RESUMO

O Trabalho versa sobre o aborto, anencefalia fetal e dignidade da pessoa humana. Discorre primeiramente sobre o aborto, como é conceituado pela doutrina e como foi visto ao longo dos tempos, posteriormente fala-se do aborto eugênico e da anencefalia fetal como espécie dele, fala-se sucintamente sobre o aborto no Código Penal brasileiro, como é visto, e seus tipos: legal e ilegal. No capítulo seguinte, estuda-se o caso da anencefalia e a posição da medicina frente ao caso e apresenta-se a ação promovida pela Confederação Nacional de Saúde, intitulada “Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental”, junto ao Supremo Tribunal Federal, a decisão autorizando a antecipação do parto quando o feto apresentar anencefalia. Ao fim, conclui-se que a Medicina já permite identificar e diagnosticar, com precisão anomalias do feto durante a gestação e que devido a essas novas descobertas há a necessidade de mudanças na legislação e no campo de tratamento médico para a realização do procedimento já autorizado.

Palavras-chaves: Dignidade Humana; Aborto; Anencefalia.

1               INTRODUÇÃO

O avanço na Medicina propõe um debate urgente sobre a adequação da legislação brasileira no que diz respeito à legalização da antecipação do parto, quando ficar comprovado que o feto tem anencefalia (ausência de cérebro).

Trata-se no presente trabalho sobre a descriminalização do aborto quando se tratar de anencefalia fetal e as consequências a dignidade da gestante.

Busca-se, inicialmente, trazer uma visão geral sobre o aborto e como se encontra disposto na legislação brasileira. Assim, procurou-se conceituar o aborto eugênico e a anencefalia fetal.

Tratou-se, ainda, da grande polêmica travada por conta da ação proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, junto ao Supremo Tribunal Federal, como também, da decisão concedida em abril de 2012, favorável ao aborto do feto com anencefalia.

Por fim, no ultimo capítulo cabe uma análise das barreiras enfrentadas pelas gestantes que buscam um procedimento de aborto eficaz e digno ressaltando-se a importância da descriminalização do fato.

Quanto à metodologia de trabalho utilizada, foi realizada inicialmente pesquisa bibliográfica sobre o assunto, buscando prioritariamente os sites de autoridades, com base nesse material obtido foram desenvolvidos os capítulos deste trabalho.

2 A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

O aborto é um tema polêmico que traz à tona questões morais, éticas, médicas, jurídicas e religiosas que clamam por respostas urgentes e definitivas. A prática do aborto sempre foi um tema muito polêmico e muito controvertido. Grande parte da sociedade ainda não conseguiu entender e assimilar as justificativas para esta tomada de decisão por parte da mulher, dos pais ou mesmo dos médicos. Daí o assunto causar desconforto na sociedade, pois é remoto, mas que, de tempos em tempos ressurge discutindo situações que estremecem os ditames sociais.

2.1 Conceito e tipos de aborto

 

O aborto, segundo Mirabete (2004, p. 93)

é a interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção. É a morte do ovo (até três semanas de gestação), embrião (de três semanas a três meses) ou feto (após três semanas), não implicando necessariamente sua expulsão.

Para Bitencourt (2004, p.431), “aborto é a interrupção da gravidez antes de atingir o limite fisiológico, isto é, durante o período compreendido entre a concepção” e o início do parto, que é o marco final da vida intra-uterina.

O aborto ocorre quando a vida intra-uterina é interrompida, tal interrupção pode ser espontânea ou natural e, acidental ou provocada, neste último caso está contido o aborto criminoso e o aborto necessário (BITENCOURT, 2007).

O aborto eugênico é conceituado como o aborto executado ante a suspeita de que o filho virá ao mundo com anomalias graves, por herança dos pais, ou interrupção seletiva da gravidez, ou seja, comprovado caso concreto a incompatibilidade do feto com a vida extrauterina (GRECO, 2010).

As inovações tecnológicas ocorridas no século XX na área médica - os novos exames pré-natais, que detectam as mais diversas anomalias fetais, colocaram em discussão a questão do aborto eugênico, que possibilita a interferência e/ou interrupção da gravidez.

Com o avanço da medicina, o feto, na atualidade, não é mais intocável. As técnicas de diagnóstico pré-natal trouxeram a possibilidade de tratar uma pessoa antes mesmo que ela venha ao mundo. Porém, muitos se contrapõem a esses exames, pois temem a violação e o desrespeito à vida humana, que tais exames tenham o único propósito de interromper a gestação.

É bom lembrar que o CP brasileiro só permite a prática do aborto nos casos de risco de vida da gestante e gravidez resultante de estupro, não admite o aborto eugênico, “quando o feto apresentar anomalias de natureza grave, como, por exemplo, a ausência ou má formação do cérebro, que é o objeto de nosso estudo” (GRECO, 2010, p.263).

O CP brasileiro define o crime de aborto como sendo a interrupção ilícita do processo da gravidez, que vai desde a concepção até o rompimento da membrana amniótica. Existem, porém, diversas formas de aborto nas quais o Código desconsidera como ilícitas. São as oriundas de patologias que colocam em risco a vida da gestante e do feto, os oriundos de estupro ou atentado violento ao pudor, e, os espontâneos, de diversas origens entre as quais, os provocados por acidentes (MIRABETE, 2012).

Distingue-se dois tipos gerais de aborto: o espontâneo e o provocado, sendo este último, legal ou ilegal, subdividido em necessário e criminoso. O necessário ou terapêutico é o praticado por médico com o escopo de salvar a vida da gestante e o moral ou humanitário, oriundo de gravidez indesejada resultante de estupro, contemplado no artigo 128, incisos I e II, do CP (BITENCOURT, 2007).

O aborto considerado criminoso está capitulado em nosso Código nos artigos 124 a 127. Tais artigos englobam: o aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento; o provocado por terceiro com ou sem o consentimento da gestante; e as cominações desses casos onde poderão advir resultados lesivos a gestante como lesões corporais graves e até a morte (BITENCOURT, 2011).

Não se pode confundir o crime de aborto com o de infanticídio, neste elimina-se a vida extra-uterina, naquele a vida intra-uterina. No aborto o agente atinge o feto enquanto este ainda não nasceu, ou seja, quando ele ainda se encontra no ventre materno. É um crime material, logo, admite a tentativa, ainda, crime instantâneo e doloso (GRECO, 2010).

2.2 Exceções da criminalização

 

Como já mencionado o Código Penal define o aborto necessário e o aborto no caso de gravidez resultante de estupro ou sentimental ou humanitário. O art.128 do CP, assim, determina que: “Não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou quando incapaz, de seu representante legal” (BITENCOURT, 2007, p.138).

Em outros termos, o Código Penal, quando diz que “não se pune o aborto”, está afirmando que o aborto é lícito naquelas duas hipóteses que excepciona no dispositivo em exame (BITENCOURT, 2007, p.138).

O aborto necessário também é conhecido como terapêutico e constitui autêntico estado de necessidade, justificando-se quando não houver outro meio de salvar a vida da gestante (GRECO, 2010).

O aborto necessário exige dois requisitos, simultâneos: a) perigo de vida da gestante; b) inexistência de outro meio para salvá-la. O requisito básico e fundamental é o iminente perigo à vida da gestante, sendo insuficiente o perigo à saúde, ainda que muito grave. O aborto, ademais, deve ser o único meio capaz de salvar a vida da gestante, caso contrário o médico responderá pelo crime. Logo, a necessidade não se faz presente quando o fato é praticado para preservar a saúde da gestante ou para evitar a desonra pessoal ou familiar (BITENCOURT, 2011).

O aborto humanitário, também denominado ético ou sentimental, é autorizado quando a gravidez é consequência do crime de estupro e a gestante consente na sua realização. Pelo nosso Código Penal não há limitação temporal para a estuprada-grávida decidir-se pelo abortamento (BITENCOURT, 2007, p.140).

Para autorizar o aborto humanitário são necessários os seguintes requisitos: a) gravidez resultante de estupro; b) prévio consentimento da gestante ou, sendo incapaz, de seu representante legal. A prova tanto da ocorrência do estupro quanto do consentimento da gestante deve ser cabal (BITENCOURT, 2011).

3 A ANENCEFALIA E A POSIÇÃO DE DESCRIMINALIZAÇÃO DO STF

 

Apresenta-se a seguir o conceito de anencefalia e a posição da medicina quanto ao quadro. Importante comentar a ação promovida, de grande repercussão, pela Confederação Nacional de Saúde, intitulada “Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental”, junto ao Supremo Tribunal Federal, a decisão concedida em abril de 2012 autorizando a antecipação do parto quando o feto apresentar anencefalia.

 

3.1 A anencefalia fetal

 

Nos fetos malformados, ainda que presentes as anomalias de formação (congênitas), em muitos casos é possível a sobrevivência com certas limitações. Existem tratamentos clínicos e cirúrgicos que podem atenuar ou até mesmo curar os efeitos da malformação (CHACEL, 2004).

Porém, a malformação pode ser tão severa ou estar associada a outras anomalias que tornam o feto inviável, com prognóstico certo e irreversível de morte após o parto. São casos, por exemplo, em que órgãos vitais como cérebro, rins, bexiga, não se formam, ou defeitos de formação, como no caso de não fechamento do tubo neural, fechamento de parede abdominal entre outras anomalias (CHACEL, 2004).

A anencefalia é exemplo decorrente de erro de fechamento do tubo neural, que impossibilitam a vida extra-uterina, e é definida pela ausência dos hemisférios cerebrais, onde não se formaram as partes anterior e central do cérebro, ou mais precisamente, a anencefalia “é um defeito no fechamento do tubo neural anterior, caracterizado pela ausência completa ou parcial do cérebro anterior, das meninges, do crânio e da pele” (SANDERS, 1997, p.17).

Em sua obra “O Estado atual do Biodireito” a doutrina-dora Diniz (2007, p.281) define o anencéfalo da seguinte forma:

Pode ser um embrião, feto ou recém-nascido que, por malformação congênita, não possui parte do sistema nervoso central, ou melhor, faltam-lhe os hemisférios cerebrais e tem uma parcela do tronco encefálico (bulbo raquidiano, ponte e pendúculos cerebrais). Como os centros de respiração e circulação sanguínea situam-se no bulbo raquidiano, mantém suas funções vitais, logo o anencéfalo poderá nascer com vida, vindo a falecer horas, dias ou semanas depois.

Em entrevista à revista jurídica Consulex (2004, p.33), o representante do DF no Conselho de Medicina, Dr. Pedro Pablo Chacel, ao ser questionado sobre o que significa um feto com anencefalia e se ele teria chance de sobrevida, afirma o seguinte:

Um feto com anencefalia não tem cérebro, portanto ele não tem sua atividade intelectual. Tem o que se chama tronco cerebral que vai controlar as ações de vida vegetativa, no caso independente do organismo da mãe. Mas, ao nascer ele não tem nenhuma capacidade de sobrevivência. A grande maioria morre em poucos minutos, existem casos que ele pode chegar a sete dias.  Mas, não há condição de sobrevida.

 

3.2 A ADPF-54 e a posição do STF

 

A Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS, entidade sindical, em 17 de junho de 2004, protocolou junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), uma ação denominada Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), com pedido de medida cautelar.

Tal ação teve como principal argumento que ao se proibir o aborto de criança anencéfala, está-se descumprindo um preceito fundamental da Constituição Federal, quais sejam: os artigos 1.º, IV (a dignidade da pessoa humana); 5.º, II (princípio da legalidade, liberdade e autonomia de vontade); e os artigos 6.º, caput, e 196 (direito à saúde). E solicitou que o STF reconheça à gestante portadora do feto anencefálico o direito subjetivo de submeter-se à antecipação do parto.

Na fundamentação da ação afirma, entre outras, que a permanência do feto anômalo no útero da mãe é potencialmente perigoso, podendo gerar danos à saúde e até perigo de vida, em razão do alto índice de óbito intra-útero desses fetos (STF, 2013).

A antecipação do parto do feto com anencefalia não caracteriza aborto, tal como tipificado no CP. Essa antecipação é o único procedimento médico cabível para reduzir o risco e amenizar a dor da gestante.

No dia 1.º de julho de 2004, o Ministro Marco Aurélio proferiu a decisão liminar, favorável à CNTS, com efeito vinculante para todo o país, permitindo a antecipação do parto de fetos anencefálicos, ou seja vem reconhecer “o direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade” (STF, 2013).

Em 20 de outubro de 2004, o Plenário do STF, em discussão sobre a legitimidade constitucional da antecipação de parto de feto anencefálico, decidiu revogar, por maioria, a liminar deferida pelo Ministro Marco Aurélio, porém, foi mantida a suspensão de processos e decisões não transitadas em julgado, relacionadas ao caso.

Em recente decisão o Supremo Tribunal Federal (STF) admitiu a realização de interrupção de gestação de feto anencéfalo.

Mesmo diante da inquietação social no dia 12 de abril de 2012 o Supremo Tribunal Federal (STF) legalizou o aborto de fetos anencéfalos. Após dois dias de votação entre os ministros o resultado foi de oito votos favoráveis e dois contra. A partir de agora, no Brasil, é permitida a realização de aborto quando a gravidez apresenta risco à vida da mãe, em caso de estupro e na gestação de bebês anencéfalos. Em todos os casos, a interrupção da gravidez é opcional, cabendo à mulher decidir.  O posicionamento dos ministros e a votação geraram intensa polêmica em todo o país, movimentando diferenciados setores da sociedade, trazendo à baila, muito além de toda a questão jurídica, implicações religiosas, morais, sociológica e de diversas outras ordens (STF, 2013).

 O plenário, por maioria, julgou procedente pedido formulado em arguição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS, a fim de declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, I e II, do CP (STF, 2013).

Dessa maneira, exprimiu que se mostraria despropositado veicular que o Supremo examinaria a descriminalização do aborto, especialmente porque existiria distinção entre aborto e antecipação terapêutica de parto. Nesse contexto, afastou as expressões “aborto eugênico”, “eugenésico” ou “antecipação eugênica da gestação”, em razão do indiscutível viés ideológico e político impregnado na palavra eugenia. Na espécie, aduziu inescapável o confronto entre, de um lado, os interesses legítimos da mulher em ver respeitada sua dignidade e, de outro, os de parte da sociedade que desejasse proteger todos os que a integrariam, independentemente da condição física ou viabilidade de sobrevivência. Sublinhou que o tema envolveria a dignidade humana, o usufruto da vida, a liberdade, a autodeterminação, a saúde e o reconhecimento pleno de direitos individuais, especificamente, os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. (STF, 2013).

4 O ABORTO DE ANENCÉFALO E A DIGNIDADE DA MÃE

4.1 O acesso ao procedimento do aborto e suas deficiências

 

Sob a compreensão de que o Código Penal brasileiro não autorizava, até 2012, o aborto em caso de anencefalia no feto, as mulheres que desejavam interromper a gestação não podiam fazê-lo, a não ser que buscassem individualmente autorização judicial. Mesmo assim, elas não tinham garantias de obter a autorização, afinal, dependiam da interpretação que o juiz ou promotor dariam a cada caso. Esse quadro de exigência de autorização judicial para o procedimento médico era ainda mais agudo para as mulheres usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS), no qual o controle de legalidade do procedimento era ainda maior e, de forma concreta, constituía condição para o direito à assistência (CARVALHO; GONÇALVES, 2013).

No dia 14 de maio de 2012, o Diário Oficial da União publicou os critérios necessários para que a mulher grávida de um feto anencéfalo possa interromper a gestação.

Porém, não se pode esquecer que o Direito como ciência deve andar junto com a Medicina, esta sim, tem a função mais importante que é a preservação da vida humana - a justiça não pode se distanciar dos avanços científicos. Assim, foram determinadas pelo CFM (Conselho Federal de Medicina) após um mês da decisão do STF em legalizar o aborto de anencéfalos, os procedimentos que devem ser seguidos.

O direito até então defendido na faculdadade da gestante, que se não desejar, não precisará usá-la, mas se se preferir, a gestante poderá aguardar o curso natural do ciclo biológico, em contrapartida não será “condenada” a abrigar dentro de si um tormento que a aniquila, brutaliza, desumaniza e destrói emocional e psicologicamente (BITENCOURT, 2007, p. 142).

Passado um ano desde que o Supremo Tribunal Federal autorizou o aborto em casos de gravidez de fetos anencéfalos (sem cérebro), pacientes brasileiras estão tendo acesso mais fácil ao procedimento, mas ainda há importantes deficiências a serem resolvidas (CARVALHO; GONÇALVES, 2013).

Antes, mulheres grávidas de fetos sem cérebro tinham de pedir à Justiça autorização para interromper a gestação, algo que podia ou não ser concedido pelo juiz. Poderia levar semanas ou meses, mas atualmente, esse período foi reduzido a dias, caso a mulher decida pelo procedimento. A rapidez é um fator importante, contudo, deve-se levar em consideração a orientação psicológica dada ao paciente, a fim de dar tempo de amadurecer a decisão.

A gravidez de anencéfalos é considerada de alto risco, porque o feto fica em posição anormal e há o perigo de acúmulo de líquido no útero, descolamento de placenta e hemorragia. E não há perspectivas de longa sobrevivência para o feto, que em muitos casos morre durante a gestação (CHACEL, 2004).

Os médicos aguardam a publicação de uma norma técnica do Ministério da Saúde, com diretrizes claras sobre como os profissionais devem lidar com o tema. A norma está em fase final, mas não há data para sua publicação (CARVALHO; GONÇALVES, 2013).

Enquanto isso, especialistas dizem que há desinformação, tanto entre pacientes quanto entre as próprias equipes de saúde; que os serviços que realizam o aborto (entre 50 e 60) são insuficientes; e que muitos profissionais alegam razões de foro íntimo para não informar as gestantes de seu direito ou mesmo para negar o procedimento (CARVALHO; GONÇALVES, 2013).

O Ministério da Saúde afirma que, diante da decisão do STF e sendo o Brasil um Estado laico, hospitais que se negarem a realizar procedimentos legais podem ser acionados na Justiça. Já a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) defende o direito de médicos e entidades exercerem objeções de consciência (CARVALHO; GONÇALVES, 2013).

O reconhecimento do direito ao aborto nesses casos deve ser então, entendido como uma matéria de ética privada; por isso, mulheres que desejarem manter a gestação ou que optarem pelo aborto deverão ser igualmente protegidas e assistidas pelas equipes de saúde. No entanto, o acolhimento às escolhas sem interferência do Judiciário deverá ser entendido, pelos médicos, também como uma medida terapêutica, pois transfere o tema da esfera do crime para a das decisões éticas cotidianas à assistência em saúde (CARVALHO; GONÇALVES, 2013, p.1).

Mesmo assim, as mulheres que decidem fazer um aborto legal podem enfrentar algumas dificuldades. Além de poucas unidades hospitalares credenciadas na rede pública para o atendimento, os profissionais de saúde podem se negar a fazer o procedimento, a menos que seja um caso de morte da mãe. Contudo, quando a negação acontece o profissional é obrigado a orientar corretamente a paciente e encaminhá-la ao serviço (CARVALHO; GONÇALVES, 2013).

4.2 A defesa da dignidade da mãe de feto anencéfalo

Pode-se concluir que há argumentos fortes de ambos os lados – dos que defendem e dos que repudiam a interrupção da gravidez quando o feto apresentar anomalia, especificamente a anencefalia fetal, que é o objeto deste estudo.

Conclui-se que a Medicina já permite identificar e diagnosticar, com precisão anomalias do feto durante a gestação e que devido a essas novas descobertas há a necessidade de mudanças, pois, faz um pouco mais de um ano após a legalização do aborto e as mães em tais situações ainda se encontra com dificuldade, seja porque não encontra tratamento adequado ou porque hospitais dirigidos por religiosos se negam ao procedimento. Assim, ressalta-se a importância da descriminalização do aborto de feto anencéfalo e a defesa de escolha da gestante em prol de sua dignidade (CHACEL, 2004).

A dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil consagra uma organização centrada no ser humano, e não em qualquer outro referencial. Assenta-se no reconhecimento de duas posições jurídicas ao individuo. De um lado, apresenta-se como um direito de proteção individual, não só em relação ao Estado, mas, também, frente aos demais indivíduos. De outro, constitui dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes (MORAES, 2011).

O direito penal não pode ficar alheio ao desenvolvimento tanto da ciência quanto “dos usos e costumes, bem como da evolução histórica do pensamento, da cultura e da ética em uma sociedade em constante mutação”. Este mesmo direito não ignora essa realidade, é um fenômeno histórico-cultural que se submete permanentemente a um interminável processo de ajustamento de uma sociedade dinâmica e transformadora por natureza (BITENCOURT, 2007, p. 143).

O valor da autonomia da gestante é um dos pilares da teoria principialista, a mais difundida na Bioética da atualidade. Quando a mulher opta pelo abortamento, não “se pode ignorar que ela tomou uma decisão grave, com sérios riscos que podem produzir consequências irreversíveis sobre sua vida, seu corpo, sua psique e seu futuro” (BITENCOURT, 2007, p.146).

O tema envolve a dignidade humana, o usufruto da vida, a liberdade, a autodeterminação, a saúde e o reconhecimento pleno de direitos individuais, especificamente, os direitos sexuais e reprodutivos de milhares de mulheres. No caso, não há colisão real entre direitos fundamentais, apenas conflito aparente (RIBEIRO, 2012).

No momento em que os religiosos pressionam o Estado, no sentido da criminalização do aborto de fetos anencéfalos, eles estão impedindo que, no plano religioso, as pessoas façam escolhas morais. O Estado democrático é laico, devendo legislar sobre princípios básicos que permitam tanto a convivência harmônica de todos, como as diferentes escolhas morais baseadas nas crenças de cada um (CARVALHO; GONÇALVES, 2013).

Se a legislação e sua interpretação forem determinadas por diretrizes religiosas emanadas da alta hierarquia eclesiástica, estamos de fato impedindo a liberdade de credo e utilizando o poder do Estado para garantir que todos os cidadãos sigam tais diretrizes. Os católicos têm direito de defender suas ideias, mas não de impô-las a todos por meio dos aparelhos de Estado. Portanto, um cristão no exercício de funções no Estado de direito deveria atuar em defesa da pluralidade moral e da liberdade de crenças, e não impor suas próprias crenças, obrigando uma mulher a carregar um feto que morrerá. Afinal, espera-se que de uma gestação resulte vida, e não morte (CARVALHO; GONÇALVES, 2013).

Evidente, a pluralidade ideal ao debate moral sobre o tema não é simples de se encontrar. Existem forças sociais que, condicionando a organização social, modelam suas atitudes, algumas vezes, até mesmo, de forma incoerente com os valores assumidos, como nosso Estado “laico” (RIBEIRO, 2012).

Tal constatação não deve, entretanto, descaracterizar a imprescindibilidade da procura de um ambiente pluralista para fundar a discussão ética. O reconhecimento da diversidade de posições morais não deve levar à arbitrariedade. Assim, é necessário que, ao reconhecer a legitimidade da diversidade, a orientação ética procure reconhecer igualmente a unicidade de cada vida. Equilíbrio difícil de ser encontrado, que nem por isso pode ser considerado impossível (RIBEIRO, 2012).

A análise retórica como estratégia de abordagem da Psicologia Social Discursiva aos temas complexos, atravessados por divergências morais, foi proposta nesta pesquisa para contribuir com o estudo de questões controversas. A análise retórica pode ser uma estratégia válida para fazer evidenciar as premissas morais que tentam assegurar a subordinação feminina às ideologias de opressão que, desde sempre, regem a prática reprodutiva, e assim indicar caminhos a serem trilhados rumo a emancipação política e libertação dessa condição (SINGER, 2002).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inescapável é o confronto entre, de um lado, os interesses legítimos da mulher em ver respeitada sua dignidade e, de outro, os interesses de parte da sociedade que deseja proteger todos os que a integram – sejam os que nasceram, sejam os que estejam para nascer – independentemente da condição física ou viabilidade de sobrevivência.

Por 8 votos a 2, os Ministros entenderam que não é crime interromper a gravidez de fetos anencéfalos. Assim, os médicos que fazem a cirurgia e as gestantes que decidem interromper a gravidez não cometem crime de aborto.

Concluiu-se que a vontade do hospital/médico de manter a gestação até o final fere o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e o principio da autonomia da vontade, sendo inconstitucional a proibição do aborto no caso em que foi comprovada a anencefalia.

REFERÊNCIAS

___________.ABORTO: feto com má formação congênita – Anencefalia. Consulex, São Paulo, ano 8, n. 174, p.24-25, 15 abr. 2004.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Código penal comentado. 2. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2011.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte especial 2. São Paulo: Saraiva, 2007.

CARVALHO, Jô de; GONÇALVES, Deivid Wilson P.; CARVALHO, Henrique. A legalização do aborto em casos de anencefalia no brasil. RIDB, Ano 2 (2013), nº 4. Disponível em: <http://www.idb-fdul.com/>. Acesso em: 18 de set. 2013.

CHACEL, Pedro Pablo. FETO com anencefalia não tem cérebro, portanto não há condição de sobrevida. Consulex, São Paulo, ano 8, n. 174, p. 33, 15 abr. 2004.

DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. São Paulo: Saraiva, 2007.

GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Impetus, 2010.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial arts. 121 a 234 do CP. vol 2, 22. ed., rev. e atual. Renato N. Fabbrini. São Paulo: Atlas, 2012.

MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2011.

RIBEIRO, Flávia Regina Guedes Ribeiro. Aborto por anencefalia na mídia brasileira: análise retórica do debate entre as posições “pró-escolha” e ‘pró-vida”. Revista Brasileira de Ciência Política. nº7. Brasília, jan. – abr. de 2012, p. 83-114.

SANDERS, Roger C. et al. Feto: Anomalias Estruturais – uma abordagem completa. Rio de Janeiro: Revinter, 1997, p. 17.

SINGER, Peter. Ética prática. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

STF. Informativo da ADPF 45. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo661.htm>. Acesso em: 18 de set. de 2013.