A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA EXECUÇÃO FISCAL

Matheus Rissatto Rivoiro                                               

RESUMO As recentes decisões dos Tribunais mostram que é constante a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica na execução fiscal inicialmente proposta somente contra a pessoa jurídica. A doutrina não concorda com tal prática jurisprudencial, alegando que a utilização da teoria na execução fiscal em curso prejudica o devido processo legal. Apesar da freqüente aplicação, os Tribunais não se preocupam em especificar as razões do uso da teoria, nem abordar seu procedimento, com objetivo de rebater as críticas doutrinárias. O presente texto propõe-se a tais explicações da correta interpretação da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito da execução fiscal, com a correta interpretação da lei. 

Palavras-chave: Teoria da desconsideração da personalidade jurídica – aspectos processuais da teoria da desconsideração da personalidade jurídica - Críticas doutrinárias à aplicabilidade da teoria da desconsideração da personalidade jurídica na execução fiscal. 

ABSTRACT The recent decisions of the Courts show that is constant application of the theory of piercing the corporate veil in a tax initially proposed only against the corporation. The doctrine does not agree with the practice of jurisprudence, arguing that the use of theory in ongoing tax enforcement undermines due process. Despite the frequent application, the Courts do not bother to specify the reasons for the use of theory or approach your procedure, aiming to counter criticism of doctrine. This paper proposes to such explanations of the correct interpretation of piercing the corporate veil under the tax lien with the correct interpretation of the law. 

Keywords: theory of piercing the corporate veil - procedural aspects of the theory of piercing the corporate veil - Reviews doctrinal the applicability of the theory of piercing the corporate veil in tax enforcement.

INTRODUÇÃO

O assunto da desconsideração da personalidade jurídica na execução fiscal é objeto de muita controvérsia. As discussões começam no campo doutrinário e ganham efetividade nos tribunais, que em sua maioria, aplicam as considerações doutrinárias de maneira diversa, sem, contudo, interpretá-las ou justificá-las. Esta foi, pois, a razão principal da escolha do tema: analisar os aspectos gerais bem como a divergência de entendimentos entre doutrina e jurisprudência.

Os Tribunais aplicam a desconsideração da personalidade jurídica na execução fiscal como se fosse um tema pacificado, não se importando com as críticas doutrinárias, e nem fundamentando o seu posicionamento de forma a ilidir com as críticas propostas.

Antes de adentrarmos ao tema proposto, necessário se faz uma rápida conceituação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, partindo do conceito de pessoa jurídica e seus princípios, natureza jurídica, histórico, bem como a desconsideração em outros institutos legais, objetivando o não acobertamento de fraudes e abusos de direito, com a observância do devido processo legal. 

  1. 1.      DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA 

1.1  Histórico

Segundo o doutrinador César Fiuza (2009) “O estudo das pessoas jurídicas começa pelo Direito Romano, embora a noção nele havida de pessoa jurídica seja bastante embrionária”. (p. 142).

Segundo ainda esse referido autor, a idéia de pessoa jurídica começou a se desenvolver com a expansão territorial romana, o que, mais ou menos, coincide com o início da época clássica e do chamado Direito Clássico. Isso ocorre por volta do século II a.C e se estende até, mais ou menos, 300 d.C.

Quando Roma iniciou a conquista das cidades italianas, passou a lhes outorgar estatutos e certa autonomia. De outra parte, porém, retirava-lhes toda a soberania, anulando sua existência política, na medida em que passavam a integrar o Estado Romano. Com a perda da soberania, do imperium, a cidade passava a receber o mesmo tratamento dispensado aos cidadãos, em relação aos atos que praticava.

Sendo assim, para que alguém detivesse capacidade jurídica e, portanto, em termos de hoje, o status de pessoa, era necessário que tivesse patrimônio próprio e que pudesse agir em juízo, ainda que representado por actor ou syndicus.

Finalmente, o próprio Estado Romano adquire esta capacidade, começando também a receber tratamento igual ao que dispensaria aos cidadãos, em suas relações patrimoniais. Esse processo de dar tratamento igual ao dispensado aos cidadãos, nas relações patrimoniais dos municípios, das corporações e, finalmente, do Estado, ocorreu paulatinamente, por etapas, primeiro em algumas relações patrimoniais, depois em outras, até se chegar à totalidade.

O termo pessoa jurídica, contudo, não foi empregado no Direito Romano. Nem mesmo o termo pessoa, para designar as pessoas jurídicas. Os textos da época, que utilizam a palavra persona, para designar colégios e as corporações, são nitidamente interpolações, isto é, foram reescritos em época posterior, com interferências de que os reescreveu.

Saliente-se que a própria ideia pessoa, no Direito Romano, ainda não estava bem desenvolvida, mesmo em relação às pessoas físicas. A palavra persona era destinada, mesmo em relação às pessoas físicas. A palavra persona era destinada a designar qualquer ser humano, livre ou escravo, enquanto relacionado a uma função, fosse de cidadão, a de pater-família, a de falius-familiae etc. Vê-se, pois, que a palavra pessoa não se referia ao individuo em si. Ademais, a noção de pessoa estava ligada à de capacidade.

Segundo alguns, somente no período pós-clássico, que se estendeu de, mais ou menos, 300 d.C. até 565, é que o termo pessoa adquiriu um significado mais semelhante ao moderno, mas, de todo modo, restrito ao ser humano livre.

Finalizando, deve ser dito que a expressão mesma, pessoa jurídica, só veio a ser utilizada no início do século XIX, pelo alemão Heise, em substituição a outras, tais como pessoa moral, pessoa mística etc. Ganhou popularidade pela obra de Savigny. Apesar disso, alguns ordenamentos continuam a não empregar o termo pessoa jurídica. Neste rol, podemos citar Portugal e França. 

1.2 Natureza Jurídica

Existem muitas teorias para explicar a natureza das pessoas jurídicas. Para entendermos melhor o tema, será preciso verificar as teorias que tratam a respeito disso.

Primeiramente, podemos discorrer sobre as terias negativistas, negando a existência da pessoa jurídica, enquanto sujeito de direitos.

O eminente doutrinador César Fiúza, descreve pormenorizadamente as teorias no qual não podemos deixar de mencioná-las, para demonstrar a divergência da correta classificação da natureza jurídica da pessoa jurídica. Vejamos:

1° - Teria da ficção – É a teoria clássica, originada no Direito Canônico, com base no direito romano. Segundo ela, pessoa jurídica é mero fruto da imaginação, expediente técnico, sujeito aparente, sem qualquer realidade. As pessoas jurídicas não passam de projeção de nossa mente, de pura abstratação.

2° - Teoria da equiparação – Para esta corrente, pessoa jurídica é, na verdade, não pessoa, mas patrimônio equiparado às pessoas naturais para facilitar o tráfego dos negócios jurídicos.

3° - Teoria da propriedade coletiva ou ficção doutrinária – As pessoas jurídicas não passam de simples forma, por meio do qual a pessoa de seus membros manifesta suas relações com o mundo externo. Na verdade, os direitos constitutivos do pratrimônio da pessoa jurídica têm como titulares seus próprios membros componentes.

4° - Teoria de Duguit – Duguit nega a existência dos direitos subjetivos. Por via de consequência, caem por terra todas as idéias que lhe são conexas. Para ele, os fundamentos do que se chama pessoa jurídica se acham vinculados à necessidade de se proteger situações em que determinada riqueza se vincule a objeto lícito.

5° - Teoria de Kelsen – Como Duguit, tampouco Kelsen admite a idéia de Direito Subjetivo. De acordo com sua concepção, inexistem pessoas, tanto naturais, quanto jurídicas. O que há são centros de deveres e faculdades jurídicas, expressas pelo Direito Objetivo. A estes centros, costuma-se denominar pessoas, o que é recurso artificial e auxiliar, do que se pode prescindir.

Já um segundo grupo de teorias, denominadas organicistas ou realistas, pretende provar a existência da pessoa jurídica, como realidade.

1° - Teoria da realidade objetiva – A pessoa jurídica é tão pessoa quanto as pessoas naturais, do ponto de vista objetivo. No mundo há organismos vivos e organismos sociais. Os organismos sociais teriam vontade própria, expressão da vontade de seus membros. Essa vontade deve ser protegida pelo Direito, que regula, assim, as pessoas jurídicas, enquanto sujeitos dotados de vontade. O Direito não as criou. Apenas declarou e regulou sua existência. Elas têm vontade própria e existência autônoma.

2° - Teoria ligada ao conceito de sujeito de direito ou teoria do interesse – Sustentada por Michoud, dentre outros, nega a teoria voluntarista, afirmando que não é a vontade o elemento protegido pelo Direito, mas seu conteúdo, ou seja, o interesse representado pela vontade. Assim, o Direito protegeria os interesses do indivíduos, unificados na pessoa natural, e os interesses de grupos de indivíduos, unificados na pessoa jurídico.

3° - Teoria da realidade das instituições jurídicas ou da realidade jurídica – Esta teoria, também chamada de teoria da realidade jurídica ou técnica, é a mais aceita hoje em dia, pois são consideradas pessoas jurídicas as realmente assim criadas pelo Direito, ou melhor, só somos pessoas porque o Direito assim o quer, pois se não o quisesse, não seríamos pessoas. (FIUZA, 2009).

Nota-se a divergência de teorias, bem como os acertos e erros de cada uma, sendo que, a, mas plausível é a teoria da realidade das instituições jurídicas por tratar a personalidade jurídica pelo fato de o Direito atribuir esse fenômeno na própria lei. 

1.3 – Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica

Necessário foi a criação de um mecanismo jurídico para coibir o uso da autonomia patrimonial para fim de prejudicar credores e terceiros. Surgiu então a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que considerou que as pessoas jurídicas, inobstante apresentarem gestão autônoma, apresentam sua vontade subordinada aos sócios que as controlam, ou seja, a vontade da pessoa jurídica nada mais é que o reflexo da vontade de seus sócios.

Assevera César Fiuza:

A inteligência humana criadora e produtiva também tem seu reverso. Logo se apercebeu que a segurança atribuída pela personalidade jurídica, no que tange à separação patrimonial e à limitação da responsabilidade de seus membros poderia ser utilizada para fins diversos dos sociais. A partir daí, surge uma teoria que visa considerar ineficaz a estrutura da pessoa jurídica quando utilizada desvirtuada mente. (FIUZA, 2009, p. 153). 

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi introduzida no Brasil por Rubens Requião, que no início da década de 1970, apresentou o primeiro estudo sobre o tema, defendendo a aplicação da teoria originária do direito anglo-saxão às particularidades do direito brasileiro. Nas palavras do autor, “como ponto de partida para conceituar a doutrina do disregard ou da penetração, é necessário convir que as pessoas jurídicas, sobretudo no que concerne ao direito brasileiro, constituem uma criação da lei.

A personalidade jurídica trata-se de uma invenção jurídica que exige que se desenvolvam e apliquem regras adequadas para seu uso. Essas regras, porém, não devem converter-se em imperativos. Não se deve permitir que seu emprego destrua valores a que o direito reserva hierarquia superior.

Dessa forma, é que desconsideração da personalidade jurídica ganhou efetividade no direito pátrio, primeiro na jurisprudência e depois em diversos diplomas legais, tais como o artigo 28 da Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), artigo 18 da Lei 8.884/1994 (Lei Antitruste) e artigo 4° da Lei 9.605/1998 (Lei do Meio Ambiente). Mais recentemente, a teoria da desconsideração da personificação jurídica foi admitida de maneira geral pelo artigo 50 do Código Civil de 2002, que trouxe mais segurança para que o aplicador do direito possa se utilizar da teoria nos casos concretos em que ela for cabível.

Os pressupostos para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica são, basicamente, dois: a consideração da pessoa jurídica e a fraude ou abuso de direito. Só pode ser desconsiderada a pessoa jurídica que, regularmente adquiriu personalidade por concessão da lei. A fraude e o abuso de direito que levam à desconsideração são aqueles não permitidos nem tolerados pelo direito e pela comunidade. Deve haver excessiva ofensa aos princípios jurídicos. É preciso a prova do desvio da função da pessoa jurídica. O sócio é atingido porque a atuação fraudulenta ou abusiva foi dele e não da pessoa jurídica – seus interesses eram distintos, sendo que a sociedade funcionou como simples anteparo para alcance da sua vontade.

No direito brasileiro coexistem duas teorias sobre a desconsideração: a Menor e a Maior, originalmente apresentadas por Fábio Ulhoa Coelho. A teoria Menor tem como pressuposto simplesmente o descumprimento do crédito pela pessoa jurídica, por insolvência ou falência. O seu raciocínio é simplista e não se preocupa em distinguir a utilização correta da fraudulenta, nem a existência ou não do abuso da forma da pessoa jurídica. Já a Teoria Maior é mais condizente com o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, buscando preservar ao máximo o princípio da autonomia patrimonial, limitando seu afastamento às hipóteses abusivas ou fraudulentas.

Assim, na grande maioria dos casos de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, há a exigência da prova do abuso ou fraude, com a limitação da responsabilidade aos sócios gerentes e administradores, eis que eles controlam a pessoa jurídica e podem manipular fraudulentamente sua atividade. 

1.4 Aspectos Processuais da Desconsideração da Personalidade Jurídica

A efetivação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no processo precisa obedecer aos dois princípios constitucionais do direito processual: o contraditório, abrangendo a ampla defesa e o devido processo legal. O contraditório está previsto no art. 5°, LV, da CF/88 e o devido processo legal, no art. 5°, LIV, da CF/88. A exigência do contraditório, para obedecer ao devido processo legal está em que a desconsideração da personalidade jurídica é uma sanção aplicada ao sócio por ato ilícito por ele cometido.

A desconsideração pode ser aplicada em várias fases do processo, sendo que o contraditório será exercido de diferentes maneiras, dependendo da fase. De acordo com Marcio Souza Guimarães quatro são as formas de efetivação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito: a) desconsideração direta; b) desconsideração incidental; c) desconsideração “ inversa” e d) desconsideração indireta.

A desconsideração direita acontece quando a responsabilidade do sócio é auferida de plano e o seu nome já é incluído no pólo passivo da demanda logo com a sua propositura. A desconsideração inversa ocorre quando em vez de o sócio se utilizar da sociedade como escudo protetivo, passa a agir ostensivamente, escondendo seus bens na sociedade, ou seja, o sócio não mais se esconde, mas sim a sociedade é por ele ocultada. A desconsideração indireta visa impedir a fraude através do agrupamento de pessoas jurídicas.

A desconsideração incidental é a mais comum e também a que mais questionamentos traz. Na grande maioria das vezes, não será possível perceber a atuação irregular do sócio inicialmente, de maneira que, a demanda será proposta somente em face da pessoa jurídica. A discussão se dá sobre como será efetivada essa desconsideração: haverá necessidade de demanda autônoma para apurar a responsabilidade do sócio ou poderá ser decretada a penetração no patrimônio pessoal do sócio no mesmo processo, de maneira incidental?

Prepondera a inclusão do sócio de maneira incidental, devendo ser instaurado incidente cognitivo no processo de execução, para que se apure, em contraditório, o preenchimento dos pressupostos legais que autorizam a aplicação da teoria, não se olvidando da garantia da ampla defesa. 

2 . A Desconsideração da Personalidade Jurídica na Execução Fiscal 

2.1                  Conceito de Execução Fiscal

A execução fiscal é procedimento especial para a cobrança do crédito da Fazenda Pública. Está regulada pela Lei 6.830/80 - Lei de Execuções Fiscais (LEF). Apesar da especialidade procedimental, é possível inserir a execução fiscal como subespécie de execução singular forçada por quantia certa, com base em título executivo extrajudicial, possuindo, portanto, as mesmas bases estruturais traçadas pelo Código de Processo Civil (CPC).

 A pretensão da Fazenda Pública, de cobrar seu crédito através de uma ação própria tem como base legal o art. 5.º, XXXV, da CF/1988, o art. 3.º do CPC e o art. 1.º da LEF. Os parâmetros da legalidade devem sempre ser obedecidos. Assim, dispondo a Fazenda de um crédito não satisfeito espontaneamente pelo obrigado, surge o direito abstrato de provocar a tutela jurisdicional executiva para promover a atuação da norma que satisfará o direito material violado, obedecendo às regras gerais do devido processo legal.

A execução fiscal tem como objeto o crédito fazendário regularmente inscrito como dívida ativa. Essa dívida ativa pode ser tributária ou não-tributária. A dívida ativa tributária compreende impostos, taxas, contribuições de melhoria, empréstimos compulsórios, contribuições sociais, multas tributárias e juros, que se acrescem ao principal. A dívida ativa não-tributária compreende os créditos resultantes de obrigações vencidas, desde que previstas em lei, regulamento ou contrato. A diferença entre a dívida ativa tributária e a não-tributária não é o foco dessa análise; importa-nos somente que a pretensão da Fazenda Pública seja oriunda de inscrição legal da certidão de dívida ativa.

Segundo Humberto Theodoro Júnior, o procedimento da LEF não é de acertamento e condenação, mas de pura execução forçada, somente sendo admitido seu uso pela Fazenda Pública depois da adequada apuração administrativa de seu crédito, seguida de inscrição em dívida ativa. (HUMBERTO, 2006).

A inscrição é o ato que transforma o débito em dívida ativa. É ato unilateral da Administração Pública, através do qual há a autoconstituição de seu título de crédito. Deve nascer a partir de um crédito da Fazenda Pública, vencido e não pago, devidamente individualizado e examinado pelo órgão competente. À individualização e exame dá-se o nome de lançamento.

O lançamento nada mais é do que o “procedimento administrativo destinado a tornar líquida a obrigação nascida com a ocorrência do fato gerador”. Importa mencionar que o “procedimento” para verificação da legalidade da inscrição em dívida ativa não envolve matéria de direito processual civil, dando-se apenas no campo do direito administrativo. Entende-se assim porque o “procedimento” cuida apenas de ato, ou conjunto de atos, até a inscrição da dívida e remessa das certidões ao órgão competente para propositura da ação de execução em juízo.

A certidão de dívida ativa (CDA) é o documento autorizador do ajuizamento, pela Fazenda Pública, da cobrança judicial através do rito especial da LEF. Deve obedecer aos requisitos previstos no art. 2.º, § 5.º, da LEF. Conforme Carlos Henrique Abrão: “A determinação legal visa dar à CDA a transparência inerente a todos os títulos de crédito, complementando o termo de inscrição da dívida ativa e garantindo a exigibilidade do quantum apurado”.

Sendo regularmente inscrita, a dívida ativa - e consequentemente a CDA - goza da presunção de certeza e liquidez. Tal presunção ocorre devido à unilateralidade da formação do título executivo, o que ocorre sem a declaração do reconhecimento do débito, e que obedece aos parâmetros da legalidade. Presume-se que o ato pelo qual a Administração Pública cria seu título executivo é digno de fé. No entanto, esta presunção pode ser afastada, cabendo ao sujeito passivo da relação processual ou a terceiro interessado desfazê-la, através de prova inequívoca produzida em embargos à execução ou em embargos de terceiro.

 

2.2                  Críticas Doutrinárias à Aplicabilidade da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica na Execução Fiscal

Agora serão apresentadas as críticas doutrinárias feitas à jurisprudência dominante.

Para a doutrina, a possibilidade do uso da desconsideração da personalidade jurídica na execução fiscal começa com a admissibilidade da aplicação da teoria ao direito material fiscal, contido nas regras tributárias, especialmente as do CTN.

A desconsideração da pessoa jurídica é vista como sanção imposta ao sócio controlador da sociedade, eis que ele teve conduta ilícita, dolosa ou culposa, e quis o resultado ilícito perpetrado através do excesso de poderes, infração à lei, contrato social ou estatuto, ou dissolução da sociedade de maneira irregular. Havendo confusão patrimonial ou simulação causadora de prejuízo a terceiro, autorizada está a invocação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. A desconsideração da personalidade jurídica é, assim, uma sanção instrumental, que visa alcançar diretamente os sócios, com responsabilização de seu patrimônio pessoal.

As objeções à aplicabilidade da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do direito tributário são bem resumidas pela doutrina. No direito tributário brasileiro, reinam os princípios da estrita legalidade e da tipicidade. Impossível, pois, seria a formulação jurisprudencial de uma teoria da desconsideração da personalidade jurídica, baseada na eqüidade e na justiça. A aplicação da teoria no direito tributário esbarraria na franca incompatibilidade com a legalidade exigida.

A maior celeuma doutrina-jurisprudência se dá em face do disposto no art. 135, III, do CTN, já anteriormente elucidado e pormenorizado na aplicação prática dada a ele pelos Tribunais. Diante disso, as considerações feitas a seguir restringem-se à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica na execução fiscal, autorizada pelo direito material tributário no dispositivo em questão - conforme entendimento dos Tribunais, duramente criticado pela doutrina.

Como doutrinador contrário a aceitar que a desconsideração da personalidade jurídica está autorizada pelo art. 135, III, do CTN merece destaque Heleno Taveira Tôrres. O autor até aceita a aplicabilidade da teoria da desconsideração ao direito tributário, mas se nega a admitir que ela ocorra no referido dispositivo. Nas palavras do autor:

[..]o art. 135 não resguarda qualquer equivalência com controle sobre simulação, interposição fictícia de pessoas ou de fraude à lei, [...]. Nestes termos, o art. 135, do CTN, ao não se prestar como mecanismo de superação do modelo de separação patrimonial adotado pela legislação mercantil, não pode ser alegado para tais fins. (TORRES, 2005, p. 120).

 

A doutrina diz que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica trata-se de exceção justificada, e o Poder Judiciário brasileiro não precisa adotar a exceção quando já existem regras que regulam situações nas quais se poderiam recorrer à teoria. Como uma dessas regras, pode ser lembrada a contida no art. 135 do CTN.

Para a doutrina, portanto, o art. 135, III, do CTN está sempre a autorizar a co-responsabilidade tributária, quando o sócio assumirá a dívida contraída por ato ilícito seu juntamente com a pessoa jurídica, não se tratando de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. No entanto, como já anteriormente apontado, a jurisprudência admite o art. 135, III, do CTN como dispositivo expressamente autorizador da desconsideração da personalidade jurídica em matéria fiscal-tributária, quando os atos descritos no caput do artigo são praticados de modo a impedir a satisfação da execução fiscal originalmente proposta contra a pessoa jurídica.

Mesmo na falta de título executivo extrajudicial específico em nome do sócio administrador, a jurisprudência admite o redirecionamento, e não considera, com isso, ofendidos os princípios do contraditório e da ampla defesa, pois garante ao sócio um meio de debater a matéria - os embargos do executado.

Dessa forma, acreditamos que o artigo 135 do Código Tributário Nacional deixa explícito que a responsabilidade pessoal dos sócios – gerentes e diretores não são simplesmente objetiva, pois, exige o ato doloso ou culposo para que lhe possam ser validamente imputados o dever de saldar, com bens particulares, divida fiscal da sociedade.

Sendo assim, o sócio-gerente é responsável, por substituição, não por ser sócio, mas por, na condição de gestor de bens alheios, acabar praticando atos com excesso de poderes ou infração à lei ou, ainda, estranhos ao contrato social ou estatuto. Nesse passo, se o gerente abandona a sociedade sem quitar os débitos, o fato ilícito que o torna responsável por substituição não é a simples inadimplência de obrigações, mais sim, a dissolução irregular da pessoa jurídica.

Salienta Hugo de Brito Machado:

a simples condição de sócio não implica responsabilidade tributária. O que gera a responsabilidade, nos termos do art. 135, III, do CTN, é a condição de administrador de bens alheios. Por isto a lei fala em diretores, gerentes ou  representantes. Não em sócios. Assim, se o sócio não é diretor, nem gerente, isto é, se não pratica atos de administração da sociedade, responsabilidade não tem pelos débitos tributários. (MACHADO, 2000, p. 125-126). 

Não basta ser diretor, ou gerente, ou representante. Faz-se necessário que o débito tributário em questão resulte de ato praticado com excesso de poderes ou infração à lei, contrato social ou estatutos.

Assim, não se pode deduzir do artigo 135, III, do CTN que este encerre a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, pois apenas cuida da responsabilidade pessoal daqueles que representam a pessoa jurídica quando agem com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatuto. (PAULSEN, 2009).

Nesse passo, não é suficiente, para tipificar a responsabilidade do sócio-gerente, o inadimplemento da sociedade, porque este pode decorrer do risco natural dos negócios, risco esse, pressuposto na própria natureza da sociedade por cotas de responsabilidade limitada. É preciso que comprove a conduta dolosa ou fraudulenta de seu sócio-gerente ou diretor.

Aí esta a razão pela qual entendemos que há um grande equívoco de todos aqueles que enquadram a simples mora como elemento representativo da infração à lei a que se refere o artigo 135 do CTN. Assim, o simples inadimplemento da obrigação tributária não pode merecer a amplitude descaracterizada, de forma a “ encaixar” nos termos do art. 135 do CTN que, ao invés de  incorporar a natureza jurídica de uma atribuição de responsabilidade solidária, reflete a clara e fiel imagem de uma subjetividade excepcional, calcada na responsabilidade  subjetiva, em que os sócios-gerentes ou diretores somente terão seus bens pessoais em caso de dolo ou fraude comprovada. 

CONCLUSÃO 

A grande discussão sobre a responsabilização dos sócios mediante o instituto da desconsideração da personalidade jurídica na execução fiscal originalmente proposta contra a pessoa jurídica se dá em torno da estrita legalidade e da tipicidade, características do direito tributário. Admitir a desconsideração da personalidade jurídica nos moldes como foi originalmente concebida - com utilização da eqüidade - seria afrontar as bases do direito tributário, fonte criadora dos créditos da Fazenda Pública, executados através da execução fiscal.

A maioria da doutrina não admite que haja no ordenamento jurídico tributário a expressa previsão da possibilidade de se desconsiderar a personalidade jurídica no curso da execução fiscal, quando os bens da sociedade não forem suficientes à satisfação da dívida. Apesar de a jurisprudência manifestar no sentido contrário da doutrina majoritária.

Sendo assim, conforme já exposto, aplica-se a responsabilização (e não desconsideração) do sócio-gerente ou diretor, somente nos casos de dolo ou fraude comprovada, pois se entender o contrário, estar-se-ia desvirtuando o verdadeiro sentido da norma.

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