INTRODUÇÃO

 

O objetivo principal do presente artigo é verificar a possibilidade de controle judicial do mérito dos atos administrativos praticados com fundamento em conceito jurídico indeterminado. Neste sentido, questiona-se: pode o Poder Judiciário controlar a interpretação que o Poder Executivo confere aos conceitos jurídicos indeterminados previstos nas leis que embasam a prática de seus atos administrativos? Para tanto, serão analisados todos os conceitos relevantes relacionados aos atos administrativos, ao mérito dos atos administrativos, à discricionariedade e à ideia de conceito jurídico indeterminado.

Como os atos administrativos devem atender a determinadas finalidades legais e ao interesse público, é possível o seu controle sob diversas perspectivas. Neste contexto que surge a ideia de abordar o controle judicial do mérito dos atos administrativos fundamentados em leis baseadas em conceitos jurídicos indeterminados. Com efeito, dada a indeterminação destes conceitos, confere-se ao próprio administrador enquanto intérprete da norma jurídica a tarefa de determinar o seu sentido e alcance em cada caso.

Assim, a importância da pesquisa reside na definição da natureza jurídica (se mérito ou legalidade administrativa) desta tarefa interpretativa do administrador e na possibilidade de que o Poder Judiciário a controle. Isto porque, caso seja considerada atividade de mérito, é questionável a possibilidade de tal controle já que o Judiciário deve se restringir a análise de legalidade. Assim, serão abordados os critérios de definição da discricionariedade ou vinculação dos atos administrativos e, em seguida, será analisada a possibilidade de controle judicial dos atos administrativos fundados em conceito jurídico indeterminado.

 

2 CRITÉRIOS DE DEFINIÇÃO DA DISCRICIONARIEDADE OU VINCULAÇÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS

 

Conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (2011), atos vinculados são aqueles que não dão nenhuma margem de liberdade ao agente responsável por sua prática, existindo inequívoca previsão legal sobre o seu conteúdo a depender da situação concreta com que se depara, diferenciando-se dos atos discricionários que dão à Administração certa liberdade de escolha, obviamente restrita à lei (princípio da legalidade), cabendo o exercício de juízo de oportunidade e conveniência. Nos casos de atos vinculados, segundo José dos Santos Carvalho Filho (2009), a ausência de qualquer resquício de liberdade faz com que o agente fique limitado a simplesmente reproduzi-los.

Em verdade, mesmo nos atos discricionários há vinculação, uma vez que não é todo ele que pode ser praticado de acordo com o juízo de conveniência e oportunidade da Administração Pública. A discricionariedade diz respeito tão somente à valoração dos motivos e à escolha do objeto. Quanto à competência, à forma e à finalidade, mesmo nos atos ditos discricionários, há vinculação, por razões que serão a partir de agora expostas (ALEXANDRINO; PAULO, 2011).

Neste sentido, vale mencionar os elementos do ato administrativo: competência, finalidade, forma, motivo e objeto. Então, repise-se, a tarefa de identificação quanto a ser discricionário ou vinculado um ato administrativo deve ocorrer sobre estes dois últimos elementos, uma vez que os demais sempre serão vinculados, bastando que um deles seja discricionário, para que o ato possa ser assim classificado. Para melhor compreender o que está sendo dito, necessário será discorrer sobre cada um dos elementos dos atos administrativos acima mencionados.

Também chamados de “requisitos de validade” por alguns autores, são extraídos do Art. 2º da Lei 4.717/195, que regula a ação popular, instrumento apto para desconstituir atos lesivos à moralidade administrativa (ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 415):

Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de: a) incompetência; b) vício de forma; c) ilegalidade do objeto; d) inexistência dos motivos; e) desvio de finalidade.

Segundo Fernanda Marinela (2010, p. 237), a escolha quanto à terminologia a ser utilizada “é somente uma questão de estilo”, “não existindo qualquer incorreção” em quaisquer das alternativas. Ainda no tocante à terminologia, mais robustos sãos os argumentos de Celso Antônio Bandeira de Mello (2008), que prefere chamá-los de pressupostos, dividindo-os em pressupostos de existência e pressupostos de validade, pois a expressão “elemento”, para ele, ao contrário do que se passa em relação ao motivo e à finalidade, pressupõe a existência do ato.

“Competência”, segundo José dos Santos Carvalho Filho (2009, p. 100), é “o círculo definido por lei dentro do qual podem os agentes exercer sua atividade”, somente cabendo à lei defini-la (por isso, é sempre vinculada). O autor sugere ainda que esta competência seja chamada de “competência administrativa”, para diferenciar das competências legislativas e jurisdicionais, com as quais não se confunde.

Há divergência quanto ao rol de suas características. Enquanto a corrente majoritária, capitaneada por Celso Antônio Bandeira de Mello (2008) elenca a irrenunciabilidade, a intransferibilidade, a imodificabilidade e a imprescritibilidade; outros, como José dos Santos Carvalho Filho (2009), restringem-se a mencionar a inderrogabilidade e a improrrogabilidade.

Por sua vez, “forma” “é o meio pelo qual se exterioriza a vontade” (CARVALHO FILHO, 2009, p. 105). Ou, em outros termos, é a maneira através da qual a Administração Pública transfere para o mundo da vida aquilo que projetou. Como é a lei quem a define, também ela será sempre vinculada.

“Finalidade” “é o elemento pelo qual todo ato administrativo deve estar dirigido ao interesse público” (CARVALHO FILHO, 2009, p. 114). Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2011) dizem ser possível identificar nos atos administrativos uma finalidade geral ou mediata que sempre será a satisfação do interesse público, e outra específica ou imediata, que seria um objetivo específico previsto em lei e que deve determinar a prática do ato. Como a finalidade mediata é sempre a mesma, também este elemento será sempre vinculado.

Ainda segundo José dos Santos Carvalho Filho (2009, p. 104), “objeto”, igualmente chamado de “conteúdo”, “é a alteração no mundo jurídico que o ato administrativo se propõe a processar”. Fernanda Marinela (2010, p. 252) divide esta categoria em objeto natural, que seria o efeito jurídico produzido pelo ato, independentemente de previsão expressa; e objeto acidental, que é o efeito jurídico produzido em decorrência de cláusulas acessórias.

Por fim, “motivo” é “a situação de fato ou de direito que gera a vontade do agente quando pratica o ato administrativo” (CARVALHO FILHO, 2009, p. 107). Celso Antônio Bandeira de Mello (2008) faz algumas distinções importantes quanto a este elemento. Primeiramente, o motivo do ato não se confunde com o motivo legal, pois enquanto este é uma previsão abstrata, aquele é a própria situação material que deu suporte para o ato. Também não se confunde com o “móvel”, que é a intenção interna do agente, enquanto o motivo é externo a ele. E, por último, difere-se da motivação, que é um requisito formal do ato.

Esta possibilidade da avaliar a conduta nos atos administrativos, através de juízo de conveniência e oportunidade, é chamada de mérito administrativo. Sobre o assunto, são corretas as lições de José dos Santos Carvalho Filho (2009, p. 119): “pode-se, então, considerar mérito administrativo a avaliação da conveniência e oportunidade relativas ao motivo e ao objeto, inspiradoras da prática do ato discricionário”.

Ainda segundo José dos Santos Carvalho Filho (2009), a valoração deste mérito administrativo não é estática, podendo se modificar a depender da situação. Isto é, um mesmo ato que é conveniente e oportuno numa determinada circunstância pode não ser em outra, da mesma forma que a conveniência e oportunidade que havia para um ato num determinado momento, por conta daquelas circunstâncias, pode deixar de haver em outro, por conta das novas circunstâncias.

Em casos tais, em tese, somente a própria Administração poderá controlar o ato fundado na perda superveniente da oportunidade ou conveniência, por se tratar de controle de mérito administrativo, o que, regra geral, somente compete à própria Administração e não ao Judiciário (MARINELA, 2010).

Assim, o critério de identificação acerca da discricionariedade ou vinculação de um ato administrativo é liberdade da Administração Pública, quando da sua realização, na escolha do objeto e na valoração dos motivos.

 

3 O CONTROLE JUDICIAL DOS ATOS ADMINISTRATIVOS FUNDADOS EM CONCEITO JURÍDICO INDETERMINADO

 

No sistema brasileiro de controle dos atos administrativos, o controle de legalidade ou de legitimidade pode ser feito tanto pela própria Administração Pública, quanto pelo Judiciário, ao passo em que o controle de mérito somente pode ser realizado pela própria Administração. O controle de mérito consiste na avaliação da conveniência e da oportunidade do ato administrativo, isto é, na verificação quanto à existência de vantagens para a Administração, sendo-lhe, pois, favorável, enquanto que o controle de legalidade consiste na verificação quanto à obediência da lei em sentido amplo na realização do ato administrativo. (MARINELA, 2010)

José dos Santos Carvalho Filho (2009, p. 120) apresenta como fundamento para esta vedação de controle do mérito administrativo pelo Poder Judiciário o seguinte raciocínio: “Se ao juiz cabe a função jurisdicional, na qual afere aspectos de legalidade, não se lhe pode permitir que proceda a um tipo de avaliação, peculiar à função administrativa e que, na verdade, decorre da própria lei”.

A assertiva de que somente a própria Administração Pública pode proceder com controle de mérito sobre os atos administrativos encontra suporte também na jurisprudência das cortes superiores brasileiras. Em julgado recente no Supremo Tribunal Federal, por exemplo, do Agravo de Instrumento 833.788/RJ (BRASIL, 2013), em decisão do relator, o Ministro Dias Toffoli, foi asseverado que “é vedado ao Poder Judiciário o controle sobre o mérito administrativo, sob pena da violação do princípio da separação dos poderes, cabendo, desse modo, apenas a aferição da legalidade do ato administrativo” – é possível observar neste voto o fundamento constitucional da vedação, qual seja a tripartição dos poderes.

Também no Superior Tribunal de Justiça é axiomático este posicionamento. Veja-se fundamentação da Ministra Eliana Calmon, no julgamento de Agravo Regimental no Mandado de Segurança 13.918/DF (BRASIL, 2009):

(...) Descabe ao Poder Judiciário realizar o controle de mérito dos atos impugnados, já que editados com esteio em discricionariedade que não contrariou qualquer princípio administrativo, fato que, se existente, poderia autorizar a atuação do Judiciário.

Na fundamentação da magistrada há uma ressalva que se mostra de imensurável relevância para compreender a tese que ora se busca defender: se houvesse ofensa a princípio administrativo, a atuação do Judiciário estaria permitida. Isto porque sairia do campo do mérito administrativo e adentraria no controle de legalidade, pois esta “legalidade” não se resume tão somente à obediência de leis, mas de qualquer norma jurídica, o que inclui, além das regras, os princípios jurídicos (ÁVILA, 2005).

Deste modo, se, por exemplo, a Administração no exercício do mérito administrativo violar a moralidade prescrita no Art. 37 da Constituição Federal, pode o Judiciário invalidar este ato, o que sugere que estaria o Poder controlando o mérito do ato. Ocorre que o que analisa o Judiciário não é se o ato foi conveniente e oportuno, mas se violou o referido princípio constitucional, de modo que se trata de controle de legalidade e não de controle de mérito, e esta é a interpretação da doutrina administrativista majoritária (ALEXANDRINO; PAULO, 2011).

Por outro lado, mesmo sabendo não ser aceita no Direito brasileiro a tese de que a constitucionalização do subdomínio administrativo justificaria o controle do mérito administrativo por parte do Judiciário, uma vez que o juízo quanto à obediência dos vetores constitucionais é controle de legalidade e não de mérito, outra suposta exceção, que embora não seja assim taxada, surge com mais força na doutrina contemporânea: trata-se dos atos administrativos praticados com fundamento em conceito jurídico indeterminado.

Por força do princípio da legalidade, todos os atos administrativos pressupõem uma autorização ou uma determinação legal, não bastando a mera ausência de norma proibitiva (ALEXANDRINO; PAULO, 2011).

Ocorre que algumas normas são compostas pelo que se chama de “conceito jurídico indeterminado”, e também nelas podem se fundar os atos administrativos, sendo que em casos tais é possível que a margem interpretativa concedida pelo conceito não permita à Administração apontar com certeza o rumo de sua atuação, o que sugere possuir ela discricionariedade, como apontam Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2011, p. 422):

Quando uma situação concreta estiver enquadrada na zona de indeterminação (ou “área de incerteza”, ou “zona de penumbra”) de um conceito jurídico indeterminado, não será possível estabelecer uma única atuação juridicamente válida. Mas precisamente, quando o caso concreto escapa às áreas de certeza positiva e negativa de um conceito jurídico indeterminado, a administração tem discricionariedade para decidir acerca do enquadramento, ou não, da situação na norma legal.

Para explicar a posição, os referidos autores (2011) ensinam que os conceitos jurídicos indeterminados são compostos por três partes: (i) uma zona de certeza positiva, que abrange todas as situações que certamente se enquadram no conceito; (ii) uma zona de certeza negativa, que abrange todas as situações que certamente não se enquadram no conceito; e (iii) uma zona de incerteza, que depende sempre do caso concreto e na qual a Administração Pública possui discricionariedade.

Se o mérito administrativo é típico dos atos discricionários, e se são discricionários os atos administrativos fundados em conceito jurídico indeterminado, e se pode o Judiciário controlar a interpretação que a Administração Pública dá à lei, é lógica a conclusão de que pode o Judiciário controlar o mérito administrativo dos atos administrativos fundados em conceito jurídico indeterminado. Contudo, não parece válido o mencionado silogismo, por aparentar-se equivocada a segunda premissa, isto é, a tese de que constitui mérito administrativo a atividade interpretativa da Administração Pública acerca do sentido e alcance do conceito jurídico indeterminado em que funda a sua conduta.

Segundo Humberto Ávila (2005), é certa a existência de diferença entre norma e enunciado normativo, sendo a primeira o resultado do processo interpretativo da segunda, que se resume à mera linguagem. Assim, para fundar a sua atuação em lei, como preconiza o princípio da legalidade, a Administração Pública sempre tem que realizar exercício de interpretação, contenha ou não um conceito jurídico indeterminado o enunciado linguístico deste fundamento legal.

É justamente sobre essa atividade interpretativa da Administração Pública que recai o controle de legalidade a ser realizado por ela própria ou pelo Judiciário. É verificar se a lei foi interpretada corretamente na prática do ato, e se não foi, é inequívoca a sua ilegalidade. Por todos estes motivos, o ordenamento jurídico brasileiro não comporta em qualquer circunstância o controle do mérito administrativo realizado pelo Judiciário, uma vez que todas as hipóteses como exceção a esta afirmação são, em verdade, hipóteses de controle de legalidade.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Todos os atos administrativos devem sempre possuir fundamento legal e constitucional, sob pena de eivarem-se dos vícios da ilegalidade ou da inconstitucionalidade, sendo, portanto, inválidos. Obviamente, é possível que o Judiciário controle estes atos sob a perspectiva da obediência ao texto jurídico-constitucional, mesmo que se trate de atos discricionários, mas isso não importa controle de mérito e sim de legalidade. É que esta “legalidade” no Direito Administrativo não envolve tão somente a lei em sentido estrito, mas qualquer norma, incluídos os princípios e as regras jurídicas contidas na Constituição.

No mesmo passo, os conceitos jurídicos indeterminados, utilizados no intento legislativo de conceder ao intérprete jurídico uma maior liberdade na aplicação da norma diante das necessidades do caso concreto, podem servir de fundamento para a prática de atos administrativos. Contudo, esta liberdade interpretativa por elas conferida não pode ser confundida com discricionariedade administrativa, de modo que o resultado dela é a interpretação (ou seja, a própria norma), e não o mérito administrativo, cabendo controle do Judiciário, mas novamente de legalidade e não de mérito.

 

REFERÊNCIAS

 

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo descomplicado. 19. ed. São Paulo: Método, 2011.

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos.4a.edição, 3a tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Mandado de Segurança 13.918/DF. Relator: Min. Eliana Calmon. DJe 20/04/2009. Disponível em Acesso em: 02 nov 2013.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento 833.788/RJ. Relator: Min. Dias Toffoli. DJe03/09/2013. Disponível em Acesso em: 02nov. 2013.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 4. ed. Niterói: Impetus, 2010.

MELLO, Celso Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.