A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO LIMITE À ESTERILIZAÇÃO DO CURATELADO

Laíse Marinho Lima[1]

RESUMO 

Objetiva-se com este trabalho analisar a (im)possibilidade jurídica da esterilização do curatelado. Nesse sentido, faremos uma breve abordagem sobre os institutos da curatela e sobre a técnica da esterilização cirúrgica. Iremos indagar quais os limites da curatela e como esse instrumento pode representar uma punição ao invés de proteger a pessoa do curatelado. Buscaremos fundamentos legais (nacionais e internacionais) que demonstrem que essas pessoas devem ser vistas e tratadas como sujeitos de direitos e, como tais, capazes de fazer suas escolhas existenciais. Por fim, teceremos algumas premissas capazes de delimitar o alcance da dignidade humana, para saber se esse meta-princípio e fundamento constitucional, comporta a esterilização do curatelado, ou se pelo contrário, é seriamente violado por essa prática.

Palavras-chave: Curatela. Esterilização. Dignidade humana.

INTRODUÇÃO

A curatela é um instituto jurídico que visa proteger a pessoa maior, padecente de alguma incapacidade ou de certa circunstância que impeça a sua livre e consciente manifestação de vontade, resguardando-se também o seu patrimônio (GAGLIANO; PAMPLONA, 2011, p. 718). A pessoa que fica sujeita à curatela é o(a) curatelado(a) e a pessoa que fica com o encargo de zelar por ela, o curador.

Parece um mecanismo simples e que não causa grandes discussões. Ocorre, porém, que nos últimos anos, tem sido frequente a entrada na justiça de pedidos de esterilização do(a) curatelado(a) sob os mais variados argumentos (vida sexual desregrada, sucessivas gravidezes, falta de capacidade para fazer um planejamento familiar, etc).

Partindo desse ponto, faremos um breve estudo sobre o instituto da curatela, sobre a esterilização e os direitos envolvidos. O problema central gira em torno da (im)possibilidade jurídica da esterilização do curatelado pelo curador, sobretudo, tendo em vista as normas nacionais e internacionais, bem como os direitos fundamentais, direitos da personalidade e a própria noção de dignidade da pessoa humana.

1        OS CONCEITOS INDICAM A FUNÇÃO E ESTABELECEM OS LIMITES

 

Para entender o instituto da curatela é preciso compreender seu real significado e conhecer o fim a que se destina. Renata Rodrigues alerta que:

Pesquisar o significado dessa proteção na contemporaneidade é a chave para se compreender de que maneira ela deve e pode ser efetivada e, como já indicado, o instituto não pode descurar de preservar, na maior parcela possível, a autonomia do curatelado, desde que ele tenha discernimento para compreender o significado e a extensão dos atos que quiser ou necessitar praticar, sobremaneira, no que toca às escolhas existenciais que ele possa exprimir (RODRIGUES, 2007, p. 129).

Na verdade este é um postulado básico no estudo de qualquer objeto. O bom estudioso do direito, antes de tudo, procura extrair do conceito do seu objeto de estudo o seu significado e a sua razão de existir, para assim saber se realmente cumpre a função que deveria desempenhar no ordenamento jurídico, ou se, pelo contrário, deve ser extinto. Neste diapasão, vejamos o que é a curatela.

1.1  Curatela: proteção ou punição?

 

A curatela é o encargo público, cometido, por lei, a alguém para reger e defender a pessoa e administrar os bens de maiores, que por si sós, não estão em condições de fazê-lo, em razão de enfermidade ou deficiência mental (DINIZ, 210, p. 662). Esse instituto pode excepcionalmente atingir menores, nascituros e ausentes.

Segundo o art. 1.767 do Código Civil de 2002 estão sujeitos à curatela: a) aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil; b) aqueles que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade; c) os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos; d) os excepcionais sem completo desenvolvimento mental; e e) os pródigos.

Destinado, como na tutela, a proteção de incapazes, a curatela visa proteger a pessoa maior padecente de alguma incapacidade ou de certa circunstância que impeça sua livre e consciente manifestação de vontade, resguardando-se, com isso, também o seu patrimônio (GAGLIANO; PAMPLONA, 2011, p. 718).

Pois bem, enquanto encargo público destinado à proteção de incapaz a tutela deve ser exercida em benefício do curatelado e nos estritos limites estabelecidos na sentença que concedeu a curatela. Como todo e qualquer instituto de direito de família, a curatela deve ser “promovida com base em princípios da afetividade e solidariedade, demonstrando preocupação com aquele que não consegue por si só administrar sua vida e gerir seus bens. É instituto de amparo e não de prisão” (RODRIGUES, 2007, p. 130).

1.2  Esterilização

 

A esterilização é um método contraceptivo irreversível. A esterilização feminina tem sido utilizada indiscriminadamente como forma de controle de natalidade, no qual o médico fecha as trompas através de procedimento cirúrgico, tendo como objetivo evitar a gravidez, uma vez que impede o espermatozóide de alcançar e fertilizar o óvulo.

A sua irreversibilidade o torna um método bastante drástico e delicado, mesmo para as pessoas capazes de autodeterminação. Estudos revelam que 50% das mulheres que são esterilizadas antes dos 25 anos arrependem-se de se submeter à cirurgia (VIEIRA, 1998, p. 2). Esta opção torna-se ainda mais delicada quando a decisão é tomada por outra pessoa em nome de um incapaz.

1.3  Esterilização do curatelado como abuso de direito

Para Inácio de Carvalho Neto “chama-se abuso de direito ao exercício pelo seu titular, de um direito subjetivo fora de seus limites” (CARVALHO NETO, 2007). Assevera o jurista Rubens Limongi França que o abuso de direito é “um ato jurídico de objeto lícito, mas cujo exercício, levado a efeito sem a devida regularidade, acarreta um resultado que se considera ilícito” (TARTUCE, 2004, p. 92). No mesmo sentido, Flávio Tartuce considera que “o abuso do direito é um ato lícito pelo conteúdo, ilícito pelas conseqüências, tendo natureza jurídica mista – entre o ato jurídico e o ato ilícito – situando-se no mundo dos fatos jurídicos em sentido amplo (TARTUCE, 2004, p. 92).

O artigo 187 do Código Civil brasileiro de 2002 diz que comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Pois bem, o Direito de Família é um palco fértil para a aplicação da teoria do abuso do direito (MARCANTÔNIO, 2010, p. 1) e a curatela um dos institutos mais propícios a se degenerar em abuso e arbitrariedade.

Seja qual for o conceito adotado para abuso de direito, é certo que o comete quem, ao exercê-lo, excede ou transcende os limites propostos pelo direito que lhe foi atribuído.

É o que ocorre quando o curador pretende esterilizar o curatelado.

Já foi dito que a curatela presta-se à proteção dos interesses do curatelado. Por essa razão, “na sentença que proferir, o juiz deve fixar os limites da incapacidade e os poderes do curador” (WALD, 2005, p. 290). Desse modo, ao pretender impor uma esterilização ao curatelado, o curador excede manifestamente os limites e poderes conferidos pelo instituto, violando seus direitos da personalidade e sua própria dignidade.

2        O CURATELADO COMO SUJEITO DE DIREITOS: Convenções, Declarações, leis, normas, princípios (e os direitos?)

O instituto da curatela deve ser entendido como um instrumento que serve para a sociedade garantir a proteção dos direitos fundamentais das pessoas elencadas no artigo 1.767 do Código Civil brasileiro (em regra pessoas com alguma insuficiência mental). Por isso, cogitar da possibilidade de o curador poder decidir sobre a esterilização do(a) curatelado(a) se mostra um grave desvirtuamento deste instituto e uma afronta aos direitos da pessoa que (deveria) estar sob proteção. Por isso se faz tão necessário reconhecer as pessoas submetidas à curatela como sujeitos titulares dos mesmos direitos que as demais.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 estabelece, em seu artigo 1º que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. E acrescenta no artigo 2º: “Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”.

A Declaração sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de 2006 tem como propósito declarado “promover, proteger e assegurar o desfrute pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por parte de todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua inerente dignidade”.

Inclui, ainda, entre seus princípios norteadores “o respeito pela dignidade inerente, independência da pessoa, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas e autonomia individual”.

A Constituição Federal brasileira de 1988 estabelece como um dos fundamentos da República “a dignidade da pessoa humana”(art. 1º, III). Estabelece também que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, sendo vedada qualquer interferência por parte das instituições oficiais ou privadas (art. 226, § 7º).

O Código Civil brasileiro afirma que, “salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes” (art. 13), estabelecendo a tutela geral dos direitos da personalidade no art. 12.

Além disso, os direitos sexuais e reprodutivos já foram reconhecidos como direitos humanos na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, no Cairo, por 184 países.

Isso é relevante porque – como direitos humanos – os direitos sexuais e reprodutivos necessariamente devem trazer internamente a liberdade de escolha e o livre exercício da sexualidade e da reprodução humana. Nas palavras de Flávia Piovesan, “trata-se de direito de auto-determinação, privacidade, intimidade, liberdade e autonomia individual, em que se clama pela não interferência do Estado, pela não discriminação, pela não coerção e pela não violência” (PIOVESAN, 2007, p. 55).

Além disso, passam a se submeter aos princípios vetores dos direitos humanos, que podem ser resumidos em princípio da universalidade, princípio da indivisibilidade, princípio da diversidade e princípio democrático (PIOVESAN, 2007, p. 57).

Em fim, o curatelado já é devidamente reconhecido como destinatário de variados tipos normativos e como sujeito de direitos. Resta, no dia-a-dia, fazer com que esses direitos prevaleçam, vale dizer, não sejam desconsiderados ou afastados por um simples instituto do direito civil (que na verdade existe para assegurar tais direitos).

 

3        DIGNIDADE HUMANA: insuperável limite exógeno ao instituto da curatela

 

Até hoje ninguém conseguiu oferecer um conceito que abarque toda a complexidade da dignidade humana. Isso de certo modo é positivo, uma vez que, conceituar significa diminuir o alcance, enjaular, enquadrar, restringir. Pois bem, não seria em um Paper que se conseguiria oferecer um conceito sobre o que seja a dignidade humana.

Porém, uma coisa é certa: “A dignidade da pessoa humana é uma qualidade intrínseca, inseparável de todo e qualquer ser humano, é característica que o define como tal” (SARLET, 2009, p. 1). E não é um instituto feito originalmente para garanti-la, que poderá superá-la (curatela).

Se por um lado, não podemos conceituar a dignidade (sob pena de empobrecer seu significado), por outro é possível torná-la juridicamente palpável. Assim, podemos perceber a dignidade como Valor Fundamental (da ordem jurídica, econômica, social), como Valor Intrínseco (inerente ao ser humano pelo simples fato de nascer humano), como Valor Comunitário (a gama de valores morais e jurídicos construídos e valorizados em sociedade) e por fim, pode-se ver a Dignidade como Autonomia (capacidade de fazer suas próprias escolhas de vida).

Sobre a dignidade como Valor Fundamental, é suficiente a lição do professor José Afonso da Silva:

Se é fundamento é porque se constitui num valor supremo, num valor fundante da República, da Federação, do País, da Democracia e do Direito. Portanto, não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social, econômica e cultural. Daí sua natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida nacional (SILVA, 2009, p. 38).

Acrescente-se apenas que a dignidade humana está na base também da vida e do direito internacional.

Já a dignidade como valor intrínseco e como autonomia, gera para o indivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existenciais e, mesmo quando esta autonomia lhe faltar ou não puder se manifestar (curatela), ainda assim, tem o direito de ser considerado e respeitado pela sua condição humana.

A dignidade humana gera, portanto, direitos positivos e negativos. Enquanto direito positivo, está intimamente relacionada com os direitos fundamentais e representa a base e o fundamento dos direitos da personalidade. Enquanto direito negativo, ela protege o ser humano da violação desses direitos.

Representa, assim, um limite ao instituto da curatela e à todas as formas de diminuição da autonomia humana. E “como limite, a dignidade implica não apenas que a pessoa pode ser reduzida à condição de mero objeto da ação própria e de terceiros, mas também o fato de que a dignidade gera direitos fundamentais (negativos) contra atos que a violem ou a exponham a graves ameaças” (SARLET, 2007, p. 209).

Por tudo, resta claro que o poder de tomar uma decisão que diminui permanentemente a integridade física e existencial do curatelado, é estranho ao instituto da curatela. Está fora da curatela o poder de diminuir a dignidade humana (em qualquer de suas concepções).

CONCLUSÃO

 

Ao concluir este trabalho os autores esperam ter contribuído para a elucidação de algumas questões relacionadas ao instituto da curatela e da técnica da esterilização, à luz da teoria do abuso do direito, dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana. Deixando claro que esta funciona como limite/óbice à esterilização da pessoa (humana) sujeita à curatela.

Lembramos que este trabalho não é um fim em si mesmo, nem pode (infelizmente) evitar a prolação corriqueira de sentenças judiciais que, autorizando a esterilização do curatelado (sempre mulheres), desconsideram que uma esterilização indesejada pode acarretar sérios danos psicológicos. Desconsideram também que a curatela é um instituto do direito de família, destinado a agir sobre os direitos civis e não sobre os direitos sexuais e reprodutivos. Por fim, mas não menos grave, essas sentenças esquecem que a esterilização não impede o risco de contaminação do curatelado por doenças sexualmente transmissíveis, representando mero ato de egoísmo e “comodidade” para o curador e afrontando os princípios da igualdade, liberdade e a própria dignidade inerente a todos os seres humanos.

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Subsecretaria de edições técnicas. Brasília: 2008.

BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de publicações, 2011.

CARVALHO NETO. Inácio de. Abuso do direito. 4ª ed. Curitiba: Juruá, 2007.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. v. 5. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

GAGLIANO, Pabro Stolze Gagliano; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: as famílias em perspectiva constitucional. vol. VI. São Paulo: Saraiva, 2011.

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RODRIGUES, Renata de Lima. Incapacidade, curatela e autonomia privada: estudos no marco do Estado democrático de direito. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-graduação em direito. Belo Horizonte, 2007.

SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: uma compreensão jurídico-constitucional aberta e compatível com os desafios da biotecnologia. In: Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. coord. Daniel Sarmento e Flávia Piovesan. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2007.

_____________A dignidade da pessoa humana. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2009.

SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 6. ed. atual. São Paulo: Editora Malheiros, 2009.

TARTUCE. Flávio. Considerações sobre o abuso de direito ou ato emulativo civil. In: Questões Controvertidas no novo Código Civil. 1ª ed. São Paulo: Editora Método. 2004.

TARTUCE. Flávio. Considerações sobre o abuso de direito ou ato emulativo civil. In: Questões Controvertidas no novo Código Civil. 1ª ed. São Paulo: Editora Método. 2004. APUD França. Rubens Limongi. Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1997.

VIEIRA, Elisabeth Meloni. O arrependimento após a esterilização feminina. Disponível em: << http://www.scielo.br/pdf/csp/v14s1/1341.pdf >>. Acesso em: 01 nov. 2011.

WALD, Arnoldo. O novo direito de família. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.



[1] Acadêmica do 6º período de Direito na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB ([email protected])