A DICOTOMIA VONTADE DA LEI x VONTADE DO LEGISLADOR NO CASO DO RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL PARA CASAIS HOMOSSEXUAIS: ANÁLISE DOS ARTIGOS CONSTITUCIONAIS.

Barbara Guerra Barbalho

Renata da Silva Costa

 

Sumário: Introdução; 1- Relevância da dicotomia Vontade da Lei x Vontade do Legislador; 1.1 Como os efeitos da interpretação atingem os direitos dos cidadãos; 2. União estável: interpretação conforme a Vontade do Legislador?  Conclusão

 

 

RESUMO

 

Sobre a interpretação normativa existem no Direito, duas correntes divergentes: A primeira, a Vontade da Lei, que afirma que o direito deve ser aplicado em sua literalidade, e a segunda, a Vontade do Legislador, que permite uma interpretação extensiva. A escolha do reconhecimento de união estável para casais homossexuais tem por objetivo ressaltar a conquista de um direito de uma parte da população, que o alcançou através de uma nova interpretação normativa. O Direito deste modo reconheceu a mudança nos conceitos morais da sociedade, deixando de lado uma interpretação normativa focada essencialmente em um momento histórico em que viveu o legislador originário, e que hoje é considerado ultrapassado.

PALAVRAS CHAVE

Homossexuais, Vontade, Lei, Legislador

 

INTRODUÇÃO

 

A dicotomia entre a Vontade da Lei e a Vontade do Legislador influencia na relação entre a sociedade e seus direitos, de forma que a interpretação do texto normativo é de total importância na aplicação do Direito e da Justiça. Enquanto o método da Vontade da Lei se baseia na concepção subjetiva, ou seja, aquela vontade que se impôs historicamente e comporta uma interpretação estática e conservadora, a Vontade do Legislador se baseia na concepção objetiva, que é o próprio conteúdo da lei em si e permite uma interpretação progressiva e/ou evolutiva.

Atualmente, um dos casos de bastante relevância onde se fez o uso de um desses métodos foi o reconhecimento da união estável para casais homossexuais, de forma que o Direito brasileiro adaptou-se a evolução social e aderiu aos fatos que fazem parte da sociedade. Com a modificação dos costumes, fez-se necessária uma regulamentação legislativa adequada a realidade atual, utilizando-se deste modo a Vontade do Legislador em contrapartida a Vontade da Lei.

Utilizando-se somente do texto normativo de forma tácita e pura, o alcance a união estável para casais homossexuais seria praticamente impossível, pois o texto se referente unicamente a união entre homens e mulheres. Por tanto, os legisladores atuais utilizando-se dos valores e ideologias da sociedade hodierna e puderam estender o texto normativo e alcançar os direitos almejados por essa parcela da sociedade.

1.Relevância da dicotomia Vontade da Lei x Vontade do Legislador

As leis são passíveis de erro, tanto na sua elaboração quanto na aplicação, pois são criadas e interpretadas pelo homem, mas devem ser encaradas como se perfeitas fossem. Ao interprete é dada a tarefa de analisar, examinar e estudar o texto normativo buscando a sua melhor aplicabilidade nos casos concretos, praticando assim a hermenêutica jurídica (MAXIMILIANO, p.8-11). Por volta do final do século XIX começou a ser discutido a divergência existente entre a vontade da lei e a vontade do legislador, a final, o que deve ser buscado é a vontade de que produziu a lei ou a vontade objetiva que pode ser encontrada no texto? ( CAMARGO, 2003. p.128)

A escola formal (vontade da lei) defendia a idéia de se fazer uma interpretação objetiva das normas, e dizia que para ocorrer a interpretação, seria necessário que o interprete ‘’abrisse mão’’ das suas ideologias e se limitasse somente as características da própria lei, sem influenciá-la com suas concepções pessoais, acreditando que ao abster o interprete das suas próprias compreensões estariam preservando a segurança jurídica das leis já elaboradas. Já a escola não-formal (vontade do legislador) defendia o subjetivismo, pois considerava relevante as influencias do interprete nas normas, como as suas ideologias, culturas nas normas e pré-concepções.

Para a escola da exegese, que é um exemplo da escola formal, o direito é a própria lei escrita, lei esta que é justa, satisfatória e inequívoca. Diz que pela sistematização das leis seria possível encontrar respostas para qualquer caso, não precisando alterar o texto normativo já produzido, pois ele já era suficiente para resolver os conflitos da sociedade. ( CAMARGO, 2003. p. 65-68)

O exegetismo afirma que para estudar o direito seria preciso se fazer previamente uma análise rigorosa do texto autêntico, valorizando o método sistemático e gramatical para encontrar a verdadeira vontade do legislador, pois a função do operador do direito era fazer apenas a mecânica lógica dedutiva devendo se atentar rigorosamente ao texto legal. A noção do princípio da legalidade e o da supremacia da lei são as principais heranças deixadas, que perdura ate os dias atuais. ( CAMARGO, 2003. p. 65-68)

O interprete sendo um ser do mundo, que vive e recebe influências do seu meio social e está inserido no próprio fenômeno jurídico que estuda que o são as leis. A sua vivencia em sociedade, possibilita formação das suas próprias crenças e ideologias, por isso o abandono absoluto de suas reflexões e valorizações ao fazer a análise de uma lei, se torna impossível. Segundo Eros Grau, a norma é produzida pelo interprete que busca reproduzir o verdadeiro sentido da norma, onde ‘’o produto da interpretação é a norma expressada como tal’’ mas ele não deve fazer uso somente do mundo do dever-ser, mas também do mundo do ser, isso é, se basear nos elementos do caso ao qual a norma será aplicada. (GRAU, 2002. p.73-75)

Na concepção da ‘’vontade do legislador’’, o interprete deve estudar as normas de acordo com a sua postura ideológica, pois para essa corrente, a adaptação da vontade do legislador á realidade social é imprescindível, separando assim o ‘’dever-ser’’ do ‘’ser’’, pois a aplicação da lei deve ser relativo ao fato concreto. Mas isso não significa que a interpretação deve ser reduzida aos juízos de valores do interprete, pois há uma relevante dialética entre os seus valores ( pressuposições) e os valores contidos no texto normativo( valores que o direito e a sociedade almejam).

O interprete deve ter consciência da influencia dos seus valores, então precisa encará-los da forma mais racional possível para que a sua interpretação não seja reduzida aos seus juízos de valor e que não acabe resultando em um comportamento arbitrário. Tem também ele que encarar as suas pressuposições como premissa, que devem ser utilizadas racionalmente tanto para identificar as influências ideológicas como para contextualizar as suas decisões.

A jurisprudência dos interesses, que tem como o principal percussor Heck, e diz que o legislador, ao elaborar a lei, engloba os interesses da sociedade da época em que ele esta inserido, já o juiz, que será o interprete da lei, pode está em um contexto histórico diferente daquele em que a lei foi criada, então ele tem atividade de vincular os interesses do caso concreto com os contidos na lei, fazendo assim uso do método histórico-evolutivo.  O juiz então não deve utilizar a lei de forma literal, pois tem que ter como base os interesses econômicos sociais e morais da coletividade em que se está sendo aplicada a lei, e quando a lei apresentar lacunas se baseará em uma norma já existente, fazendo assim uso da analogia para resolver o problema. ( FALCÃO, 2000. p. 166)

Depois do positivismo sociológico que defendia a idéia que o conhecimento do homem está ligado á fatos sociais e a causalidade, veio Kelsen com a déia do positivismo jurídico em sentido estrito, que objetiva transformar o direito em uma ciência pura universal, afastando-o de todas as influencias exteriores, pois acreditava que o ‘’dever-ser’’ do direito não se dependia a nenhum fato-social ou histórico. Por volta do século XX, a vontade objetiva da lei, que faz uso do método literal e sistemático, acaba por predominar sobre a vontade subjetiva do legislador. (CAMARGO, 2003. p.129)

 A concepção da vontade da lei visa o cumprimento da vontade objetiva da norma e alega que depois da lei ser produzida, adquire total autonomia com relação ao seu produtor. Ela tem como base a escola formal que almeja a segurança jurídica, limitando-se ao conteúdo da lei e evitando que o interprete influencie na norma a ser interpretada, ao ponto de combater a arbitrariedade.

Camargo acaba por estabelecer uma vinculação entre essas duas vontades ( da lei e do legislador) pois diz que ao ser feito a defesa da vontade objetiva da lei, abre-se caminho para a interpretação subjetiva, uma vez que a visão objetiva da lei leva o interprete a buscar o finalidade da norma, por meio da investigação dos valores sociais. ( CAMARGO, 2003. p.133-134).

1.1  Como os efeitos da interpretação atingem os direitos dos cidadãos:  

Onde se tem o ser humano, há a interpretação, pois ele depende dela para que consiga perceber suas características. (FALCÃO, 2000.p.147). A Hermeneutica jurídica é exercida a partir da análise de textos normativos integrais e faz uso de vários métodos, sendo um deles o sociológico que busca efetivar a norma adequando-a á realidade social, evitando assim que se abra um abismo entre eles. Ela é praticada por meio da interpretação que proporciona a sociedade o esclarecimento do conteúdo normativo, mostrando o verdadeiro sentido daquele texto, sendo que para se ter uma compreensão mais acertada, é preciso conectar a norma a realidade social, pois por mais que a norma consiga satisfazer os conflitos da sociedade, ela nunca permanecerá continuamente dentro do contexto social, devido a velocidade em que a sociedade se modifica. ( GRAU, 2002. p. 79-81).

Com o desenvolvimento social faz-se necessário adequar a interpretação da norma com as mudanças da sociedade, pois o direito é também um fenômeno cultural e social, o que dará origem a novas compreensões sem que seja preciso mudar a letra do texto normativo. O interprete do direito então terá a função de mediar a relação entre a sociedade e o sistema jurídico, buscando sempre interpretar as normas de forma tal que a verdadeira finalidade da norma seja atendida. ( BARROSO, 98. p. 131)

A norma jurídica sendo composta por uma linguagem rebuscada afasta a sociedade das normas e dificulta o entendimento do direito. Com a interpretação, os estudiosos convertem a gramática da norma para uma mais acessível, alem de ligá-la ao contexto social, pois a sociedade vive em constante mudança. A possibilidade de interpretação representa o exercício da democracia, pois além da analise ser feito por juristas competentes (interpretes autênticos) pode também ser realizada por qualquer cidadão comum (interpretes não autênticos), embora este último não influencie tão diretamente no sistema jurídico.

2. União estável: interpretação conforme a vontade do legislador?

A decisão do STF de reconhecer a união estável para casais homossexuais através da ADI 4277 e da ADPF 132 foi como será visto, uma mudança na interpretação do texto constitucional.

O artigo 226 parágrafo 3º da Constituição Federal diz: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.” Ao tempo da positivação dessa norma, a cultura e os costumes da sociedade se encaixavam perfeitamente nessa descrição, pois como disse Maria Berenice Dias:

A família assim tutelada pelo Estado sempre teve um perfil patriarcal, sendo uma relação hierarquizada, patrimonializada, verticalizada e, é claro, heterossexual. O homem era o chefe da sociedade conjugal, o cabeça do casal,o administrador dos bens da família.( DIAS, s/d)

Ocorre que novos modelos de famílias foram se apresentando a sociedade ao longo do tempo, como: homens e mulheres solteiros que criam seus filhos (ou até mesmo adotam crianças) sem a participação do cônjuge, irmãos que vivem sem os país e por fim os casais homossexuais.

Todos os exemplos citados guardam semelhança com o modelo de família tradicional, diferindo-se, especialmente nos casos da união homoafetiva pelo gênero dos seus componentes.

Como bem observou Dias, a sociedade é dinâmica, e dela foram surgindo novos modelos de família que precisavam ser protegidos pela legislação. A realidade social mostra hoje novos modelos de união que, por uma questão de direitos fundamentais, deveriam ser reconhecidos.

Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco apresentaram diferentes métodos interpretativos aplicáveis a interpretação constitucional e que justificam uma interpretação extensiva, possibilitando deste modo, o reconhecimento da união estável para casais homossexuais. Foram dados como exemplos o método tópico- problemático que é aquela que adapta a constituição a um caso concreto de forma que sua interpretação seja mais convincente para o problema, o científico-espiritual que leva em consideração muito mais o conteúdo axiológico da norma constitucional do que os próprios conceitos do texto. Ainda justificando o último método afirmam eles:

A essa luz, portanto, em que a Constituição parece como instrumento ordenador da totalidade da vida do Estado, do seu processo de integração e, também da própria dinâmica social, esta não apenas permite, como igualmente exige ma interpretação extensiva e flexível [...].

Por fim existe ainda o método normativo-estruturante que exige para a concretização normativa, uma conexão com as suas funções, levando-se deste modo em conta dois elementos: primeiro, literal, resultante da interpretação do texto da norma (programa normativo), e, segundo, a investigação do domínio normativo ( pedaço da realidade social).( KALABAIDE, 2005)

A interpretação segundo a vontade do legislador, como já foi dito, não se limita só ao texto legal, uma vez que se chega a admitir que, em algumas vezes, o texto não é capaz de traduzir todas as vontades do legislador. Logo, torna-se imperioso, estudar o instante histórico da edição do texto normativo, confrontar os debates parlamentares, apurar as discussões que se travaram à época, observar o processo legislativo, enfim, aclarar o contexto do instante no qual dado texto normativo passou a existir, os motivos que levaram o legislador a editar tal texto e os fins que o legislador perseguia com esta produção. (SILVA, 2009)

Como foi observado todos os métodos interpretativos apresentados levaram a possibilidade da concessão do referido direito aos homossexuais, de forma que a Constituição pôde abarcar de forma mais igualitária seus cidadãos.

 

Conclusão:

A interpretação nada mais é que um instrumento, uma ferramenta, para a exploração de uma nova construção jurídica, que deve ser vista a partir da textura aberta do direito e que deve ser feita para se alcançar o melhor uso do Direito.

Quem interpreta é sempre um sujeito histórico, concreto, que está colocado no mundo sobre o qual está apto a interpretar. O intérprete é um integrante do mundo. Se interpretar é compreender e somente pela compreensão é possível se interpretar, não se pode buscar uma compreensão de um texto legal a partir de palavras isoladas, senão pelo seu conjunto, aí sim a lei ganha sentido.

É no momento em que se utiliza o direito com sua textura aberta, que se encontra sua razão de ser, porque somente dessa maneira que se poder dar abrigo à interpretações que venham a atender os interesses sociais, pois somente se inserindo no mundo em que se vai interpretar é que é possível fazer a utilização dos princípios gerais do direito e dos costumes e da tradição. Desta forma, a vitória alcançada pelos homossexuais nos dias de hoje, prova que o interprete utilizou das ideologias compartilhadas pelos sujeitos de direitos da sociedade atual, e permitiu que uma norma alcançasse seu âmbito jurídico.

REFERÊNCIAS:

 

A união homoafetiva sob a perspectiva constitucional. Disponével em: <http://www.anima-opet.com.br/pdf/anima5-NIC/Tomas.pdf> Acesso em: 04.11.11

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 2.ed. :Saraiva, São Paulo, 1998.

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

DIAS, Maria Berenice. A evolução da família e seus direitos. In: Universo Jurídico. Disponível em: <http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/3229/A_EVOLUCAO_DA_FAMILIA_E_SEUS_DIREITOS>.Acesso em:04. nov. 2011.

FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação / aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2002.

KALABAIDE, Miguel. Métodos e princípios de interpretação constitucional. Disponível em:< http://www.cursoaprovacao.com.br/cms/artigo.php?cod=659> Acesso em: 04.11.11

MAXIMILIANO, Carlos. Hermêneutica e aplicação do direito. 19 .ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002

SILVA, João Fernando Vieira. A interpretação segundo a vontade do legislador. Disponível em: <http://www.investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/hermeneutica/3830-a-interpretacao-segundo-a-vontade-do-legislador>. Acesso em: 04.11.11.