A DESIGUALDADE PENAL FRANCISCO THIAGO MOTA FERREIRA FRANCISCO FERNANDO CAVALCANTE NOGUEIRA JÚNIOR Trabalho apresentado à disciplina de Estágio Supervisionado de Prática Jurídica I, do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, como parte dos requisitos para a aprovação na referida disciplina. Orientador: Professor Márcio Ferreira Rodrigues Pereira. Sumário: 1. RELATÓRIO DOS FATOS; 1.1 Da Denúncia; 1.2 Do Recebimento da Denúncia; 1.3 Da Defesa Prévia; 2 ANÁLISE CRÍTICA DO CASO. RESUMO O presente estudo trás um caso prático, qual seja, o furto de água contra uma concessionária de água do Ceará, e, a partir desse substrato, faz-se uma análise crítica acerca da aplicação do Direito Penal brasileiro quando se leva em consideração as diferantes classes sociais. Teoriacente, nosso ordenamento contitucional prima pela isonomia como princípio básico e inderrogável. Ocorre que a desigualdade social presente no Brasil se reflete nas diferentes condições existentes entre ricos e pobres no acesso à Justiça, gerando, por sua vez, duas realidades no tratamento dispensado pelo Judiciário a essas duas classes. Na prática, portanto, existiria um Direito Penal dos ricos em contraponto a um Direito Penal dos pobres? A isonomia constitucional realmente é rechaçada pela barreira desafiadora que separa a teoria da prática? Esses são os questionamentos que pretendemos desenvolver no presente trabalho. 1) RELATÓRIO DOS FATOS 1.1) DA DENÚNCIA Trata-se de uma denúncia oferecida pelo Parquet cearense. A peça inaugural oferecida pelo Ministério Público estadual tem por base o inquérito policial instaurado contra o Sr. Antônio Francisco por este ter – no dia 28 de fevereiro de 2011, por volta das 11:00 hrs da manhã, na Av. I, nº 100, 1ª etapa, bairro Prefeito José Walter, Fortaleza – tentar subtrair água da Companhia de Água e Esgoto do Estado do Ceará – CAGECE, utilizando-se de uma ligação clandestina, não concretizando o seu propósito delitivo por circunstâncias alheias a sua vontade, segundo se extrai dos autos do inquérito policial. O flagrante se deu quando policiais militares, que desenvolviam trabalho ostensivo no entorno do Bairro José Walter, flagraram o denunciado realizando uma ligação clandestina na tubulação de distribuição de água da CAGECE. Diante do fato, os policiais entraram em contato imediatamente com a CAGECE para que esta procedesse aos reparos dos danos causados. Ato contínuo, o denunciado recebeu voz de prisão. Nos autos do inquérito, verifica-se o inteiro teor da qualificação delitiva realizada pelo Ministério Público estadual em face do Sr. Antônio Francisco, conforme se depreende a seguir: “Diante do exposto, vem o representante do Ministério Público do Estado, oferecer a presente denúncia contra Antônio Francisco DOS SANTOS SILVA, vulgo IRMÃO, como incurso nas penas do art. 155, § 3º, c/c o art. 14, inciso II, do Código Penal Brasileiro, requerendo que, uma vez recebida e autuada esta, seja determinada a CITAÇÃO do denunciado para responder à acusação , por escrito, dentro do prazo legal (art. 396 do CPP), rogando, ainda, pela notificação da pessoa ofendida e das testemunhas a seguir indicadas, para deporem sobre o fato em juízo (art. 400 do CPP), como forma de provar o articulado na peça denunciatória, sendo ao final JULGADA PROCEDENTE, com a condenação deste nas penas do mencionado tipo penal.” Às fls. 07, repousa o Auto de Prisão em Flagrante de Antônio Francisco, que, conforme se depreende do mesmo, teve supedâneo na prisão realizada pelo Policial José Wellington Pereira do Vale, policial em serviço no dia do fato delitivo. Segundo consta, ao se deparar com a cena de Antônio Francisco realizando a ligação entre dois canos para fins de desviar clandestinamente água da CEGECE, o policial interveio na ação do denunciado e lhe deu voz de prisão. Levado à Delegacia do 8º Distrito Policial, a autoridade policial deliberou por ratificar a voz de prisão dada pelo condutor e, após cientificar o preso de seus direitos individuais previstos no art. 5° da Constituição Federal, determinou a lavratura do referido Auto de Prisão em Flagrante, instruído dos seguintes documentos, “ipsis literis”: 1) Oitiva do condutor com entrega de cópia do termo; 2) expedição de recibo de entrega do(s) preso(s) em favor do condutor; 3) oitiva das testemunhas e vítimas; 4) Interrogatório do(s) conduzido(s). Escusados nos referidos elementos de convicção colhidos, a autoridade policial julgou subsistente o Auto de prisão em flagrante, determinando, ainda, a expedição de nota de culpa ao preso. Nos autos do Inquérito Policial, encontra-se o Termo de Depoimento do Sr. José Wellington Pereira do Vale, policial que deu voz de prisão em flagrante à Antônio Francisco e o conduziu ao 8º Distrito Policial. Por parte do denunciado, este foi submetido a interrogatório e esclareceu em seu depoimento que não estava fazendo, mas sim reparando uma ligação já existente desde o ano de 2010, quando os policiais chegaram no local e lhe deram voz de prisão por acreditarem se tratar de um caso de ligação clandestina de água. O denunciado alega que não sabia que a ligação era clandestina, apesar de ter conhecimento de que em sua terminação não havia hidrômetro. Antônio ressalta que é uma das pessoas responsáveis pela manutenção das ligações de água da ocupação 17 de abril. Às fls. 22, encontra-se a Nota de Ciência das Garantias Constitucionais de lavra da Autoridade Policial e assinada pelo denunciado, a qual tenta transpassar que todos os procedimentos foram validamente cumpridos e, então, garantidos os direitos fundamentais do Sr. Antônio Francisco, verbis: “FAZ SABER Antônio Francisco DOS SANTOS SILVA, preso (a) em flagrante delito nesta data, pelo(s) crime(s) previsto(s): ART. 155, CODIGO PENAL (DEC. LEI 2848) C/C ART. 14, II, DO CODIGO PENAL Que o art. 5° da Constituição Federal lhe assegura os seguintes direitos: a) respeito à sua integridade física e moral; b) de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e do advogado; c) a comunicação desta sua prisão à sua família ou a pessoa por si indicada; d) A identificação dos responsáveis por seu interrogatório policial.” Ato contínuo, o Delegado de Polícia titular do 8º Distrito Policial, Sr. Antônio Elzo Moreira Ferreira, oficiou ao Judiciário para comunicar a prisão em flagrante delito do Senhor Antônio Francisco dos Santos Silva, por infração aos já citados artigos do Código Penal, deixando o caso a cargo do competente juiz de direito para fins de controle da legalidade do ato. Tal documento pode ser constatado às fls. 28 dos autos, sendo exarado no dia 28 de fevereiro de 2011, mesmo dia de realização do Auto de Prisão em Flagrante Delito. Na mesma oportunidade, a autoridade policial enviou ofício ao Parquet dando-lhe, também, ciência acerca da prisão em flagrante, conforme determina o art. 3° da Lei complementar de nº 09 de 23 de julho de 1998, dispositivo este que dispõe sobre o controle externo exercido pelo Ministério Público sobre a atividade policial. Ressalte-se que, conforme se extrai das fls. 30, o Inquérito Policial ficou concluso ao Sr. Delegado, que o despachou determinando ao escrivão que exarasse o relatório final e, então, procedesse à remessa dos autos conclusos ao Poder Judiciário. Sanado o Inquérito Policial – contendo este todos os elementos necessários, a juízo da autoridade policial, para comprovar a materialidade do delito - eis que foi exarado relatório destinado ao Judiciário sobre o caso, dando detalhes sobre os fatos e, ao final, contendo a conclusão no sentido da culpabilidade do Sr. Antônio Francisco, conforme se depreende da conclusão ao seu final firmada: “Comprovada a materialidade do delito, determinadas as circunstâncias e autoria do fato, completos estão os trabalhos da Polícia Judiciária em torno desse evento delituoso.” Há de se ressaltar que as testemunhas são também policiais, as quais estavam realizando patrulhamento ostensivo no local quando avistaram o senhor Antônio Francisco praticando os atos de execução, segundo elas, com fins de desviar água da Companhia de Água e Esgoto do Estado do Ceará – CEGECE. Logo, fica nítido que as testemunhas são propriamente agentes do estado, colegas de José Wellington Pereira do Vale, policial que deu voz de prisão em flagrante delito ao denunciado, conduzindo-o à Delegacia. Outro ponto relevante que se deve destacar é que a quarta pessoa levada em consideração para fins de instruir o Inquérito Policial através do seu depoimento, é justamente um preposto da CAGECE, Edimilson Morais de Sousa, identificado como supervisor de fraudes da CAGECE. Aos 02 de março de 2011, foi feita a remessa dos autos do Inquérito Policial ao Poder Judiciário – Comarca de Fortaleza. 1.2) DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA: A denúncia foi oferecida na 2ª Vara Criminal, localizada no Fórum Clóvis Beviláqua. Analisando os fólios, a Mma. Juíza de Direito – Dra. Adriana Aguiar Magalhães – verificou que os fatos descritos na denúncia realizada pelo Parquet cearense constituem, em tese, crime punível, com pena de reclusão e multa, concluindo que a peça exordial de delação apresenta os requisitos básicos e elementares no tocante à admissibilidade, nos termos do art. 41 do CPP. Logo, não se vislumbrou, inicialmente, nenhuma das circunstâncias ensejadoras de sua rejeição, levando-se em conta também o art. 395 do Código de Processo Penal. Relativamente à possibilidade de suspensão condicional do processo, a magistrada considerou que – tendo em vista que o denunciado responde a outro procedimento criminal perante o juízo da 3ª Vara Criminal – era dispensável a audiência para apresentação de proposta de suspensão condicional do processo, na forma do art. 89 da lei nº 9.099/95. Determinou-se, então, que o denunciado fosse citado, nos termos do art. 396 do CPP, para que se defendesse das acusações que lhe foram imputadas na denúncia, fazendo isso por escrito e no prazo de 10 (dez) dias. 1.3) DA DEFESA PRÉVIA O Réu, representado por advogado constituído nos autos, apresentou defesa prévia. Inicialmente, a defesa tratou de ressaltar que o acusado é pedreiro profissional e fora chamado por seus vizinhos para verificar um vazamento de água na tubulação que abastece, “precariamente”, as famílias de uma comunidade onde Antônio Francisco reside. Afirma-se, pois, categoricamente que o réu apenas procedia com reparos na encanação, não chegando nem a consumar o serviço para o qual foi chamado. Nesse ínterim, o denunciado foi surpreendido pelos policiais militares, aos quais viu se juntar a representação da CEGECE, momento em que foi decretada prisão em flagrante por um dos policiais por suposta tentativa de furto de água. Por esse alegado delito, o Sr. Antônio Francisco teria amargado 16 (dezesseis) dias preso no 8º Distrito Policial, sendo depois deferida a liberdade provisória pelo Judiciário. Segundo a defesa, o acusado é trabalhador, de conduta social irreparável, morador da comunidade Comuna 17 de Abril, onde centenas de famílias aguardam definições dos Órgãos públicos responsáveis pela política habitacional acerca do rumo de suas vidas. Devido a isso, essas famílias sem teto são obrigadas a improvisarem, de maneira precária, meios de subsistir com um mínimo de dignidade. A par disso, firma a peça no sentido de que restará comprovada a absolvição do Sr. Antônio Francisco no decorrer da instrução justamente devido à insignificância da conduta imputada ao acusado, bem como em virtude da atipicidade dessa conduta. 2) ANÁLISE CRÍTICA DO CASO Diante da situação prevista nos autos, o primeiro aspecto a ser considerado é o relativo à prisão. Assim, quanto ao fato do autuado ter amargado 16 dias presos no 8º Distrito de Polícia Civil, algumas considerações devem ser apontadas. A insigne questão é que o Juiz somente deve manter o autuado preso se os “fundamentos” da prisão preventiva estiverem presentes. Isto se dá porque a manutenção da prisão em flagrante só é possível diante da sua conversão – de forma fundamentada - em prisão preventiva autônoma. Lembre-se que a prisão preventiva somente pode ser decretada se não for possível a sua substituição por uma medida alternativa menos onerosa. Em outros termos, inexistentes os requisitos da prisão preventiva, deve o Juiz conceder a liberdade provisória, mesmo diante daqueles situações onde a materialidade e autoria são incontestes. Trata-se de um poder/dever do Juiz em face do fato de que o autuado possui, em regra, direito público subjetivo à liberdade provisória. Nesta toada, é a redação do novo art. 310 do CPP: “Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão”. A verdade é que, em consonância com a ordem constitucional, a prisão em flagrante tornou-se efêmera e por assim dizer limitada ao prazo de 24 horas do art.306 do CPP. Outro aspecto é o fato de que o STJ considera que o pagamento da fiança não é imprescindível para concessão da liberdade provisória. Assim, tal Corte já decidiu ser ilegal manter preso o réu pobre apenas em razão do não pagamento da fiança. Ressalte-se aqui a norma prevista no art. 350 do CPP: "nos casos em que couber fiança, o juiz, verificando ser impossível ao réu prestá-la, por motivo de pobreza, poderá conceder-lhe a liberdade provisória, sujeitando-o às obrigações constantes dos arts. 327 e 328. Se o réu infringir, sem motivo justo, qualquer dessas obrigações ou praticar outra infração penal, será revogado o benefício". Quanto à materialidade do delito, registre-se que nos autos encontra-se ofício solicitando perícia no local, fl. 27. Registre-se que tal perícia não foi realizada e, apenas dois dias após a expedição do ofício que solicitou a perícia não realizada, a autoridade policial produziu relatório. A única certeza que se tem é que se tem dúvidas: tratar-se-ia de uma mera tentativa de reparo em um cano ou a tentativa de furto de água? Por enquanto, em face dos elementos constante nos autos, a dúvida há de beneficiar o réu. Quanto à autoria, assume-se nos autos que várias ligações clandestinas eram levadas a cabo por várias pessoas. Outra aspecto a ser levado em conta, asseverado em defesa preliminar, é que não se pode deduzir autoria do simples fato de alguém estar próximo a um vazamento. Outro aspecto relevante é o fato de a política legislativa criminal não abrir mão da sanha penalizadora para combater crimes menos relevantes – de menor danosidade social – como o furto, e, nos casos de crimes mais graves, como os que tratam de interesse supra individual, agir de modo diametralmente oposto. A primeira premissa a ser considerada é que o Direito Penal não pode ser instrumento de transformação da sociedade ou do indivíduo porque é bem provável que essa função haverá de ser orientada pela ideologia dominante. Diante de novos paradigmas, ficamos com uma infeliz constatação: os criminalistas são praticamente unânimes em afirmar que o Direito Penal é discriminatório e “protetor dos interesses das camadas dominantes”. Assim, pergunta-se: Por que não se puni crimes que lesam bens jurídicos supra individuais com o mesmo rigor da punição de crimes contra a propriedade individual? Por que não se estender os privilégios concedidos pela lei também à “plebe” em geral? Diante de tal quadro, deve-se encarar a criminalização da pobreza e considerarmos discutir sobre a “pobreza da criminalização” dos setores que realmente colocam em risco bens jurídicos mais relevantes. E, para este intento, não é preciso considerar-se estender as graves penas aos delitos da elite dominante. Na concretização da Constituição na dimensão penal, com certeza não há a exigência de se utilizar o Direito Penal como um instrumento de vingança das classes dominadas contra a histórica criminalização da pobreza. Outro aspecto constitucional merece menção: a Constituição não abre mão do Direito Penal. A questão é: como conseguir tal intento sem que o Direito Penal se torne autoritário e ao mesmo tempo fuja da ideia de se tornar um Direito Penal “de classe”? Neste breve tempo de vigência da nova Constituição e dentro dos parâmetros permitidos e disponíveis à jurisdição constitucional, os doutrinadores e a jurisprudência podem e devem ter atuação importante nesse processo de institucionalizar a igualdade no direito, em especial no direito penal. É fato de que ainda não se encontrou explicação melhor para a criminalidade do que as disparidades sociais! Também é verdade que a Constituição, ao determinar que um de seus objetivos da República é erradicar a pobreza, não determina que esse objetivo será alcançado utilizando-se do Direito Penal; mas isso também não significa dizer que a pobreza continue a ser criminalizada como se estivéssemos em séculos passados. Certamente algo deve ter mudado com o prelúdio de um novo paradigma constitucional! Agora, com um olhar mais concreto sobre o ordenamento jurídico, uma diferença entre o Direito Penal e o direito penal. Ou mais especificamente a diferença entre o “Direito Penal” dos ricos e o “direito penal” dos pobres. Sob um viés utilitarista, o Direito Penal visa a proteção de bens jurídicos de lesões ou ameaças de lesões. Assim, quanto mais preservados esses bens estiverem, mais próximo de seu intento ideal estará o Direito Penal. É por isso que se prevê a desistência voluntária (CP, art. 15) e o arrependimento posterior (CP, art. 16). Nos crimes contra o patrimônio individual, em regra, reparado o dano ou restituída a coisa, antes do recebimento da denúncia ou da queixa, a pena será reduzida de um a dois terços. O propósito da política criminal é claro: dá-se um estímulo ao criminoso para que pague à vítima os prejuízos causados. Por isso, sua pena é reduzida. A punibilidade do crime não é extinta porque, sendo desse modo, não haveria incentivo para que alguém não cometesse o crime. Nesse arrazoado, se alguém furta um objeto e deixa de ser condenado porque o devolveu, seu risco é zero, e a lei não teria efeito dissuasório sobre potenciais criminosos. É sempre necessário que se tenha um prejuízo maior do que o lucro advindo do crime. Tratamento diferente é dado aos crimes de natureza tributária. Veja-se. De acordo com o artigo 9º da Lei 10.684/2003, o pagamento de tributo é causa de extinção da punibilidade. Evidencie-se que esse pagamento pode ser feito a qualquer tempo, mesmo depois de recebida a denúncia, frise novamente. Isso demonstra que a sonegação de tributos tornou-se um ilícito que, em termos penais, tem risco zero. Caso o sonegador seja denunciado por crime tributário, basta pagar o tributo para se livrar da pena. Sendo o risco zero, o efeito intimidatório da norma também é zero. Alguém pode sonegar tributos indefinidamente sem maiores receios, pois, na improvável hipótese de ser denunciado, basta pagar a quantia devida. Saliente-se: não há nenhum prejuízo na seara penal que decorra dessa atividade ilícita. Tal causa de extinção da punibilidade é tão excêntrica que consegue esvaziar vários princípios do Direito Penal, como a moralidade, a eficiência e a vedação da prisão civil por dívidas. Nesse último aspecto, o uso indevido do Direito Penal é bastante nítido: o processo penal tornou-se um mero sucedâneo da ação de cobrança, em clara violação às normas constitucionais. O óbice mais insensato refere-se ao princípio da isonomia: enquanto a sonegação fiscal – que é um crime contra o patrimônio público – pode ter sua punibilidade extinta com o simples pagamento, crimes contra o patrimônio particular, como furto, não tem o mesmo privilégio. Fica difícil imaginar que a lesão ao patrimônio particular deva ser tratada de forma mais rígida que a lesão ao patrimônio público, pela óbvia relevância deste. Assim, o legislador criminal conseguiu dividir nitidamente o Direito Penal de acordo com sua clientela: os sonegadores, pertencentes basicamente à classe média e alta, são tratados de maneira diversa dos “ladrões em geral”, que devem sempre responder por seus atos. A realidade do sistema penal brasileiro sempre foi assim; a diferença é que, agora, a lei a institucionalizou.