A DESIGUALDADE MATERIAL NA RELAÇÃO PROCESSUAL PENAL E O PROCESSO CONSTITUCIONAL

  1. 1.      INTRODUÇÃO

O Código de Processo Penal de 1941, elaborado num período ditatorial, traz marcas inquisitoriais e coloca o acusado em posição de desvantagem na relação processual penal. Durante a persecução penal as funções de investigação, acusação e julgamento, são atribuídas ao Estado, e caso não seja observado os princípios e garantias constitucionais durante a persecução penal, haverá uma desigualdade material na relação processual e o provimento estatal (decisão judicial) poderá ser comprometido.

Várias são as normas processuais penais que nos levam a concepção de que o acusado encontra-se submetido ao processo, em posição, pois, de desvantagem na persecução penal. Examinaremos essas normas processuais penais tendo por base princípios e garantias constitucionais, a fim de se ter um provimento estatal, corolário de um Processo Penal orientado pelos princípios institutivos do processo penal.

  1. 2.      A QUESTÃO DA PERSECUÇÃO PELO JUIZ, SUA INICIATIVA PROBATÓRIA E O PRINCÍPIO DA IGUALDADE

O Código de Processo Penal atribui ao futuro julgador da causa a possibilidade de requisitar a instauração de inquéritos policiais art. 5º II, e ainda, a possibilidade de produzir provas de ofício, como previsto nos arts. 156 e 209 CPP.

O que acontece, é que a legislação processual brasileira, data de mais de sessenta anos, sendo anterior a CF de 1988, trazendo assim, marcas inquisitórias em alguns dos seus dispositivos, indo contra preceitos constitucionais o que é inadmissível num Estado Democrático de Direito. 

A possibilidade do juiz requisitar a instauração de inquérito policial, como previsto no art. 5º II CPP, transforma o juiz em órgão parcial que se imiscui na tarefa do MP ou querelante, o que acarreta num verdadeiro retrocesso ao sistema inquisitorial.

A simples possibilidade da autoridade judiciária requisitar a abertura de inquérito policial, contamina todo o processo ulterior, pois, afronta diversos princípios fundamentais, tais como, princípio da imparcialidade do juiz, princípio do livre convencimento, da inércia jurisdicional, alem de causar uma desigualdade material na relação processual penal, o que é inadmissível diante do principio da isonomia, tendo em vista que o mesmo juiz que deu início ao inquérito, poderá ser o que julgará fato criminoso. Ainda que seja diverso o órgão jurisdicional que julgará a causa, este estará contaminado, uma vez que o inquérito teve origem por um juiz que tinha suas convicções, fazendo um juízo provisório e superficial, ao determinar a abertura do inquérito em face do acusado.

Sendo assim, ocorrendo a requisição do inquérito pela autoridade judiciária, no processo penal ulterior, o acusado é que terá que provar sua inocência, o que é inaceitável, pois, compete a quem acusa o fato criminoso, no caso o MP ou querelante, provar sua autoria e materialidade, e não o acusado provar sua inocência.  

De fato, é inaceitável tal dispositivo legal, uma vez que tal norma acarreta em grave violação constitucional e ao sistema processual penal adotado em nosso ordenamento jurídico, neste sentido, ensina-nos Luigi Ferrajoli que a mera legalidade para ser legítima precisa atender também a estrita legalidade na qual o conteúdo das normas (princípios + regras) constitucionais estão tutelados em todo seu conteúdo1, portanto, o norma processual penal, deve obrigatoriamente, estar em conformidade com a Constituição e seus princípios.

Outra norma processual penal que merece crítica por ser inquisitória e estar em desconformidade com o principio da igualdade, considerando um processo penal orientado pelos princípios e garantias constitucionais, é a norma do art. 156 CPP, que prevê em seu inciso II a possibilidade do juiz produzir provas de oficio. Neste sentido, Eugênio Pacelli de Oliveira observa que o juiz em nosso processo penal (...) para dirimir dúvidas sobre ponto relevante da prova (art.156 CPP), não pode desenvolver iniciativa de atividade probatória sobre prova não produzida ou não requerida pela acusação, e continua afirmando que pensamos que a vedação a semelhante atuação do juiz decorre, sobretudo, do princípio da igualdade, a impedir que o acusado se veja diante de dois órgãos estatais produzindo a prova contra si, sem esquecer a fase investigatória, e, o que é pior, sendo um deles o responsável pelo julgamento2.

Além do juiz estar substituindo o Ministério Público, é bem provável que aquele (o juiz) ao determinar a produção de uma prova, em tese, pode já estar previamente tendente a se convencer nessa ou naquela direção. José Cirilo de Vargas critica tais atribuições do juiz afirmando que o certo é que um conjunto de dispositivos legais, estabelecidos no correr do tempo e das necessidades de um código de processo, nascido anacrônico e fascista, outorgou ao juiz criminal essa formidável soma de poderes, que, antes, e em qualquer parte do mundo, jamais lhe fora concedida3.

Seguindo essa linha de pensamento, Luiz Gustavo Gonçalves Ribeiro observa que “esses poderes de iniciativa judicial, antes mesmo de conferir ao julgador prerrogativas que não lhe são próprias e com isso ferir a separação dos papéis dos sujeitos processuais típica do sistema acusatório, viola a paridade que deve marcar o contraditório, pois, introduz o juiz na condição de sujeito desse contraditório4.

Considerando tais normas estudadas em face das garantias e princípios constitucionais, ficam evidentes alguns traços inquisitoriais no processo penal, ocasionando uma desigualdade material em relação ao réu, na relação processual penal. Veremos adiante outra norma processual penal de caráter inquisitorial.

  1. 3.      DA POSSIBILIDADE DO JUIZ CONDENAR O RÉU COM O PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO FEITO PELO MP.

Outro dispositivo legal do CPP que evidencia a posição de desvantagem do acusado frente o Estado na persecução penal é o art. 385 ao afirmar que Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição do acusado nas alegações finais, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.

Já salientamos que o Direito Processual Penal, é, essencialmente, um direito de base constitucional, sendo assim, a norma processual penal deve ser aplicada em  consonância com os princípios e garantias constitucionais.

Importante perceber, que a CF/88 atribuiu a sujeitos distintos, as funções de acusação, defesa e julgamento, optando assim, pelo sistema acusatório, e não inquisitório como é o art. 385 CPP.

Assim, nos casos em que o MP pugna, fundamentadamente, pela absolvição do acusado, o juiz deve atender ao pedido, pois, seria ilógico um acusado ser condenado pelo juiz mediante o reconhecimento de sua inocência pelo órgão acusador (MP).

No mais, se consideramos plausível a possibilidade do juiz condenar o réu com o pedido do Ministério Publico pela sua absolvição, estaremos diante de um juiz inquisitorial que se coloca acima dos preceitos constitucionais na relação processual.

Neste contexto, Aury Lopes Júnior, afirma que, o Ministério Público é o titular da pretensão acusatória, e sem o seu pleno exercício, não se abre a possibilidade de o Estado exercer o poder de punir, visto que se trata de um poder condicionado. O poder punitivo estatal está condicionado à invocação feita pelo MP através do exercício da pretensão acusatória. Logo, o pedido de absolvição equivale ao não exercício da pretensão acusatória, isto é, o acusador está abrindo mão de proceder contra alguém. Como conseqüência, não pode o juiz condenar, sob pena de exercer o poder punitivo sem a necessária invocação, no mais claro retrocesso ao modelo inquisitivo5.

 

  1. 4.      A ESTRUTURA CONSTITUCIONAL DO PROCESSO PENAL

Não há duvida atualmente que o CPP foi fundamentalmente afetado pelas disposições da Constituição da Republica de 1988. À época em que o CPP foi promulgado, o Brasil passava por um período ditatorial, e naquele momento, o processo penal era usado como instrumento para se manter a ordem catastrófica que a História nos mostra, não era assim, observado princípios e garantias constitucionais em face dos cidadãos.

Com a promulgação da CF/88, o Estado e todos os seus órgãos, principalmente os encarregados de realizar a persecução penal, estão vinculados aos preceitos nela estabelecidos. Ao determinar a função jurisdicional a certos órgão, a Constituiçao, ou seja, o poder constituinte originário, determinou que para se efetivar o provimento Estatal deve ser obrigatoriamente respeitados certos princípios. Tem-se, assim, um Estado submetido às normas do direito e estruturado por leis, sobretudo a lei constitucional.

 Neste diapasão, José Cirilo Vargas ensina que o processo surge, nesse contexto, como a forma constitucional de racionalização e regulamentação do exercício das atividades estatais6. Justamente por termos passado por um período ditatorial conturbado, onde o cidadão ficava a mercê do poder estatal arbitrário e violento, é que surge a CF/88, criando mecanismos de proteção do cidadão contra este poder estatal.

Também entende Andolina, sobre a constitucionalização do processo que na nova perspectiva pós-constitucional, portanto, o problema do processo não diz respeito somente ao ser (isto é, a sua concreta organização, segundo a lei ordinária vigente), mas também ao seu dever-ser (isto é, a conformidade de seu ordenamento positivo com a normatividade constitucional sobre o exercício da atividade jurisdicional)7. Com o advento da da CF 1988, o processo não é mais visto como mero instrumento utilizado para assegurar o provimento estatal, mas sim como uma “instituição constitucionalizada apta a reger, em contraditório, ampla defesa e isonomia, o procedimento’’8, ou seja, um “modelo constitucional de preparação de provimento jurisdicional”9 , orientado pelos princípios institutivos do processo, quais sejam, contraditório, ampla defesa e isonomia, e, no caso do processo penal, o principio acusatório no campo do devido processo legal.

  1. 5.      CONCLUSÃO

Diante de todo exposto, verifica-se que Durante as fases da persecução penal, o Estado que está encarregado de investigar, acusar e julgar, se não observar os preceitos constitucionais, irá se encontrar em situação favorável em relação ao réu na relação processual. A jurisdição, na concepção de Estado Democrático de Direito, pode ser compreendida como a atividade-dever do Estado de reconhecer direitos observando-se comandos principiológicos do processo.

Para tanto, para que haja uma relação isonômica e uma igualdade material entre acusação e defesa, é preciso observar os principios institutivos do processo a fim de garantir um equilíbrio dos litigantes, num plano de recíproca e simétrica paridade, sendo a decisão judicial, corolário do principio do contraditório exercido pelas partes, observada a ampla defesa do acusado em face do poder punitivo estatal.  

O direito penal trabalha com a liberdade do acusado, um dos mais importantes bem que um cidadão pode ter. Por isso, o processo penal deve ser cauteloso, pois, se tratando “do confronto entre o direito de punir estatal e os direitos de liberdade do cidadão, surge a necessidade de um Processo que assegure a procedência da lei à vontade jurisdicional (nullus actum sine lege); mas não apenas uma lei formal, e, sim, aquela que garanta ao individuo a igualdade material com o acusador”10.

 

  1. 6.     BIBLIOGRAFIA

 

1. FERRAJOLI, Direito e Razão, pag. 33.

2. OLIVEIRA, Processo e Hermenêutica na Tutela Penal dos Direitos Fundamentais, pag.170.

3. VARGAS, A prova ilícita e o princípio da verdade real, pag.84.

4 RIBEIRO, Luiz Gustavo Gonçalves, persecução penal democrática, pag. 153.

5 LOPES JUNIOR , 2005.

6 VARGAS, processo penal e direitos fundamentais, pag. 58.

7 ANDOLINA; VIGNERA. II modelo constituzionale Del processo civile italiano, pag. 5.

8 LEAL, Rosemiro Pereira, Teoria Geral do Processo, pag.70.

9 ANDOLINA; VIGNERA. II modelo constituzionale Del processo civile italiano, pag. 231.

10 RIBEIRO, Luiz Gustavo Gonçalves, persecução penal democrática pag.30.