1 INTRODUÇÃO


A desconsideração da personalidade jurídica trata-se de uma forma de combate ao abuso de direito e atos fraudulentos com relação à autonomia patrimonial dentro das sociedades econômicas. Por esse motivo, representa um instrumento de proteção ao consumidor e ao mau uso da pessoa jurídica.
O que é abordado, diz respeito inicialmente a uma breve contextualização histórica a respeito da tendência entre indivíduos de buscarem uma sociedade, para prática de uma atividade econômica, bem como o espírito capitalista desenfreado por lucros. Em seguida, a análise é focada na desconsideração da personalidade jurídica, principalmente nas questões do que venha a ser esta teoria, seu surgimento, quais os requisitos para acioná-la e seus efeitos. Sendo também exemplificados alguns casos passíveis de desconsideração da personalidade jurídica. Por fim, se discute a gênese da matéria no ordenamento jurídico brasileiro, bem como onde é encontrada atualmente no mesmo.
A finalidade disso tudo é principalmente, alertar os administradores sobre os limites que existem no decorrer da gestão de uma pessoa jurídica. Mais especificamente, precisa-se ter bem claro seus direitos e deveres perante a lei e que a prática de atos fraudulentos é passível de punição, até mesmo quando se acredita estar protegido por trás de uma sociedade de responsabilidade limitada.




2 CONTEXTO HISTÓRICO


Ao longo da história, mostrou ser intrínseco à natureza humana, indivíduos se unirem em prol de um objetivo comum, de uma atividade econômica. Inicialmente, pessoas buscavam parcerias com outras por meio de laços pessoais (Intuito Personae), mas ao longo do tempo, com a evolução da sociedade e do espírito capitalista, surgiram as sociedades Intuito Pecuniae, onde os indivíduos se unem aos outros pelo dinheiro, para centralizar grande volume de capital o qual será aplicado em grandes empreendimentos.
É no momento do registro do contrato social da empresa na Junta Comercial que se formaliza o empreendimento. E mais que isso, trata-se do instante de nascimento da personalização da empresa. A partir daí os capitalistas estarão aptos a buscar seus objetivos, a ingressar na atividade econômica.
A pessoa jurídica contrai direitos e deveres e dependendo do tipo de sociedade constituída, os sócios deverão responder limitadamente ou ilimitadamente pelos seus atos. Nas sociedades de responsabilidade ilimitada, como a Sociedade em Nome Coletivo, por exemplo, o sócio responde às obrigações do empreendimento com seus bens pessoais, com limite aos seus bens de família.
Há entretanto, uma maior preferência por empreendimentos cuja responsabilidade se dá de forma limitada. Isso se justifica, pois os sócios acreditam estar protegidos contra problemas adquiridos em nome da pessoa jurídica.
Já dizia Marx (2008) em pleno século XIX, na sua obra mais famosa intitulada O Capital: "Sem sombra de dúvida, a vontade do capitalista consiste em encher os bolsos, o mais que possa. E o que temos a fazer não é divagar acerca da sua vontade, mas investigar o seu poder, os limites desse poder e o caráter desses limites."
Esta ambição do capitalista por lucro que nos dias atuais encontra-se muito maior do que no século XIX, pode levar, por exemplo, à prática de atos fraudulentos em uma empresa. Principalmente em sociedades de responsabilidade limitada onde há essa suposta proteção aos sócios. Em outras palavras:

No entanto, tal personificação, ou seja, a clara distinção entre a pessoa jurídica e a personalidade dos seus membros pode ser utilizada para práticas fraudulentas, para fraudar a lei, em flagrante desvio de sua finalidade. Neste momento, a pessoa jurídica rompe com o ordenamento que lhe conferiu personalidade própria e deixa de ser merecedora desta condição, passa a ser um mero instrumento de fraude. (BOHLER, 2006, http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8773).

A punição a isso, encontra-se justamente com a desconsideração da personalidade jurídica.


3 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA


É, portanto, neste momento que surge a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, no qual afasta-se a autonomia da pessoa jurídica para responsabilizar diretamente, pessoalmente e ilimitadamente o sócio responsável pelos atos.
Segundo Coelho (2003), para coibir a realização de fraudes, a doutrina criou, a partir de decisões jurisprudenciais, nos EUA, Inglaterra e Alemanha, principalmente, a teoria da desconsideração da pessoa jurídica, também conhecida como disregard doctrine ou piercing the veil em outros países. A teoria tem ainda, o intuito de preservar a pessoa jurídica e sua autonomia, enquanto instrumentos jurídicos indispensáveis à organização da atividade econômica, sem deixar ao desabrigo terceiros vítimas de fraude.
Coelho (2003, p.127) ressalta ainda que:

A desconsideração é instrumento de coibição do mau uso da pessoa jurídica; pressupõe, portanto, o mau uso. O credor da sociedade que pretende a sua desconsideração deverá fazer prova da fraude perpetrada, caso contrário suportará o dano da insolvência da devedora. Se a autonomia patrimonial não foi utilizada indevidamente, não há fundamento para sua desconsideração.

Analisando o que já foi discutido, conclui-se que há dois requisitos para a desconsideração: primeira e obviamente: a personificação. Sem o registro da sociedade no órgão competente não se pode falar em personificação da sociedade, muito menos em autonomia patrimonial logo, não há sequer pessoa jurídica para ser desconsiderada. O outro requisito, trata-se da fraude e o abuso de direito relacionados à autonomia patrimonial. A fraude se dá, por exemplo, quando o sócio age contra a lei, ou contrariamente ao ordenamento jurídico da sociedade ou ainda de má fé.
Vamos então, pensar em alguns casos que ilustram os requisitos para desconsideração da pessoa jurídica. Segue um exemplo encontrado na obra Curso de Direito Comercial de Fabio Ulhoa Coelho.
Suponhamos que, num determinado segmento de mercado, competem quatro sociedades anônimas, cada qual com a sua própria composição societária. Não há nenhum acionista de uma delas que possua qualquer participação no capital de outra. Imaginemos, então, que o controlador da empresa mais forte, Darcy, proponha aos controladores das concorrentes um acordo, mediante o qual ele passe a ter o direito de escolher seus administradores, e ofereça, em troca, a garantia de rentabilidade mínima da empresa. Quer dizer, se a sociedade não gerar pelo menos determinado patamar de dividendos, Darcy pagará a diferença. Feito o acordo, são escolhidos administradores diferentes para cada companhia. Não há, portanto, venda de ações, permanecendo o mesmo quadro de acionistas de todas as concorrentes.
Nesse cenário, considerar as sociedades como pessoas jurídicas distintas, em obediência ao princípio da autonomia, importa identificar, no referido segmento de mercado, mais de uma sociedade empresária em competição. Quer dizer, se há quatro concorrentes, descabe cogitar de monopólio. Contudo, é inegável que Darcy, por meio do acordo com os controladores, domina o mercado, podendo, por exemplo, determinar aos administradores que indicou Para cada companhia a majoração concertada dos preços, sem riscos de perda de clientela.
Neste exemplo, nota-se uma tentativa de formação de cartel entre essas sociedades. Esta é uma prática ilícita, onde cabe a desconsideração da personalidade jurídica sobre Ronaldo e os demais administradores das outras sociedades que formaram a coalizão.
Podemos pensar também, em um exemplo mais simples. Suponha que em uma sociedade, o seu administrador atue dolosamente, no que diz respeito à sonegação de contas. Da mesma maneira, neste caso também cabe-se a desconsideração da personalidade jurídica para que o administrador responda com seus bens pessoais (com limite aos seus bens de família) às responsabilidades contraídas.


4 A TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO


Devemos neste momento, mostrar em que lugar e como a desconsideração da personalidade jurídica se encontra no ordenamento jurídico brasileiro.
Segundo Coelho (2003), a desconsideração da personalidade jurídica é mencionada em lei, nos arts. 28 do Código de Defesa do Consumidor, 18 da Lei Antitruste (LIOE), 4º da legislação protetora do meio ambiente (Lei 9.605/98) e 50 do Código do Civil de 2002.
Segue a seguir, os respectivos trechos abordados:

Código de Defesa do Consumidor
SEÇÃO V
Da Desconsideração da Personalidade Jurídica
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 1° (Vetado).
§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.
§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.(Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/l8078.htm)

Lei Antitruste

Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/L8884.htm)


Lei 9.605/98 de proteção ao meio ambiente:

Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente. (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L9605.htm).


Código Civil
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm).

Deve-se ressaltar que Rubens Requião foi o grande responsável pela criação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. A teoria ingressa na doutrina brasileira no final dos anos 1960, numa conferência de Rubens Requião. Segundo Coelho (2006), nesta conferência, a teoria é apresentada como a superação do conflito entre as soluções éticas, que questionam a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar sempre os sócios, e as técnicas, que se apegam inflexivelmente ao primado da separação subjetiva das sociedades. Requião sustenta também, a plena adequação ao direito brasileiro da teoria da desconsideração, defendendo a sua utilização pelos juízes, independentemente de específica previsão legal.
Ainda, segundo Coelho (2006), o argumento básico de Requião é o de que as fraudes e os abusos perpetrados através da pessoa jurídica não poderiam ser corrigidos caso não adotada a disregard doctrine pelo direito brasileiro. De qualquer forma, é pacífico na doutrina e na jurisprudência que a desconsideração da personalidade jurídica não depende de qualquer alteração legislativa para ser aplicada, na medida em que se trata de instrumento de repressão a atos fraudulentos. Quer dizer, deixar de aplicá-la, a pretexto de inexistência de dispositivo legal expresso, significaria o mesmo que amparar a fraude.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS


Para coibir atos fraudulentos nas sociedades e proteger o consumidor, surgiu a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
Abuso de direito e atos fraudulentos com relação à autonomia patrimonial são os requisitos básicos no qual a desconsideração pode ser acionada. A partir de então, ela atua no sentido de dissociar a figura do sócio fraudulento da pessoa jurídica, para que o sócio responda pessoalmente e ilimitadamente por suas responsabilidades contraídas.
Graças a Rubens Requião que no final dos anos 60 do século XX realizou uma conferência a respeito da matéria, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica encontra-se na doutrina brasileira. Podendo ser encontrada no Código de Defesa do Consumidor; no Código Civil; Lei Antitruste; e na Lei 9.605/98 de proteção ao meio ambiente.
Portanto, chega-se ao parecer que a desconsideração da personalidade jurídica trata-se de uma ferramenta extremamente importante, no combate ao mau uso das pessoas jurídicas e no sentido de oferecer as bases para a devida punição àqueles que não respeitarem as leis.






REFERÊNCIAS

BOHLER, Marco André. Desconsideração da Personalidade Jurídica por ato administrativo. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8773> Acesso em: 25 maio de 2008.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 2. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 14 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003.

MARX, Karl. O Capital (Crítica da Economia Política). Livro 1. Vol. 1. O Processo de Produção do Capital. 25 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

PLANALTO. Código Civil. 2009. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm > Acesso em: 29 maio de 2008.

PLANALTO. Código de Defesa do Consumidor. 2009. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/l8078.htm > Acesso em: 28 maio de 2008.

PLANALTO. Lei Antitruste. 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/L8884.htm> Acesso em: 30 maio de 2008.

PLANALTO. Lei 9.605/98 de proteção ao meio ambiente. 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L9605.htm > Acesso em: 30 maio de 2008.