Introdução à Causa

O desrespeito aos direitos fundamentais e, por conseguinte, à dignidade da pessoa humana, são costumários em Honduras. Há décadas o Estado hondurenho enfrenta toda a sorte de instabilidade política e econômica. Os recentes eventos que ocasionaram a deposição do presidente Manuel Zelaya e conduziram Roberto Micheletti à chefia de Estado, tornaram evidentes o desrespeito contumaz aos Direitos Humanos e a fragilidade do sistema normativo hondurenho.

Em abril de 1980, após a renúncia de Anastasio Somoza na Nicarágua, e a derrubada do Presidente de El Salvador, Carlos Humberto Romero, foi definida assembléia constituinte em Honduras e promulgada, tempos depois, a nova Constituição. Eleito presidente após a realização de eleições gerais em novembro de 1981, Roberto Suazo Córdoba, do Partido Liberal, valeu-se da cooperação dos Estados Unidos para apaziguar contendas políticas e militares.

No conturbado cenário político hondurenho daquela época, foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 7 de outubro de 1981, que Ángel Manfredo Velásquez Rodríguez, estudante da Universidade Nacional Autônoma, havia sido preso de forma violenta e arbitrária por membros da Direção Nacional de Investigação (DNI) e do G-2 das Forças Armadas, em Tegucigalpa, na tarde de 12 de setembro de 1981. Testemunhas afirmaram que a vítima, conduzida juntamente com outros detidos à II Estação da Força de Segurança Pública, fora interrogada, torturada e acusada de participar de supostos delitos políticos. Em 17 de setembro de 1981 encaminharam-na ao I Batalhão de Infantaria, onde prosseguiram os interrogatórios. Ainda assim, todos os corpos policiais e de segurança negaram a detenção de Angel e não forneceram explicações sobre seu desaparecimento.

 

Procedimento na Comissão Interamericana de Direitos Humanos

 

A denúncia nº 7920 foi transmitida ao Governo de Honduras e, em diversas oportunidades, a Comissão solicitou esclarecimentos sobre os fatos.  

Sem receber quaisquer informes, o colegiado presumiu verdadeira a increpação (art. 42, do Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos[1]), advertindo tais  acontecimentos constituíam gravíssimas violações ao direito à vida (art. 4º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos) e ao direito de liberdade pessoal (art. 7º, da Convenção), conforme descrito na Resolução 30/83. 

Em 18 de novembro de 1983 o Estado postulou que fosse reconsiderada a Resolução, pois não se haviam esgotado os recursos da jurisdição interna e os esforços para elucidar o desaparecimento de Velásquez Rodríguez. A Comissão manifestou-se de acordo com o pedido e, “continuando o estudo do caso”, solicitou informações, dentre outras, acerca do exaurimento dos recursos na jurisdição interna. Posteriormente, na Resolução 22/86, de 18 de abril de 1986, a Comissão decidiu encaminhar o caso à Corte, em razão da ausência de informes suficientes para a pleiteada reconsideração da Resolução 30/83. 

 

Procedimento na Corte Interamericana de Direitos Humanos

 

À Corte foi reconhecida competência para conhecer a denúncia, ratificada a Convenção por Honduras, em 8 de setembro de 1977, e depositado, em 9 de setembro de 1981, o instrumento de reconhecimento da competência contenciosa do colegiado[2]. 

O caso foi submetido à Corte em 24 de abril de 1986, sob invocação dos arts. 50 e 51, da Convenção Americana. A Comissão solicitou que se decidisse acerca da existência de violação, por parte do Estado, dos artigos 4° (direito à vida); 5° (direito à integridade pessoal) e 7° (direito à liberdade pessoal), da Convenção. Postulou, ainda, a reparação dos danos provocados pela inobservância destes direitos.

A petição formulada pela Comissão foi remetida ao governo pela Secretaria da Corte, em 13 de maio de 1986.

O Estado de Honduras manifestou-se, em 31 de outubro de 1986, formulando preliminares: (a) ausência de declaração formal de admissibilidade pela Comissão; (b) omissão do procedimento de solução amigável, em contraposição ao art. 48.1.f, da Convenção; (c) inexistência de investigação in loco (art. 48.2., da Convenção); (d) falta de audiência prévia (art. 48.1.e); (e) aplicação indevida dos arts. 50 e 51, da Convenção; e (f) não exaurimento dos recursos de jurisdição interna.

Ao reconhecer a matéria como relativa à interpretação e aplicação das normas processuais da Convenção, a Comissão estabeleceu como ponto de partida que a inobservância de certas formalidades nem sempre é relevante na jurisdição internacional, desde que preservadas as condições necessárias ao equilíbrio dos direitos das partes, de forma a alcançar os fins procedimentais. Ainda, estimou necessário verificar a existência de ofensa ao direito de defesa do Estado excipiente ou de impedimento ao exercício de quaisquer outros direitos reconhecidos pela Convenção.

Neste campo, ao refutar as preliminares invocadas pelo governo de Honduras, a Comissão constatou:

1.         O recebimento e o processamento da denúncia torna prescindível uma declaração formal de admissibilidade.  “Ao solicitar informações a um governo e processar a petição, aceita-se em princípio a admissibilidade da mesma (...), sempre que a Comissão, ciente da autuação pela Secretaria, venha a dar continuidade à tramitação, sem expressa declaração de inadmissibilidade do reclamo (art. 48.1.c, da Convenção).” Por conseguinte, a falta de uma declaração expressa da admissibilidade da petição não configurou impedimento ao regular processamento da denúncia perante a Comissão e ao respectivo exame pela Corte (arts. 46 a 51 e 61.2., da Convenção).

2.         O procedimento de solução amigável não exibe caráter imperativo; além do que, não seria possível realizá-lo, em razão das específicas características da hipótese concreta, imperfeitamente definidos os fatos por falta de cooperação do governo, que negou peremptoriamente qualquer responsabilidade. Conforme argumentou a Comissão, no caso de denúncia de desaparecimento forçado de pessoa por ação das autoridades de um Estado que negue tais informações, inviável demover esforços para obter acordo estribado no respeito aos direitos à vida (art. 4º), à integridade (art. 5º) e liberdade pessoais (art. 7º).

3.         Sobre a inexistência de investigação in loco para apurar os fatos denunciados –  “trâmite obrigatório e indispensável”, como alegou o Estado – redarguiu a Comissão tratar-se de providência que deve ser determinada, tão somente, em casos graves e urgentes. Ademais, não se tratando de diligência previamente requerida pelas partes; nem sendo possível ordená-la de ofício em todas as “denúncias individuais, muito numerosas”. Sobre as investigações in loco (arts. 48.2., da Convenção; 18.g,, do Estatuto da Comissão), concluiu que tal instrumento de comprovação dos fatos está submetido ao poder discricionário da Comissão, de ofício ou a requerimento das partes.

4.         No exame das objeções governamentais, também, a Comissão sustentou que a audiência prévia, como etapa processual, deve ocorrer apenas quando necessária para complementar a informação das partes, ou mesmo quando por estas expressamente requerida. Nesta fase a Comissão poderá pedir ao representante do Estado denunciado qualquer informação relativa à questão e receber, se for o caso, as exposições verbais ou escritas ofertadas pelos interessados. Na hipótese analisada, nem os denunciantes, nem o Estado, solicitaram a realização da audiência que, ademais, não foi considerada imprescindível pela Comissão.

5.         O Estado de Honduras pleiteou que a Corte declarasse não esgotados pela Comissão os procedimentos fixados nos arts. 48 a 50 da Convenção; circunstância que permitiria obstar o envio do caso ao órgão jurisdicional, nos termos do art. 61.2. A decisão remeteu às Resoluções ns. 30/83 e 22/86, não designadas formalmente como informações, para os efeitos do art. 50.  Decorrentes, daí, duas questões: (a) a primeira, sobre os requisitos dos informes elaborados em consonância com o art. 50, perquirindo se ajustadas a tais exigências as Resoluções adotadas pela Comissão; (b) a segunda, acerca da existência das Resoluções, “a última das quais, ao mesmo tempo que confirma a precedente, contém a decisão de submeter o caso à Corte.”

Observou-se que a Comissão estabelece, em termos muito amplos, os requisitos do informe preparado pelo colegiado no cumprimento do art. 50, de modo a contemplar os fatos e as conclusões da Comissão, aos quais é possível agregar as proposições e recomendações consideradas adequadas. 

Embora reunidos os requisitos do art. 50, ainda assim a Resolução 30/83 não foi designada como informe pela Comissão. Circunstância considerada sem relevo, desde que o teor do ato aprovado pela Comissão ajuste-se substancialmente às previsões do art. 50 e não restem afetados os direitos processuais das partes, especificamente, o de contar o Estado com oportunidade final para solucionar a questão por seus próprios meios, antes de ser levada à Corte. O cumprimento desta última condição remete a outro problema já levantado pela Corte, relativo às Resoluções 30/83 e 22/86.

A Resolução 30/83 foi adotada pela Comissão durante o 61º Período de Sessões (outubro de 1983) e comunicada ao governo em nota de 11 de outubro de 1983. Em 18 de novembro daquele ano, aberta ainda a possibilidade de apresentar-se o caso perante a Corte, o governo solicitou a reconsideração daquele texto, fundado na existência de tramitação interna, pendente de decisão que poderia solucionar a controvérsia. Deliberando “continuar com o estudo do caso”, a Comissão, em maio de 1984, no 62º Período de Sessões, pediu ao governo informe adicional sobre diversos aspectos relativos ao caso. Finalmente, considerou que os elementos apresentados pelo governo desde a primeira resolução não foram suficientes para autorizar novo exame da temática e decidiu, em 18 de abril de 1986 (Resolução 22/86), confirmar a Resolução 30/83 para submeter o caso à apreciação da Corte.

Constatou-se, então, não prevista na Convenção uma situação na qual o Estado envolvido possa solicitar a reconsideração do informe aprovado de acordo com o art. 50. Advertido que o art. 54, do Regulamento da Comissão, ao admitir possível o pleito revisional, diz respeito apenas às petições referentes aos Estados que não são partes na Convenção, hipótese alheia ao caso em estudo. Evidenciado que o trâmite de tais pedidos influi nos prazos processuais e pode afetar de forma negativa – como verificado in casu – o direito do reclamante a vê-los cumpridos para garantia da proteção internacional oferecida pela Convenção. Admitido, ainda assim, no âmbito de certos limites de temporalidade e razoabilidade, requerimento de reconsideração fundado na disposição de solucionar-se um caso perante a Comissão, com os meios internos de que dispõe o Estado, que traduz medida adequada à finalidade dos procedimentos, “no sentido de obter-se uma solução satisfatória à violação dos direitos humanos denunciada, através da cooperação do Estado atingido.”

O dilargamento dos prazos nos quais um assunto deve estar pronto para ser submetido à decisão da Corte não prejudica a posição processual do Estado que lhe deu causa. Afirmado que a decisão da Comissão de “continuar com o estudo do caso” redundou em ampliação de aproximadamente dois anos e meio do termo de que dispunha o governo, como última oportunidade para resolver a questão sem uma demanda judicial. Consequentemente, o direito de defesa e a possibilidade de solucionar a situação por seus próprios meios não restaram diminuídos.

Conclui-se que a Resolução 30/83 nunca foi revogada pela Comissão, senão deixados em suspenso os respectivos efeitos processuais, à espera de que novos elementos pudessem orientar, de forma diversa, a solução do assunto. E que a Resolução 22/86, ao confirmar a anterior, reabriu os prazos para as sucessivas etapas processuais.

Levou-se em conta, também, a circunstância de que, entre 1983 e 1986, a investigação do governo considerou impossível pronunciar-se, com certeza absoluta, sobre desaparecimentos de pessoas como consequência de fatos imputáveis às autoridades. 

A preliminar foi enfim rechaçada, sob o argumento de que a decisão da Comissão de submeter o caso ao exame da Corte pela mesma resolução que confirmou a anterior, não configurou vício de procedimento apto a prejudicar os direitos processuais e as garantias de defesa do governo.

Em acréscimo, foi repelida a alegação do governo de que a Resolução 22/86 importou em levar o assunto ao conhecimento simultâneo da Corte e da Comissão.  Invocou-se que a circunstância de haver a Comissão apresentado o caso à Corte indicou, induvidosamente, cessado o procedimento da competência da primeira, passando-se ao crivo da segunda. Sem prejuízo de que a celebração de acordo amistoso entre as partes, em estrita observância ao disposto no art. 42.2., do Regulamento, pudesse conduzir ao cancelamento da instância e à finalização do procedimento.

Sublinhou-se que apresentado um caso à Corte, inaplicáveis as disposições do art. 51, relativas à preparação de um novo informe pela Comissão (contendo sua opinião e recomendações) somente procedente,  conforme a Convenção, três meses depois de ter sido feita a comunicação a que se refere o art. 50. Consoante o art. 51, da Convenção, é a elaboração do informe que está condicionada a que não se tenha acorrido à Corte. Por consequência, se a Comissão age para preparar ou publicar o informe do art. 51, apesar de já haver apresentado o caso na Corte, é possível considerar-se indevidamente aplicadas as disposições da Convenção, circunstância que pode afetar o valor jurídico do informe, mas que não acarreta a inadmissibilidade da demanda, pois, como firmado, “o texto da Convenção não condiciona, de maneira nenhuma, a instauração à ausência de publicação do informe previsto no art. 51”.

6.         Por fim, embora a Corte considere acertada a observação do governo sobre a natureza subsidiária do regime de proteção internacional dos direitos humanos consagrado na Convenção – razão, pois, da obrigação do prévio exaurimento dos recursos internos –  advertiu imperioso reconhecer que os fundamentos de tal garantia residem na necessidade de salvaguardar a vítima do exercício arbitrário do Poder Público. Induvidoso que a inexistência de recursos internos efetivos coloca a vítima em estado de desamparo e explica a proteção internacional. Nestes casos aplica-se o art. 37.3, do Regulamento da Comissão a respeito da carga da prova, criada a oportunidade para decidir sobre os recursos internos deve adequar-se aos fins do regime de proteção internacional. De nenhuma maneira a regra do prévio exaurimento deve levar a que se paralise ou delongue até a inutilidade a atuação internacional em auxílio da vítima indefesa. Esta é a razão pela qual o art. 46.2. estabelece exceções à exigibilidade da utilização dos recursos internos como requisito para invocar a proteção internacional, “precisamente em situações nas quais, por diversas razões, ditos recursos não são efetivos. Naturalmente, quando o Estado opõe, em tempo oportuno, tal exceção, a mesma deve ser considerada e resolvida, mas a relação entre a apreciação sobre a aplicabilidade da regra e a necessidade de uma ação internacional oportuna na ausência de recursos internos efetivos puder aconselhar frequentemente a consideração das questões relativas àquela regra junto com o exame de fundo, para evitar que o trâmite de uma exceção preliminar prolongue desnecessariamente o processo.

Enfim, em 26 de junho de 1987, a Corte considerou insubsistentes as exceções preliminares apresentadas pelo governo de Honduras, exceto a referente ao não esgotamento dos recursos de jurisdição interna, a ser decidida com a questão de mérito, e decidiu continuar a conhecer o caso. 

Posteriormente, em 29 de julho de 1988, a Corte reputou provado que na República de Honduras, durante os anos de 1981 a 1984, desapareceram cem ou mais pesssoas, sequestradas violentamente por agentes militares, policiais ou seus prepostos; declarou que Honduras violou os artigos 7°, 5° e 4° da Convenção Americana (todos em conexão com o artigo 1.1 deste instrumento) em relação a Ángel Manfredo Velásquez Rodríguez; condenou o Estado a pagar uma justa indenização compensatória aos familiares da vítima e não se pronunciou sobre as custas.

Preliminarmente, a decisão reconheceu competir à Corte a prova dos fatos em que fundada a demanda. Admitindo o enfoque da Comissão, concluiu: “Se é possível demonstrar que existiu uma prática governamental de desaparecimentos em Honduras, levada a cabo ou, ao menos, tolerada pelo governo, e se a esta é possível vincular-se o desaparecimento de Manfredo Velásquez, as denúncias da Comissão viriam provadas diante da Corte, sempre e quando os elementos de prova sobre tais pontos cumpram os critérios de valoração requeridos nestes casos.”

No exame de tais critérios advertiu-se que nem a Convenção, nem o Estatuto da Corte ou o Regulamento, tratam da matéria. Nada obstante, a jurisprudência internacional tem admitido que os tribunais avaliem livremente as provas, evitando, contudo, fornecer uma rígida determinação do quantum necessário (cfr. Corfu Channel, Merits, Judgment I.C.J. Reports 1949; Military and Paramilitary Activities in and against Nicarágua - Nicarágua v. United States of América; Merits, Judgment, I.C.J.Reports 1986, parágrafos 29-30 e 59-60).

Para um tribunal internacional, constou da sentença, os critérios de avaliação da prova são menos formais que nos sistemas legais internos. Quanto ao requerimento de provas, esses mesmos sistemas reconhecem diferentes gradações que dependem da natureza, do caráter e da gravidade do litígio. Sem que possa a Corte ignorar a gravidade especial que tem a atribuição a um Estado Parte da Convenção, de haver executado ou tolerado em seu território uma prática de desaparecimentos.  Obrigando-se a Corte a aplicar uma avaliação da prova que considere este extremo e que, sem prejuízo do firmado, seja capaz de sustentar a convicção da verdade dos fatos alegados. Acrescido que a prática dos Tribunais internacionais e internos demonstra que a prova direta, seja testemunhal ou documental, não é a única em que se pode legitimamente embasar uma sentença. Admitidos a prova circunstancial, os indícios e as presunções, sempre que autorizem “conclusões consistentes” sobre os fatos.

Esclarecido que, sem prejuízo de outros elementos de prova, a Comissão aplicou o art. 42, do Regulamento, que presume verdadeiros os fatos não contestados pelo Estado, sempre que de outros elementos de convicção não resulte conclusão diversa.  Sem relevo a temática, no entanto, porque não debatida no processo que contou com a plena participação do governo.

Pela Corte foram considerados provados como fatos relevantes:

(a) Na República de Honduras, durante os anos de 1981 a 1984, de cem a cento e cinquenta pessoas desapareceram, muitas delas jamais foram encontradas;

(b) Tais desaparecimentos possuíam padrão similar, iniciado com o sequestro violento das vítimas, muitas vezes à luz do dia e em locais povoados, por homens armados, à paisana e disfarçados, que atuavam com aparente impunidade, em veículos sem identificação oficial e com vidros escurecidos, sem placas ou com placas falsas;

(c) A população considerava como um fato público e notório que os sequestros eram praticados por agentes militares, por policiais ou por pessoas sob sua direção;

(d) Os desaparecimentos se realizavam mediante uma prática sistemática, sob as seguintes circunstâncias especialmente relevantes:

        d.1. As vítimas eram geralmente pessoas consideradas pelas autoridades hondurenhas como perigosas para a segurança do Estado; usualmente, haviam sido vigiadas e seguidas por períodos relativamente longos;

        d.2. As armas empregadas eram de uso reservado às autoridades militares e à polícia e utilizavam-se veículos com vidros escurecidos, cujo uso requer uma autorização oficial especial. Em algumas oportunidades, as detenções foram realizadas por agentes da ordem pública, sem dissimulação nem disfarce; em outras eles haviam previamente desocupado os locais em que executariam os sequestros e, ao menos em uma ocasião, os sequestradores, quando detidos por agentes da ordem pública, prosseguiram livremente ao identificar-se como autoridades;

       d.3. As pessoas sequestradas eram vendadas, levadas a locais de detenção irregulares e arbitrariamente transferidas a outros lugares, onde seriam interrogadas e submetidas à violência. Algumas, inclusive, foram assassinadas e seus corpos enterrados em cemitérios clandestinos;

     d.4.  As autoridades negavam sistematicamente o fato da detenção, o paradeiro e a sorte das vítimas, tanto a seus parentes, advogados e pessoas ou entidades interessadas na defesa dos direitos humanos, como aos juízes em recursos de exibição pessoal. Essa atitude ocorreu também nos casos das pessoas que depois reapareceram nas mãos das mesmas autoridades que haviam negado tê-las em seu poder;

       d.5. Tanto as autoridades militares e de polícia, como o governo e o Poder Judiciário, negavam-se ou eram incapazes de prevenir, investigar e sancionar os fatos e de auxiliar aqueles que se interessavam em averiguar o paradeiro e a sorte das vítimas ou de seus despojos. Comissões investigatórias do governo ou das Forças Armadas foram inconclusivas e os processos judiciais instaurados tramitaram sem o devido rigor;

(e) Manfredo Velásquez desapareceu em 12 de setembro de 1981, entre as 16:30 e 17:00 horas, em um estacionamento de veículos no centro de Tegucigalpa, sequestrado por vários homens fortemente armados e à paisana, ocupantes de um veículo Ford branco, sem placas, que, quase sete anos depois, continuava desaparecido. Razoável, pois, supor morto o estudante;

(f) O sequestro foi praticado por pessoas ligadas às Forças Armadas ou sob sua direção;

(g) O sequestro e desaparecimento de Manfredo Velásquez corresponde à prática de desaparecimentos a que se referem os fatos considerados provados nos itens “a” e “c”. Tratando-se de estudante cujas atividades foram consideradas pela autoridades como perigosas para a segurança do Estado; perpetrado o sequestro à luz do dia, por homens à paisana que usaram um veículo sem placas; presentes, neste caso, as mesmas negativas de seus sequestradores e das autoridades das Forças Armadas; as mesmas omissões na investigação de seu paradeiro; a mesma ineficácia dos tribunais de justiça nos quais interpostos três recursos de exibição pessoal e duas denúncias penais;

(h) Não aparece no expediente prova alguma de que a vítima houvera se unido a grupos subversivos, exceto uma carta do prefeito de Langue sobre tais rumores. Versão não complementada, contudo, por nenhum outro elemento probatório sobre seu suposto envolvimento em atividades julgadas perigosas para a segurança do Estado. Inexistente, ainda, prova de que tivesse sido sequestrada por obra de delinquentes comuns ou de outras pessoas desvinculadas da prática de desaparecimentos então em voga.

Por todo o exposto, a Corte concluiu provados no processo: (a) a existência de uma prática de desaparecimentos cumprida ou tolerada pela autoridades hondurenhas entre os anos de 1981 a 1984; (b) o desaparecimento de Manfredo Velásquez, de autoria ou com a tolerância destas autoridades no período de tal prática; (c) a omissão do Governo em garantir os direitos humanos violados.

Sobre os valores das indenizações à esposa e aos filhos de Velásquez, dispôs a Corte, em 21 de julho de 1989, por unanimidade. Posteriormente, em 17 de agosto de 1990, ao admitir o pleito de interpretação da sentença formulado pela Comissão, a Corte, em uníssono, declarou improcedente o pedido de ampliação da sentença. Quanto à expressão nas condições mais favoráveis segundo a prática bancária hondurenha, prevista no parágrafo 58, da sentença de julho de 1989, a respeito dos valores partilhados entre os filhos da vítima, constituído fideicomisso no Banco Central de Honduras, restou interpretada de forma que todo ato ou gestão do agente fiduciário deve assegurar que a soma fixada mantenha seu poder aquisitivo e produza frutos ou dividendos suficientes para aumentá-la; de modo a indicar que o agente fiduciário deve cumprir fielmente seu encargo como um bom pai de família e tem o poder e a obrigação de selecionar vários tipos de investimento, mediante depósitos em moeda forte, como o dólar dos Estados Unidos ou outras; aquisição de bônus hipotecários, bens, raízes, valores garantidos ou qualquer outro meio aconselhável, como rigorosamente ordenou a Corte, pela prática bancária hondurenha (parágrafo 31). Constou expressamente na decisão que, no exercício das faculdades de supervisionar o cumprimento de sua sentença de 21 de julho de 1989, o Estado de Honduras deve compensar os prejudicados em virtude da mora no pagamento da indenização e na constituição do fideicomisso, nos termos fixados na decisão.

 

Análise

 

O caso Velásquez Rodríguez encerra uma das mais importantes decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Trata-se da primeira condenação imposta pela Corte a um Estado americano. Neste caso concretizaram-se as aspirações daqueles que, em 1948, aprovaram a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, em Bogotá, tornando possível a organização do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

O desaparecimento de pessoas denota uma das mais flagrantes violações dos Direitos Humanos perpetradas habitualmente em todo o mundo. Nas últimas décadas, governos antidemocráticos que comandaram Estados americanos, lançaram mão da violência para perpetuarem-se no poder. Tortura, desaparecimentos, tratamentos degradantes e assassínios foram largamente empregados para conter dissensões e legitimar os poderes estabelecidos.

Em alguns Estados estas práticas inumanas foram levadas a efeito sem qualquer constrangimento, completamente às escâncaras. Noutros, sob o manto da democracia, cometeram-se veladamente incontáveis atrocidades. Em ambas as situações, o desaparecimento de pessoas não se resume a eventos esporádicos e incertos. Prática execrável que, em alguma medida, continua a ser explorada por governos inescrupulosos. A condenação do Estado de Honduras trouxe a lume uma pérfida política estatal, fundada no terror e na insegurança generalizada, provocados pelo desaparecimento de pessoas.

Observe-se que as três primeiras decisões da Corte Interamericana cuidam do desaparecimento de indivíduos no território hondurenho. Tratam-se dos casos Velásquez Rodríguez; Fairén Garby e Solís Corrales; Godínez Cruz, examinados pela Corte no breve período compreendido entre os anos de 1987 e 1989. Analisá-los isoladamente traduziria superfetação. Relevante, na verdade, identificar análogo o objeto das denúncias, traduzido no sistemático e comprovado desaparecimento de pessoas naquele Estado.

O Caso Contencioso Fairén Garby e Solís Corrales versus Honduras refere-se ao desaparecimento dos costarriquenhos Francisco Fairén Garbi e Yolanda Solís Corrales, que deixaram a Nicarágua em onze de dezembro de 1981 e, a caminho do México, ingressaram legalmente no Estado de Honduras.

 De maneira semelhante, o Caso Contencioso Godínez Cruz versus Honduras, retrata o desaparecimento do professor Saul Godínez Cruz, levado por forças ligadas ao Estado, em vinte e dois de julho de 1982, quando se dirigia ao Instituto Prevocacional “Julia Zelaya”, em Monjarás de Choluteca, onde trabalhava. Em ambos os processos foram apresentados substanciosos indícios da responsabilidade do Estado.  

A partir das condições degradantes a que foram e ainda são submetidos seres humanos em Honduras, torna-se manifestamente perceptível a noção de dignidade e a necessidade de resguardá-la. Afirma John Rawls que a compreensão do justo se torna possível através do contato direto com o injusto: o ser humano que experimenta na própria carne uma injustiça, bem conhece a noção de justiça. Da mesma forma, a percepção da dignidade e dos direitos da pessoa tornam-se mais vívidas à vista de tão flagrantes violações.

Dignidade e direitos humanos não são sinônimos, mas à interpretação daquela está condicionada a compreensão destes últimos. O homem, em virtude de sua personalidade, representa um ser único, superior a tudo o que há no Universo. Não pode ser instrumentalizado, coisificado, pois a sua proeminência dimana da dignidade que lhe é inerente, sobre a qual assentados os direitos humanos.

Pérez Luño menciona duas interessantes noções de dignidade. A primeira, de inspiração jusnatural-racionalista, sufragada por Pufendorf, identifica a dignidade com a noção de direitos do homem. A outra, difundida principalmente por Hart e Rawls, em consonância com o ideal kantiano, compreende estes direitos a partir da noção de liberdade. Conforme este raciocínio, Pérez Luño conclui que “os direitos humanos representam o conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, tornam concretas as exigências da dignidade, a liberdade e a igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos a nível nacional e internacional.”[3]

Impende notar que o cerne dos direitos humanos corresponde à dignidade do próprio homem; à dignidade que devem reverência os ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais. Em poucas palavras, os direitos humanos representam uma síntese dos valores albergados sobre o dístico dignidade. Liberdade, igualdade, solidariedade, direitos humanos amplamente reconhecidos, são, em última ratio, valores que integram a própria dignidade.

A dignidade não corresponde a um direito fundamental. Não há que se falar em direito à dignidade, mas em direitos invioláveis inerentes à própria dignidade. “A dignidade não é um direito, senão mais do que um direito: é o fundamento mesmo que faz com que tenhamos direitos. Os direitos do homem não são mais do que aspectos nos quais a dignidade deve ser protegida. Se os direitos fundamentais são expressão da dignidade, e a dignidade pertence a cada pessoa em particular, bem pode dizer-se que qualquer preocupação com os direitos humanos que olvide as pessoas reais e concretas é um contra-senso.”[4]

Por consequência, não constitui um valor, mas, como já firmado, um plexo de valores inerentes ao homem. Trata-se da fonte dos princípios e direitos que permeiam o ordenamento jurídico. Há autores que a consideram ainda  fonte dos valores[5], expressão que deve ser empregada com cautela, pois, ao perfilhar a teoria objetiva dos valores não se pode conceber tenham gênese na dignidade. Os valores manifestam-se no homem, em sua dignidade, mas dela não decorrem. Se a dignidade é pré-jurídica, os valores são pré-humanos. Não ocorre com os valores o mesmo que se verifica com os princípios ou direitos, estes sim, provenientes diretamente da dignidade. Poder-se-ia afirmar que na dignidade os valores que compõem a dimensão ontológica do homem encontram-se plenamente jungidos.

Da conclusão de não representar a dignidade um direito fundamental, mas a fonte destes direitos, decorrem algumas efeitos diretos. Primeiramente,  o dever objetivo de respeitar os direitos subjetivos que dimanam da pessoa – a vida, à liberdade e integridade pessoais – afrontados todos no caso sub studio.  

Obviamente, não se trata apenas de orientar o sistema normativo e a atividade estatal conforme os ditames impostos pela dignidade, mas da efetiva adoção das medidas preventivas necessárias a impedir que seja aviltada por qualquer ser humano.   Afinal, ao Estado incumbe prestar quanto seja imprescindível à realização do ser humano.

Neste caso, ao promover campanha sistemática de desaparição de pessoas, o Estado não apenas desrespeitou os direitos daqueles que se encontravam  sob seu amparo, mas instituiu o temor entre a população e absteve-se de apurar os fatos e de responsabilizar os autores do delito. Com efeito, afastou-se da  segurança jurídica e opôs barreiras à realização das pessoas.

Mais ainda, conforme registrado na sentença, “a prática de desaparecimentos, além de violar diretamente numerosas disposições da Convenção, como as assinaladas, significa uma ruptura radical deste tratado, pois implica em crasso abandono dos valores que emanam da dignidade humana e dos princípios que mais profundamente fundamentam o sistema interamericano e a mesma Convenção.”[6]

Atente-se que a tutela da dignidade se dá por intermédio da proteção e promoção dos valores dela decorrentes; legitimada a adoção de critério residual tão apenas em se tratando de situação excepcional. No caso em tela, os dispositivos inobservados pelo Estado (arts. 4º., 5º. e 7º., da Convenção) traduzem valores  que integram a dignidade. Por conseguinte, se as violações perpetradas estão subsumidas a estes tipos, não há que invocar diretamente a previsão genérica, empregada subsidiariamente apenas quando a conduta lesiva à dignidade não estiver expressamente positivada.

Raciocínio análogo foi empregado por João Carlos Loureiro, quando tratava desta hipótese na Constituição portuguesa: “Só subsidiária, e excepcionalmente, dado o vasto leque de direitos fundamentais, se poderá falar de uma violação autônoma da dignidade humana, em termos da constituição portuguesa. Isto é, o princípio constitucional da dignidade humana remete, em última instância, uma capacidade normogenética, para além das clássicas dimensões interpretativa e integradora.”[7].

Ao tratar do desaparecimento de pessoas, a Corte prestigia o direito à vida, fundada no artigo 4o, I, da Convenção: “Toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Este direito estará protegido pela lei e, em geral, a partir do momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.

Este direito representa direta inferência da dignidade inerente ao homem. Ao consignar previsão normativa que assegura a proteção do direito à vida desde à concepção, a Corte reconhece seu início a partir da união óvulo/espermatozóide. Consequentemente, a dignidade deve ser amparada desde sempre.

Não se justifica aqui a retomada da polêmica a respeito do início da vida humana. A partir da previsão inscrita no artigo 4o, da Convenção, e nos termos em que interpretada in casu pela Corte, de rigor concluir que os direitos decorrentes da dignidade são protegidos desde muito antes do nascimento.

Na verdade, a Convenção Americana não é o único documento célebre que, no campo dos direitos humanos, ampara a dignidade e a reconhece desde a concepção. Séculos atrás, a Declaração de Direitos de Virgínia, de 1776, parecia corroborar esta afirmação.[8]

A peculiaridade da Convenção reside em propalar abertamente esta opção, sem permitir qualquer margem de dúvida e, por conseguinte, afirmar que a dignidade e os direitos dela decorrentes são inatos. As consequências desta afirmação são diversas e abrem campo a discussões sobre a pena de morte, o aborto, a eutanásia e à fertilização in vitro, amplamente debatida na atualidade. Tais questões refogem aos lindes deste trabalho; oportuno tão apenas atentar que ao reconhecer a dignidade e os direitos a ela inerentes desde a fertilização, a Convenção Americana põe a salvo os embriões. Ou seja, a dignidade é reconhecida não apenas in vivo, mas também, in vitro.

Embora a Corte reconheça desde logo a dignidade inerente ao ser humano, não é imediata a fruição de alguns direitos que a ela estejam diretamente jungidos; dependem, efetivamente, de certo desenvolvimento do homem.

A liberdade, por exemplo, afigura-se amplamente resguardada  no Sistema Interamericano. A Convenção Americana alude expressamente à liberdade de consciência e religião (art. 12); à liberdade de pensamento e de expressão (art. 13); à liberdade de associação (art. 16). Liberdades que dependem da consciência humana, i.e., podem não estar presentes no homem ou encontrar-se drasticamente limitadas. O nascituro e o recém-nascido não possuem ainda o discernimento necessário ao gozo da liberdade religiosa, mas em alguns anos passarão a contar com esta aptidão.

Pretende-se, pois, afirmar que estes direitos não são adquiridos com o influxo do tempo, mas pertenceram sempre ao homem, ainda que sua plena fruição dependa sobremaneira da consciência.

No que concerne ao direito à vida, a situação é completamente distinta. Desde a concepção, segundo a interpretação da Corte, o ser humano deve contar com esta indispensável proteção. Basta que possua vida para que se torne protegida, independentemente de qualquer consciência ou outra exigência prévia.

Relevante questão emerge, ainda, do teor do item primeiro, art. 4o. da Convenção ao dispor que “ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”. É alegado que o advérbio acaba por gerar aparente confusão propositalmente.  Assim é que, em duas marcantes acepções os léxicos tomam o adjetivo arbitrário: na primeira, como não necessário; eventual; facultativo; na segunda, como ausência de leis ou de regras. Afirmar que ninguém pode ser privado da vida não se afigura possível. É certo que inúmeras fatalidades podem vitimar o homem sem que ele próprio ou os seus semelhantes concorram para este fato. Entretanto, de rigor constatar que a ninguém é facultado pôr fim à vida de outrem.[9] Logicamente, não é esta acepção de arbitrário aquela empregada pela Convenção e pela Corte.

Ao mencionar que “a prática dos desaparecimentos, enfim, implicou com frequência na execução dos presos, em segredo e sem forma de juízo (...)”, a Corte demonstra claramente o alcance do dispositivo. Para os juízes que analisaram o Caso Velásquez Rodríguez, a execução pode ser admitida, por exceção, quando obedecidos princípios como o devido processo legal e a publicidade dos procedimentos judiciais. Esta, inclusive, a prescrição do inciso segundo do mesmo artigo 4o.[10]

Portanto, a interpretação da Corte, no tocante a este dispositivo, harmoniza-se com o disposto pelo legislador que elaborou a Convenção. Trata-se de mera análise positiva, simples subsunção do fato à norma.

As conclusões teóricas deste artigo em muito se afinam com os preceitos ínsitos no Pacto de São José. Porém, após tudo firmado até agora, contraditório seria legitimar a pena capital como exceção à dignidade. Se é possível restringir as liberdades individuais sem lesionar a dignidade, o mesmo não ocorre com a vida. Trata-se de direito que não admite flexão, não pode ser suprimido, em franca oposição àquelas liberdades que, em virtude da consciência ou dos direitos alheios, admitem restrição.

Notórias dificuldades permearam o processo de criação da Corte Interamericana. Desde a assinatura da Convenção, em 1969, até o início das atividades do órgão jurisdicional, transcorreu praticamente uma década. Naquele período e ainda hoje, a pena capital encontrava-se inscrita em alguns ordenamentos jurídicos de Estados americanos. Certamente, se esta exceção não fosse admitida, a Corte encontraria barreiras ainda maiores para iniciar suas atividades. Parece mesmo esta a única escusa plausível para a admissão da pena de morte no Sistema Interamericano. Tanto que em 1990, já amplamente consolidada a Corte como órgão de jurisdição internacional, foi aprovado em Assunção o Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos Referente à Abolição da Pena de Morte.[11]

Como adendo ao caso em tela, cumpre notar que Honduras somente em 2.011 assinou o Protocolo de Assunção. Ainda, no tocante ao direito à vida, cabe ressaltar a referência feita pela Corte à ocultação do cadáver de Ángel Velásquez Rodríguez. Mesmo sem ter sido jamais encontrado o corpo do estudante não prevaleceu alegação de que a falta de materialidade dificultaria a comprovação do delito. Patenteado pelo colegiado que as provas coligidas comprovaram à saciedade o assassínio de Angel.

Neste sentido a precedente manifestação da Corte no Caso Castillo Páez: “Não pode admitir-se o argumento do Estado no sentido de que a situação mesma da indeterminação do paradeiro de uma pessoa, não autoriza afirmar que tenha sido privada de sua vida, já que ‘faltaria ... o corpo de delito’, como é exigido, segundo ele, pela doutrina penal contemporânea. É inaceitável este raciocínio pois bastaria que os autores de um desaparecimento forçado ocultassem ou destruíssem o cadáver da vitima, o que é frequente nestes casos, para que se produzisse a impunidade absoluta dos infratores, que nestas situações pretendem apagar todo rastro do desaparecimento.”[12]

Certo é que a menção da Corte ao cadáver de Velásquez Rodríguez revela a obrigação do Estado de envidar esforços na localização e identificação dos despojos. O respeito aos mortos, tratado anteriormente, representa um traço marcante da personalidade humana. Na Grécia Antiga era costume permitir aos vencedores que retornassem os vencidos ao campo de batalha para carregar os despojos dos que haviam perecido. Se hoje o sepultamento é uma importante deferência ao morto, na Antiguidade, mantê-lo insepulto configurava verdadeiro sacrilégio. Nas antigas civilizações em que os parentes falecidos eram cultuados como deuses, privá-los da sepultura significava negar-se-lhes sossego à alma.

Na tragédia grega Antígona, de Sófocles, a protagonista deve optar entre o  respeito ao édito do governante Creonte que a impede de dar sepultura ao irmão e a lei anterior a todo o Direito, inscrita em sua consciência, que a impele a inumá-lo. Ao cobrir o cadáver com terra, Antígona opta pela norma pré-jurídica e vê-se obrigada a pagar com a própria vida sua transgressão à lei dos homens.

 A ocultação do cadáver de Velásquez Rodríguez e de tantos outros que desapareceram em território hondurenho, sobre provocar  imensurável sofrimento às suas famílias, despertou também temor reverencial na população. Mesmo que o Direito admita a presunção da morte, não tomar contato com o cadáver de forma a comprová-la inequivocamente, gera ainda mais insegurança. Afinal, onde estaria esta pessoa? Teria sido morta? Em que circunstâncias? Em face de tantas indagações sem resposta, muitos daqueles que pretenderiam levantar bandeiras e marchar contra as autoridades constituídas acabam por se aquietar, diante dos insondáveis perigos que rondam os desaparecimentos.

A Corte Interamericana não apenas autoriza a presunção de morte independentemente da localização do corpo, como repudia as tentativas de dissimulação que venham a ser eventualmente empregadas. Exige, também, o respeito necessário aos despojos. Veja-se, à guisa de exemplo, o disposto no Caso Caso Neira Alegria y otros Vs Perú, Série C No. 20, Sentença de 19 de janeiro de 1995, parágrafo 74: (...) inclusive a morte de detentos que eventualmente terminaram por render-se e a clara negligência em buscar sobreviventes e depois em resgatar os cadáveres.

No caso Velásquez Rodrigues a prova testemunhal bem elucidou o pretexto utilizado pelos agentes estatais para encarcerar, torturar e matar dissidentes políticos. Afirmou-se, de maneira reiterada, as atividades do estudante eram perigosas para a segurança do Estado. O desaparecimento de Ángel, calcado no perigo potencial que suas atividades representariam à segurança do Estado, é exemplo evidente da desconsideração da dignidade do homem a partir da dignificação da coletividade. Como afirmou Häberle, não há uma ‘dignidade’ do Estado, só existe a dignidade do homem.[13]

O reconhecimento da dignidade é incompatível com a deificação do Estado. Esta a conclusão da Corte ao afirmar, expressamente: “O exercício da função pública tem limites derivados de que os direitos humanos são atributos inerentes à dignidade humana e, em consequência, superiores ao poder do Estado.”[14]

 O decisum atribui ao Estado o direito/dever de garantir a segurança. Indiscutivelmente, o aumento da criminalidade e a atividade de grupos terroristas exigem pronta resposta do organismo estatal, mas não autorizam a inflição de suplícios e a violação dos direitos humanos. “Por mais graves que possam ser determinadas ações e por culpáveis que possam ser os réus de determinados delitos, não cabe admitir que o poder possa exercer-se sem limite algum ou que o Estado possa valer-se de qualquer procedimento para alcançar os seus objetivos, sem sujeição ao direito ou à moral. Nenhuma atividade do Estado pode fundar-se sobre o desprezo à dignidade humana.” [15]

A Corte invocou ainda a dignidade da pessoa humana, em face da violação das normas dos arts. 5o. (direito à integridade pessoal) e 7o. (direito à liberdade pessoal), da Convenção, pois vícios eivaram a prisão do estudante, sem determinação escrita e motivada da autoridade judicial competente, completamente ocultados os fatos.  

Inúmeros indivíduos detidos ilegalmente pelo Estado naquele período relataram, depois de libertados, os tratamentos cruéis, desumanos e degradantes a que foram submetidos. À vista destes fatos, plausíveis as especulações de que a vítima teria sido torturada. Entretanto, a ausência de provas cabais não permitiu atestar com absoluta certeza as práticas ignominiosas perpetradas contra Velásquez Rodríguez. Certo é que, à luz do art. 5o., põe-se em evidência o tratamento inumano a que foi submetida a vítima, levada de inopino, obrigada a permanecer em isolamento prolongado, incomunicável, em flagrante desrespeito aos mais evidentes direitos fundamentais. Mesmo que a morte não tenha sido precedida de tortura, tais fatos, per se, são aptos a lesionar severamente a dignidade. A partir destas conclusões, pois, despicienda qualquer exigência de inequívoca prova da tortura[16].

 Na sentença, a Corte reiterou a afirmação do item 2, do art. 5o: a dignidade é inerente ao ser humano. Assertiva que, veementemente rechaçada pelo positivismo jurídico, conforma-se plenamente às conclusões fixadas neste estudo.

O reconhecimento do homem como ser de eminente dignidade –  na dicção de Peces-Barba – dessuma da decisão do colegiado: “Com efeito, a garantia da integridade física de toda pessoa e de que todo aquele que seja privado de sua liberdade seja tratado com o respeito devido à dignidade inata ao ser humano, implica a prevenção razoável de situações virtualmente lesivas dos direitos protegidos.”[17]

Ao descurar-se da dignidade, o Estado hondurenho, afastando-se de seus fins, passou a instrumentalizar seres humanos, sistematicamente, recusando-lhes a dignidade, plexo de valores inerente a cada homem. A personalidade confere ao ser direitos que não admitem qualquer restrição. Assim é que a Corte, em consonância com o disposto na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Convenção Americana, proclama: “Os direitos humanos representam valores superiores que não nascem do fato de ser nacional de determinado Estado, senão que têm como fundamento os atributos da pessoa humana.”[18]

Quando governantes se valem de táticas de extermínio, pretendem, de certa maneira, negar a dignidade por meio de cruentas demonstrações de poderio ilimitado e  imposição de francas barreiras às vozes discordantes. O homem, fragilizado diante do gigantesco aparato estatal, torna-se ainda mais débil, pois já não lhe ampara a lei, conta apenas com a sorte.

Emmanuel Lévinas afirma que o homicídio é uma forma de exercer um poder sobre aquele que escapa ao poder. Esta frase bem explica o sentido que imprimem alguns governos à política de desaparecimentos, torturas e privações. Segundo o filósofo francês: “O Outro que pode dizer-me soberanamente não, se oferece à ponta da espada ou à bala do revólver e toda a dureza inamovível de seu ‘para si’, com este não intransigente que opõe, se apaga pelo fato de que a espada ou a bala tocou os ventrículos e as aurículas de seu coração.”[19]

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


GARCIA-HUIDOBRO, Joaquín. La dignidad del hombre. In: GARCIA-HUIDOBRO, Joaquín; MARTÍNEZ, José Ignacio; NUÑEZ, Manuel Antonio. Lecciones de derechos humanos. Valparaíso: Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, p. 25-34, 1997.

HÄBERLE, Peter. El estado constitucional. Trad. Hector Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autônoma de México, 2003.

LÉVINAS, Emmanuel. Totalidad e infinito. Salamanca: Sígueme, 1977.

LOUREIRO, João Carlos. Os Genes do nosso (des)contentamento: (Dignidade humana e genética: notas de um roteiro). In: NUNES, Rui; MELO, Helena; NUNES, Cristina (Orgs.). Genoma e Dignidade Humana. Coimbra: Serviço de bioética e ética médica, Faculdade de medicina da universidade do Porto, Gráfica de Coimbra, 2002.

PECES-BARBA MARTINEZ, Gregorio. La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho. 2a. ed. Madrid: Dykinson, 2003.

PÉREZ-LUÑO, Antonio-Enrique. Teoría del derecho: una concepción de la experiencia jurídica. 4a. ed. Madrid: Tecnos, 2005.

PRIETO ÁLVAREZ, Tomás. La dignidad de la persona: Núcleo de la moralidad y el orden públicos, límite al ejercicio de libertades públicas. Cizur Menor: Thomson Civitas, 2005.


[1] Na atualidade, art. 39.

[2] Em 5 de julho de 2009 a Organização dos Estados Americanos (OEA) suspendeu o direito de participação ativa de Honduras no organismo hemisférico, com supedâneo no artigo 21 da Carta Democrática Interamericana, em virtude do golpe de Estado que, em 28 de junho, depôs o presidente José Manuel Zelaya. A suspensão foi levantada apenas em 1o. de julho de 2011, por decisão da Assembléia Geral da OEA, reunida no quadragésimo primeiro período extraordinário de sessões.

[3] PÉREZ-LUÑO, Antonio-Enrique. Teoría del derecho: una concepción de la experiência jurídica. 4a. ed. Madrid: Tecnos, 2005, p. 222.

[4] GARCIA-HUIDOBRO, Joaquín. La dignidad del hombre. In: GARCIA-HUIDOBRO, Joaquín. Lecciones de derechos humanos. Valparaíso: Universidad de Valparaíso, Escuela de Derecho, p. 25-34, 1997, p. 33.

[5] “A autonomia moral e seu gênero, a dignidade humana são o dever básico de onde emana os valores e os direitos que sustentam a democracia, ou seja a autonomia política”. PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho. 2a. ed. Madrid: Dykinson, 2003, p. 67.

[6] Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Velásquez Rodríguez Vs. Honduras. Série C n. 4. Fondo, Sentencia de 29 de julio de 1988, parágrafo 158, p. 33.

[7] LOUREIRO, João Carlos. Os genes do nosso (des)contentamento: (Dignidade humana e genética: notas de um roteiro). In. NUNES, Rui; MELO, Helena; NUNES, Cristina (orgs.). Genoma e Dignidade Humana. Coimbra: Serviço de bioética e ética médica, Faculdade de medicina da Universidade do Porto, Gráfica de Coimbra, 2002, p. 233. Ainda neste sentido: “(...) a dignidade da pessoa será tutelada na ordem pública de modo residual – pois as exigências de dignidade tomam corpo ordinariamente em direitos em cuja base aquela se situa – (...)”. In. PRIETO ÁLVAREZ, Tomás. La dignidad de la persona: núcleo de la moralidad y el orden públicos, limite al ejercicio de libertades públicas. Navarra: Aranzadi, 2005, p. 18.

[8] Garcia-Huidobro, em análise semelhante afirma: “A Declaração de direitos de Virgínia, não nos dá uma resposta última à pergunta pelo valor do homem mas nos mostra algo muito interessante: como atuam e o que dizem alguns homens que estão absolutamente convencidos de seu valor. Também nos faz ver que essa dignidade está relacionada, ao menos nesse meio cultural, com a ideia de direitos e, mais especificamente, com a circunstância de que estes direitos são inatos e não adquiridos. Significa afirmar, que a leitura deste texto, deixa a impressão de que a dignidade é algo constitutivo do homem, e não uma propriedade que lhe advém com posteridade a seu nascimento”. GARCIA-HUIDOBRO, Joaquín. La dignidad del hombre. In: GARCIA-HUIDOBRO, Joaquín. Lecciones de derechos humanos. Valparaíso: Universidad de Valparaíso, Escuela de Derecho, p. 25-34, 1997, p. 26-27.

[9] Ressalvada, por óbvio, a legítima defesa.

[10] Observe-se ainda o disposto no Caso Neira Alegria y otros Vs Perú, Série C No. 20, Sentença de 19 de janeiro de 1995, parágrafo 74: “O artigo 4.1 da Convenção estipula que ‘ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente’. A expressão ‘arbitrariamente’ exclui, como é óbvio, os processos legais aplicáveis nos países que ainda conservam a pena de morte.”

[11] A Corte trata especificamente deste assunto ao analisar as restrições à pena de morte, em sua Opinião Consultiva No. 3, de 08/09/1983.

[12] Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Castillo Páez Vs. Perú. Série C n. 34. Fondo, Sentencia de 03 de novembro de 1997, parágrafo 73, p. 19-20. Em outros casos reconheceu também taxativamente a Corte que o desaparecimento de pessoas, sem que jamais se tivesse qualquer notícia de seu paradeiro, viola vários direitos consagrados na Convenção. Atente-se para os casos: Caballero Delgado y Santana Vs Colômbia, Série C No. 22, Sentença de 08 de dezembro de 1995, parágrafo 56; Blake Vs Guatemala, Série C No. 27, Exceções Preliminares, Sentença de 02 de julho de 1996, parágrafo 39).

[13] HÄBERLE, Peter. El estado constitucional. Trad. Hector Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autônoma de México, 2003, p. 126.

[14] Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Velásquez Rodríguez Vs. Honduras. Série C n. 4. Fondo, Sentencia de 29 de julio de 1988, parágrafo 165, p. 34. Sobre este assunto, interessante observar o parágrafo 21 da Opinião Consultiva OC-06/86, de 9 de maio de 1986.

[15] Idem, parágrafo 154, p. 32.

[16] Este o posicionamento adotado pela Corte, que em outras oportunidades reafirmou que o simples fato de introduzir um detento no porta-malas de um automóvel constitui uma violação ao art. 5o. Cfr. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Castillo Páez Vs. Perú. Série C n. 66. Fondo, Sentencia de 03 de noviembre de 1997, parágrafo 73, p. 18.

[17] Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Velásquez Rodríguez Vs. Honduras. Série C n. 4. Fondo, Sentencia de 29 de julio de 1988, parágrafo 187, p. 39.

[18] Idem, parágrafo 144, p. 27.

[19] LÉVINAS, Emmanuel. Totalidad e infinito. Salamanca: Sígueme, 1977.