A DICOTOMIA ERUDITO/POPULAR NA MÚSICA BRASILEIRA - O Modernismo de Mário de Andrade e Villa-Lobos -

PRELÚDIO

A dicotomia no “Ensaio” é a utilização preconceituosa como resquício do legado histórico da “colonização” européia? Há algum aspecto em que a música “erudita” seja superior a música “popular”? Em que contexto a música erudita é melhor do que a música “popular”? Quais os distanciamentos e aproximações entre as produções da música erudita e da música popular? Quais as influências sofridas na produção musical brasileira do período modernista? Como o “Ensaio” trata a dicotomia? Quais os critérios utilizados por Andrade para definir a música como erudita ou popular? Como classificar a música de Villa-Lobos em face do Modernismo Brasileiro?

Estes são alguns questionamentos importantes que permearão a nossa discussão.

Para orientar a leitura e facilitar o entendimento, optamos por dividir o texto em quatro partes principais. A primeira se propõe a apresentar algumas considerações musicais em torno dos conceitos apresentados, faz um recorte histórico para contextualizar a dicotomia, e retrata o modernismo brasileiro em face das influências estrangeiras do final do século XIX ao início do século XX; a segunda faz uma reflexão em torno das proposições do Ensaio Sobre a Música Brasileira; e finalmente, a terceira, ilustradas as proposições do “Ensaio” com excertos Choros n°10.

1° MOVIMENTO

PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES MUSICAIS

O que é música?

É definida, tradicionalmente, como a arte de combinar sons para obter efeitos expressivos. Pode também ser compreendida como a arte de combinar som e silêncio. A partir de experiências revolucionárias da música contemporânea admite-se até a música feita só de ruídos ou silêncio. Contudo, a música é uma experiência humana; não deriva das propriedades físicas do som como tais, mas sim da relação do homem com o som, e no conjunto, das relações entre os homens e do resultado das manipulações sonoras individual e/ou coletivamente.

Como definir música erudita e música popular?

Alguns dicionários e compêndios de história especializada apresentam definições para a música erudita como a música em oposição à música popular e música folclórica; em que a atração estética resida principalmente na clareza, no equilíbrio, na austeridade e na objetividade da estrutura formal, em lugar da subjetividade, do emocionalismo exagerado ou da falta de limites de linguagem musical. A música feita no período Clássico, entre 1750 e 1830 na Escola Vienense, refletindo a importância de Viena como capital musical da Europa nesse período, responsável pelo desenvolvimento da sinfonia, do quarteto de cordas e do concerto, protagonizando o triunfo da música instrumental sobre a música coral. Para alguns estudiosos, o termo que melhor a representa é música de concerto, o que demonstra a impossibilidade de classificá-la e qualificá-la.

Em contrapartida, música popular é qualquer gênero musical acessível ao público em geral. Distingue-se da música folclórica por ser escrita e comercializada como uma comodidade, sendo a evolução natural da música folclórica, que seria a música de um povo transmitida ao longo das gerações. Como o nome mesmo já diz, é a música do ou para o povo, oposta à chamada "música erudita" por ter o foco no intérprete e na performance numa determinada camada social.

Como surge e se mantém a dicotomia erudito/popular?

A partir da colonização, com a missão de catequizar e ensinar os povos, os colonizadores instalaram uma visão cultural eurocêntrica, e fizeram com que a religião e educação do “velho mundo” passassem a figurar o cotidiano da terra a ser explorada...

O Brasil passou por um longo período de adaptação das culturas e a dicotomia representada pelo binômio erudito e popular é um fenômeno desse processo. Como conseqüência, a produção musical brasileira é marcada por acentos históricos de oposição, contraposição e justaposição desse binômio.

As primeiras referências à música no Brasil encontram-se na carta de Pero Vaz de Caminha, que relata ao rei de Portugal a musicalidade dos nativos, e nas anotações do padre Manoel da Nóbrega que chega ao Brasil com os primeiros jesuítas, mencionando a música de catequese realizada, e os primeiros registros de partituras são melodias indígenas. Portanto, a Música Erudita no Brasil dos primeiros séculos de colonização portuguesa vinculava-se estritamente à Igreja e à catequese. Com o passar do tempo, irmandades de música, salas de concerto e manuscritos brasileiros vão traçando o perfil de uma atividade crescente no país. Com a chegada de D. João VI, o Brasil teve um grande impulso às atividades musicais.

Vale lembrar que a música dos primórdios da colonização era executada pelos silvícolas brasileiros, e as irmandades de música eram, em grande parte, compostas por mulatos. Classes subalternas, tornado a produção musical brasileira submissa aos protocolos eurocêntricos.

Ainda como resquícios dessa conturbada história brasileira, os centros urbanos em desenvolvimento atraíram duas classes distintas. Uma “culta”, com formação européia ou influenciada, que freqüentava os espaços dedicados à cultura elitizada, se opondo à outra “inculta”, com manifestações popularescas, reprimida e empurrada para as periferias. Essa expansão demográfica dos centros urbanos gerou a sociedade de classes hierarquizadas e dividiu a produção musical em duas vertentes. A erudita ou artística como insiste Andrade, de formação acadêmica, nos conservatórios, principalmente na Europa, ocupando os centros e suas casas de óperas e concertos, que em sua maioria almejava o sucesso internacional. E a popular, daqueles que desenvolveram habilidades musicais fora dos conservatórios, e se reuniam nas periferias para seus encontros musicais.

Uma coisa era comum entre os músicos desse período: a grande maioria se apresentava em casas de espetáculos, salas de cinema, enfim, qualquer espaço, público ou privado, onde houvesse música de entretenimento, e não importava a formação erudita ou popular.

Indivíduos oriundos das camadas populares, cuja formação musical se passava fora dos conservatórios, nas rodas de choro, nas serestas de rua e bandas de música, recebiam dos setores de entretenimento a oportunidade de profissionalização, e alguns músicos se mantinham no exercício do ofício em estabelecimentos frequentados pela chamada “boa sociedade”.

Desde o século XIX existiam no Brasil instituições dedicadas ao cultivo da música erudita e um público de óperas e concertos, tímidos em comparação com os similares europeus, mas lugar da música e dos músicos; e em alguns locais circulavam chorões, além da rede heterogênea do setor de entretenimento. A movimentação boêmia das cidades permitia certa convivência entre intelectuais burgueses e artistas populares, e alguns desempenharam o papel de mediadores que transpuseram fronteiras entre os ambientes culturais hierarquicamente ordenados das sociedades de classe. Entretanto, as fronteiras da música erudita continuaram sendo vigiadas, e era preciso muito prestígio para desafiá-la publicamente.

Para Alaleona (1984), o ocaso do segundo império foi o momento em que frutificou, ainda com a faceta romântica, a obra educativa de Francisco Manuel e surgiu a bifurcação da produção musical em duas correntes. Uma cosmopolita, dos autores influenciados pelas correntes estrangeiras, e outra aderindo os elementos do folclore brasileiro. Após o período romântico em que os artistas sentiram os primeiros contatos com a realidade ambiente, essas correntes se uniram no espírito nacional modernista.

Segundo Travassos (2000), compositores do início do século XX usavam pseudônimo para encobrir o verdadeiro nome o qual pretendiam que se reconhecesse através da música artística. Deixando de atribuir ao seu verdadeiro nome composições de caráter popularesco, “porque escrever música popular era coisa defesa e desqualificante mesmo.”

... Então, o grande desafio do nacionalismo era a conversão profunda dos músicos para fazer coincidir expressão individual e expressão nacional na busca da verdadeira música popular.

A caminho do modernismo

Algumas correntes do Romantismo influenciaram o movimento modernista no Brasil, três das quais, pelo grau de influência e consonância de idéias, destacamos para o melhor entendimento da proposta.

Nas escolas nacionais a música do final do século XIX, embora imbuída do individualismo, reflete as preocupações coletivas relacionadas aos movimentos de unificação que marcam a Europa no período. As composições unem o pensamento nacional às melodias populares. Ocorrem extremos da tonalidade, onde a música deixa de repousar sobre uma só escala, em modulações tradicionais, e torna-se livre. A tensão harmônica é tamanha que a velha harmonia entra em colapso. Tudo para atingir o máximo de expressividade. Esse movimento retoma elementos da música modal, trazidos das melodias populares e do modo de cantar dos povos. Nesse período, surgem obras como a Bagatela sem tonalidade de Lizst, que antecipam o atonalismo expressionista alemão. Também há o Verismo, termo originado da palavra vero (verdade em italiano) que é a utilização de temática cotidiana, na qual os personagens, heróis mitológicos são substituídos por pessoas comuns. Outro movimento de suma importância é o Impressionismo que surge na França, em meados do século XIX, como um novo modo de percepção do mundo, que se reflete principalmente na música e nas artes plásticas. A arte do extremo oriente fonte de inspiração dos impressionistas se revela na valorização da sonoridade dos instrumentos musicais e dos jogos harmônicos e se afasta das temáticas épicas do romantismo. Retoma elementos modais da música européia do passado, escalas de origem oriental e uma sucessão de acordes que recombinam as notas como modo de modificar o colorido harmônico.

A realimentação histórica nos faz lembrar que o Brasil passou por um processo de colonização exploratória e excludente.

Após a incursão colonizadora européia, o Brasil catalisou as influências culturais dos povos primitivos brasileiros representados pelos “indígenas”, pelos negros trazidos da África, e dos europeus que se atribuíam a detenção da cultura “superior”. Esse processo, transcrito nos livros como “civilizador”, coadunou na hibridização cultural brasileira, porém houve a hipervalorização dos colonizadores, de cultura letrada, reconhecida como superior e erudita, em detrimento dos colonizados e colaboradores, iletrados, que para os europeus eram detentores, apenas, de práticas e costumes inferiores, pagãos, assumindo com o tempo, a classificação pejorativa de populares. A idéia de valorizar a cultura européia como superior perdurou até meados do século XIX, salvo em algumas pequenas manifestações isoladas e reprimidas; o que manteve o Brasil distante de suas raízes, longe de encontrar sua própria identidade, e gerando as dicotomias elite/povo, erudito/popular.

O caminho para o nacionalismo das primeiras décadas do século XX começa a ser aberto por compositores brasileiros com formação erudita européia, principalmente francesa, que utilizaram temas do folclore brasileiro, incidindo no Folclorismo, ainda voltado para os padrões europeus. Diante da situação explica Andrade:

Até há pouco a música artística brasileira viveu divorciada da nossa entidade racial.  A própria música popular da Monarquia não apresenta uma fusão satisfatória. Era fatal: os artistas duma raça indecisa se tornaram indecisos que nem ela. (Andrade, 1962, p. 13).

O modernismo propõe uma ruptura com o passado... O reconhecimento europeu da arte brasileira, como nas primeiras exposições das riquezas locais à corte portuguesa, era através do exotismo exacerbado como conclui Andrade:

O que exigem a golpes duma crítica aparentemente defensora do patrimônio nacional, não é a expressão natural e necessária duma nacionalidade não, em vez é o exotismo, o jamais escutado em música artística, sensações fortes, vatapá, jacaré, vitória-régia. Um dos conselhos europeus que tenho escutado bem é que a gente se quiser fazer música nacional tem que campear elementos entre os aborígenes pois que só mesmo estes é que são legitimamente brasileiros. Isso é uma puerilidade que inclui ignorância dos problemas sociológicos, étnicos psicológicos e estéticos... Que isso baste prá gente adquirir agora já o critério legítimo de música nacional que deve ter uma nacionalidade evolutiva e livre.(ANDRADE, 1962, p. 15-19).

Mas nem todos os aderem a essas mudanças... A alternância entre os modelos europeus e a descoberta de um caminho próprio; e a dicotomia entre o erudito e popular são as duas linhas de forças que tencionam o entendimento da música no período modernista.

É comum entre nós a rasteira derrubando da jangada nacional não só as obras e autores passados como até os que atualmente empregam a temática brasileira numa orquestra européia ou no quarteto de cordas. É que os modernos, ciosos da curiosidade exterior de muitos dos documentos populares nossos, confundem o destino dessa coisa séria que é a Musica Brasileira com o prazer deles, coisa diletante, individualista e sem importância nacional. (Andrade, 1962, p.13)

O modernismo provocou uma radical mudança no panorama artístico e ideológico brasileiro e uma revolução estética que modificou as linguagens na literatura, nas artes plásticas e na música; pretendendo reivindicar um olhar propriamente brasileiro para compreender o mundo e a sua própria tradição cultural, teve seu apogeu na Semana de Arte Moderna de 22.

O movimento tinha a proposta de levar ao público mais amplo a nova maneira de codificar diferenças que passavam a ser interpretadas como sinais de modernização. A ausência de certas convenções de representação realista (... sugere rompimento com o passado) catalisou artistas, poetas e jornalistas em torno da polarização modernista. A ênfase era encontrar bases para a edificação da arte apropriada aos novos tempos, transmutada em uma situação brasileira embrionária e desconhecida dos artistas. Era, portanto, o direito dos artistas à pesquisa estética (... para redescobrir o Brasil) segundo a inteligência nacional (...) que se configurou no cenário artístico brasileiro.

Nosso folclore musical não tem sido estudado como merece. Os livros que existem sobre eles são deficientes sob todos os pontos-de-vista. E a preguiça e o egoísmo impedem que o compositor vá estudar na fonte as manifestações populares. Quando muito ele se limitará a colher pelo bairro em que mora o que este lhe faz entrar pelo ouvido da janela. (Andrade, 1962, p. 70)

2° MOVIMENTO

ENSAIO SOBRE A MÚSICA BRASILEIRA - Da dicotomia à relação dialógica

A leitura superficial nos aponta certa necessidade de desligamento com as tradições e convenções musicais do passado afim de que o valor nacional seja redescoberto. Essa sensação vai se dissipando à medida que ele sugere a utilização artística, mesmo que em moldes europeus, para transmutação da música popular.

As diversas citações do binômio erudito e popular em relação à música nos sugerem que mesmo no momento de modernização persistia a dicotomia. Mas se dissipa quando indica a necessidade de intervenção artística do material popular nacional a fim de que alcance valor universal. A música existente no populário era de valor nacional pelas nuances características do povo que a produzia, contudo, ainda não estava pronta para ser transposta para as salas de concerto e demais ambientes consumidores de música artística.

Então, erudito e popular, antes expressões dicotômicas, alcançavam na proposta de Andrade, a metamorfose modernista que geraria uma relação dialógica para a formulação da nova música e sua projeção artística. Os elementos extraídos do folclore ganhariam acurada atenção por parte dos artistas responsáveis pela sua transformação.

Já não haveria separação entre erudito e popular para transformação da música nacional em cosmopolita, e a cultura brasileira seria repensada. Andrade procurava estabelecer um novo modo de relacionamento com as culturas do povo. Dessa feita, um relacionamento de atenção, respeito, e cuidado; para que o produto dessa relação, a música nacional, não se tornasse uma caricatura extravagante da identidade nacional como queriam os europeus e seus aficionados retrógrados.

O tratamento artístico (leia-se erudito) pelo qual a música brasileira deveria passar pressupunha o ritmo, a melodia, a harmonia, a instrumentação e a forma; todos indicados no berço popular, ou como insiste Andrade: “no populário nacional”.

São fundamentadas tecnicamente todas as suas proposições. E ele busca na historicidade da música ocidental e especificamente brasileira, outras fundamentações que corroboram com a proposta do “Ensaio”, a qual é delimitar o campo da pesquisa-ação para a construção desse discurso musical que desvelaria a pujante força da arte desinteressadamente brasileira, que segundo o pensamento da época seria nova e nossa.

Apoiado em experiências pregressas e da contemporaneidade modernista de compositores brasileiros e estrangeiros, Andrade, em seu “Ensaio”, exemplifica cada crítica e discorre com muita propriedade tudo o que concerne à música como arte cultural de uma sociedade que busca identificar-se. Dentre os muitos citados no “Ensaio”, destaca-se uma figura de personalidade forte, que, como Andrade, incursionou pelos Brasis para descobrir a genialidade e a força do populário brasileiro. Este, Villa-Lobos, consegue traduzir em muitas de suas peças a intenção nacionalizadora proposta, como se seguisse os escritos do “Ensaio”. Nesse sentido Andrade foi extremamente feliz em indicar que o artista deveria não somente buscar, mas estudar com perspicácia a fonte da qual extrairia o material para sua obra criadora.

Uma das peças que melhor representa essa relação dialógica a qual nos referimos é o Choros n° 10, cognominado “Rasga Coração”. Nele percebemos “ipso facto”, o tratamento rítmico, métrico, melódico, harmônico, instrumental, formal e lingüístico. Esta obra é ao nosso ver, a concretização de todas as formulações proposta no “Ensaio”.

COMENTÁRIOS E CITAÇÕES

O “Ensaio” é uma obra na qual percebemos seu profundo conhecimento musical e sua extensa preocupação em tornar a produção musical brasileira verdadeiramente nacional. Contudo, tal música, de berço popular, necessitaria de um tratamento erudito que a tornasse universal. A música existente no populário era de valor nacional por suas nuances características, advindas do povo que a produzia, mas, ainda não estava pronta para ser transposta para as salas de concerto e demais ambientes consumidores de música artística.

Sem perder em nada o valor artístico porque não tem gênio por mais nacional que não seja do patrimônio universal.  Todo artista brasileiro que no momento atual fizer arte brasileira é um ser eficiente com valor humano. (Andrade, 1962, p.)

Ele aborda com muitíssima propriedade os elementos constitutivos da música, além de discorrer com muita competência sobre os aspectos estruturais, fazendo do “Ensaio” um verdadeiro tratado da composição moderna brasileira.

A metamorfose que gerou separação entre erudito e popular, para transformação da música nacional em cosmopolita, gerou opções contraditórias no modernismo, e a cultura brasileira foi repensada. Andrade procurava estabelecer um novo modo de relacionamento com as culturas do povo. Segundo Andrade “o artista tem só que dar para os elementos já existentes uma transposição erudita que faça da música popular, música artística, isto é: imediatamente desinteressada” (1962, p.16).

Essa reorientação cultural, na interseção entre modernismo e música, ocupa lugar de destaque no “Ensaio” com o binômio erudito/artístico e popular/populário. Os aspectos discutidos por Andrade, mesmo sugerindo o descarte de apropriações estrangeiras que descaracterizem a música brasileira, não assumem uma posição xenofóbica.

O critério de música brasileira prá atualidade deve de existir em relação a atualidade. A atualidade brasileira se aplica aferradamente a nacionalizar a nossa manifestação. Coisa que pode ser feita e está sendo sem nenhuma xenofobia nem imperialismo: O critério histórico atual da Música Brasileira é o da manifestação musical que sendo feita por brasileiro ou indivíduo nacionalizado, reflete as características musicais da raça. Onde que estas estão? Na música popular. (Andrade, 1962, p. 20)

Propõe uma relação dialógica entre o erudito e o popular, a fim de que a música brasileira, se apropriando da riqueza do populário brasileiro alcance valor humano universal. Andrade (1962, 16) enfatiza que “uma arte nacional já está feita na mente do povo. O artista tem só que dar para os elementos já existentes uma transposição erudita que faça da música popular, música artística, isto é: imediatamente desinteressada.”

Para ser desinteressada, [a arte deveria romper com as tradições românticas de representação realista e tornar-se reflexiva, ou seja, da arte para a arte, sem o interesse de reconhecimento pessoal, mesmo que a obra esteja carregada das digitais do artista. O próprio Andrade ressalta que “sua obra é interessada, uma obra de ação” (1962, p. 73), se interessa em mobilizar e tirar os leitores da zona de conforto. E em toda trajetória do “Ensaio” percebemos o interesse em formular uma orientação que valorize a música popular através da música artística, contudo, sem o jacobinismo radical de alguns estudiosos e críticos da época.

Brasil é uma nação com normas sociais, elementos raciais e limites geográficos... Do que estamos carecendo imediatamente é dum harmonizador simples mas crítico também, capaz de se cingir à manifestação popular e representá-la com integridade e eficiência... Harmonizações duma apresentação crítica e refinada mais fácil e absolutamente adstrita à manifestação popular. Pois é com a observação inteligente do populário e aproveitamento dele que a música artística se desenvolverá. Mas o artista que se mete num trabalho desses carece alargar as idéias estéticas senão a obra dele será ineficaz ou até prejudicial. Nada pior que um preconceito. Está claro que o artista deve selecionar a documentação que vai lhe servir de estudo ou de base. Mas por outro lado não deve cair num exclusivismo reacionário que é pelo menos inútil. A reação contra o que é estrangeiro deve ser feita espertalhonamente pela deformação e adaptação dele. Não pela repulsa. (Op. cit.)

3° MOVIMENTO

O Chorus n° 10

Villa-Lobos sintetiza em sua obra diversos elementos da música folclórica, instrumentos da música popular, e abandona as formas “clássicas” para dar vazão a sua genialidade musical. No Choros n° 10 esses elementos se encontram peça.

Na análise lítero-musical, partimos do título Choros n° 10 que já indica o abandono das formas antigas como sinfonia, concerto, etc., propondo uma nova forma, extraída da música popular.

Figura 1 - Naipe de madeiras do para o Choros n° 10. (Villa-Lobos, 1926, p.1).

A orquestração completa é assim indicada: madeiras - 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes em La, 1 saxofone alto, 2 fagotes e 1 contra fagote; metais - 3 trompas em Fa, 2 trompetes em La e 2 trombones; percussão - bateria completa, 2 tímpanos, grande tamborim, caixa clara, tambor, caxambu, 2 cuícas, pequena e grande caixa de madeira, reco-reco grande e pequeno, chocalho de metal e de madeira, tambor sinfônico, gongo, e piano; cordas pinçadas - harpa; vozes - coral; cordas friccionadas - violinos I e II, viola, violoncelo, e contrabaixo.

Figura 2 - Naipe de percussão do Choros n° 10. (Villa-Lobos, 1926, p.1).

Essa instrumentação demonstra a preocupação de Villa-Lobos na utilização de instrumentos convencionais da percussão orquestral com instrumentos étnicos. O que chama a atenção é a quantidade de tambores utilizados nesse naipe, o que exigiria uma dedicação especial à dinâmica, o que realiza de acordo com o adensamento da massa orquestral (saindo de “p”  e terminando pesante com “ffff”).

Figura 3 - Motivo da flauta imitando o canto do pássaro no Choros n° 10. (Villa-Lobos, 1926, p.1).

            A flauta surge sobre a tenuta da trompa do compasso 4 ao 7. Esse desenho anguloso sugere o canto de um pássaro com a aceleração rítmica das quiálteras de 3 e 6, e desaceleração finalizando em nota longa m relação às células anteriores. O excerto mostra que Villa-Lobos, mesmo pintando a paisagem sonora não se preocupou em escrever literalmente o canto do pássaro.

A questão da síncopa, enfatizada por Andrade é bem representada por este trecho do piano nos compassos 32 a 36. Como sugerido no “Ensaio”, a síncopa não é enfatizada na peça, após sua apresentação, ela é confirmada e retorna esporadicamente. Na figura 4 o piano irrompe como um instrumento caracteristicamente rítmico, na região aguda, oitavando o motivo melódico, e abandonando a forma harmônica e virtuosística como vinha sendo usado no Romantismo. Esta é uma afirmação do rompimento com os cânones passados. Na figura 5 a síncope é reiterada no trombone, com uma variação de dilatação rítmica, substituindo as semicolcheias e colcheias pelas colcheias e semínimas. É interessante notar a forma como a síncope é disfarçada pela articulação do trompete.

Figura 4 - Síncopa no piano do Choros n° 10. (Villa-Lobos, 1926, p.6).

Figura 5 - Síncopa no trombone no Choros n° 10. (Villa-Lobos, 1926, p.7).

            Poderíamos apresentar outros excertos da harmonia, porém optamos pela idéia de máxima diluição tonal através dos harmônicos nos violoncelos e contrabaixos. Mesmo com a tenuta do solo de contrabaixo e a harmonia nos violinos e violas como acordes dominantes disfarçados, o efeito glissando faz com que a harmonia crie uma atmosfera etérea, como cortina dinâmica em ppp.

Figura 6 - Tratamento harmônico em diluição no Choros n° 10. (Villa-Lobos, 1926, p.7).

            Um dos últimos elementos a ser apresentado no Choros n° 10 é o coral cantando em um dialeto indígena. A figura 7 mostra a maneira como o coro é tratado, e reflete uma influência bachiana em Villa-Lobos, mas, diferentemente da perseguição polifônica característica de J. S. Bach, aqui percebemos muito mais uma exploração de ritmo e timbre em um coro a cinco vozes, transformando esse elemento em uma fuga proverbial.

Figura 7 - Elemento do coral no Choros n° 10. (Villa-Lobos, 1926, p.7).

CODA

Qual estudante de música não ouviu a clássica definição de que música “é a manifestação dos sentimentos mediante o som”? Não obstante alguns compêndios de música a classificarem “simplesmente” como a combinação do som e do silêncio, e outros não descartarem os ruídos da produção musical experimental e expressionista do século XX com fins estéticos, a música deriva da relação do homem com o fenômeno acústico (o som com suas propriedades físicas) e essa relação implica em uma série de aspectos como o criador, o intérprete, o ambiente e o público. [a mídia fez com que hoje seja o contrário].

A visão holística da música moderna brasileira, mesmo diante de resistências e com o surgimento de diversas linguagens, permitiu a aproximação entre o erudito e o popular. A nova música nossa, segundo o cânone modernista fez aflorar, através do conhecimento do populário, a maior riqueza da produção musical brasileira através de obras como o Choros n° 10.

A despeito do não entendimento sobre a dicotomia, podemos afirmar que a riqueza cultural do Brasil é mais valiosa que o exotismo exposto durante séculos; e a forma antropofágica de devorar o outro para absorver o seu poder, fez com que a música brasileira de Villa-Lobos se apropriasse da inestimável contribuição erudita européia aliada aos elementos brasileiros para criar uma arte nova, na qual figuram,  concomitantemente, os elementos dinamogênicos que nos levam a sentir a exuberante força da cultura desse povo brasileiro.

Enfim, a dicotomia não deveria existir em se tratando de música, porém permanece até os dias atuais. Entretanto, a sugestão é, em qualquer momento da história, que se dê mais atenção às manifestações populares para tirarmos o maior proveito dessa riqueza. Música popular e erudita nas escolas.

REFERÊNCIAS

ALALEONA, Domingos. História da Música. Trad. João Caldeira filho. 14. ed. São Paulo: Ricordi, 1984.

ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Martins, 1962 [1928].

GROVE, Dicionário de música. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

VILLA-LOBOS, Heitor. Choros n° 10 pour Orchestre et Choeur mixte. Paris: Max Eschig, 1926.