Relato de Experiência:

A descoberta de “novas” identidades a partir dos filmes de Pedro Almodóvar

 

Foi no primeiro semestre de 2006 que tive contato com um grupo de professores em formação na UESC. Minha primeira aula com este grupo, caracterizado por alguns professores como um grupo difícil, onde os alunos não queriam nada, foi marcado por uma certa resistência de ambas as partes: da minha, por conta de um preconceito e da deles por frustrações decorrentes – e normais – na vida acadêmica. O que eu pude perceber, passados alguns encontros com este grupo é que lhes faltava motivação e foi com este intuito, que aproximadamente no meio do semestre, eu tive a idéia de levar um filme, até então uma atividade comum às aulas de língua estrangeira de qualquer instituição e de qualquer nível de ensino.

 Filmes em língua espanhola não são tão comuns quanto os filmes de língua inglesa e eu estava diante do meu primeiro problema. Não encontrando nas locadoras nenhum filme em língua espanhola, tratei de trabalhar com um filme que eu tinha em minha casa: Átame de Pedro Almodóvar. Mesmo preocupada com a reação deles diante do filme que havia sido aclamado por cenas de sexo explícito eu estava diante de uma grande oportunidade: apresentar-lhes o trabalho de um diretor espanhol que possuía um reconhecimento internacional. Antes de iniciar a exibição fiz breves considerações sobre o diretor e sobre seu conteúdo. Durante a exibição do filme contei com a atenção absoluta de meus “alunos-expectadores” o que me surpreendeu, porque em princípio não existia nenhuma atividade que os levasse a “se entregar” tanto ao filme. Na história Ricky, um rapaz com distúrbios de comportamento que rapta  Marina, uma atriz pornô, e a mantém refém em sua própria casa afim de que a mesma se apaixonasse por ele. A experiência de ver um filme com personagens tão incomuns ao cinema comercial foi nova para a maioria do grupo. Mas todos haviam gostado. A teoria se confirmava na prática. A situação cinema fez com que estes estudantes diante a projeção do filme se, esquecessem de si mesmos e se projetassem na história. Esta situação também permitiu que os mesmos despertassem  para a compreensão de uma Espanha não reconhecida salas de aula, nem mesmo fora delas, sofrendo o “surto de compreensão” O país apresentado pelo diretor estava bem distante do ilustrado na grande maioria dos manuais didáticos trabalhados no curso e também da imagem que é “vendida” por algumas instituições. No cinema almodovoriano a Espanha é um país de contrastes sociais, e porque não dizer, um país do marginalizado. Foi possível assim trabalhar com a proposta multicultural:

 

(...)  vê como válidas as contribuições positivas de diferentes raças, sexos, etnias, classes e grupos sociais para a cultura e a sociedade. Essas novas teorias culturais inspiraram-se em novos movimentos sociais e obrigaram a um grande número de mudanças  no modo como vimos os textos e reagimos a eles. Os cânones da cultura masculina, branca e européia foram desafiados e um amplo espectro de vozes de indivíduos ficou sendo conhecido. Além disso as perspectivas dos grupos oprimidos representam uma visão crítica da cultura vigente, possibilitando-nos enxergar os elementos opressores que poderíamos deixar de ver do nosso ponto de vista mais privilegiado  (KELLNER, 2003:127).

 

 No encontro seguinte, produz ao grupo um desafio: que organizássemos juntos um seminário sobre o diretor. A proposta foi aceita como tínhamos quatro aulas por semana, nos organizamos da seguinte maneira, em duas aulas trabalharíamos os conteúdos gramaticais referentes à disciplina e nas outras duas trabalharíamos na organização e realização do seminário. A sala foi dividida em 5 grupos e cada grupo analisou um filme de Almodóvar. Além de analisar o filme, os grupos deveriam escolher um filme e oferecer um minicurso no seminário. Toda a organização do seminário desde a divulgação, distribuição de materiais, reserva de auditórios foi também responsabilidade do grupo.

O resultado surpreendeu. A começar pela escolha dos temas que resultaram  minicursos oferecidos: A Paixão Através dos Sentidos em Carne Trêmula

, Paixão, o êxtase da loucura em Ata-me?, Má Educação: a homossexualidade na concepção interacionista, Kika, um retrato da invasão de privacidade no nosso cotidiano e a Ambigüidade Afetiva em Fale com Ela. Além de contemplarem temas interdisciplinares em seus minicursos, os estudantes contaram com o apoio de um estudante de Letras/Inglês e de um professor dos cursos de Comunicação e Língua Estrangeira Aplicada para as palestras de abertura. Mais que isso, ainda foi realizada, no primeiro dia, uma exposição, onde eles souberam traduzir através de várias linguagens o universo do diretor que através deles agora também se fazia conhecido para outras pessoas. Mais de 200 pessoas participaram do seminário. As fichas de avaliação comprovaram que o nosso objetivo havia sido alcançado.

Nos minicursos os alunos em um primeiro momento passaram o filme, de maneira que o ouvinte conheceu o objeto para situar-se na discussão. Todos os grupos buscaram alunos e professores de outros cursos a fim de comprovar se suas hipóteses sobre a realidade retratada encontravam fundamento em outras ciências.

O cinema não tinha proporcionado a estes estudantes só a oportunidade de realizar um seminário, muito mais que isso proporcionou o que, em minha opinião, constitui-se na atividade mais importante da academia, os levou a compartilhar seu conhecimento. Este foi um dos resultados. O outro foi faze-los conhecer vozes até então silenciadas que embora façam parte de um país colonizador, continuam colonizadas. Os protagonistas destes filmes não são as identidades não-problemáticas vendidas pelo cinema comercial, mas sim novas identidades, como podemos observar nos filmes Ata-me, com uma atriz pornô, em Má Educação, com um homossexual e em Kika, com uma mulher. Mas do que trabalhar a cultura da Espanha, estes alunos estavam trabalhando com culturas que não são “reconhecidas” nas salas de aula, nem mesmo fora delas. Culturas geralmente  silenciadas pelo cinema e a indústria de Hollywood, que foi produzida desde o início por homens brancos ocidentais e que  construiu suas imagens a partir da ótica masculina, branca, heterossexual, de classe média e judaico-cristã. Estas características sempre compuseram a imagem de uma identidade universal, de uma identidade não-problemática que foi vendida a milhares de expectadores, influenciando suas visões de mundo, levando-os a consumir e reproduzir o discurso dominante e dominador. Os personagens de Almodóvar agora passam também, a influenciar visões de mundo e formar opiniões.

Após esta experiência eu estava diante de alunos mais críticos, que reconheciam as possibilidades que o cinema lhes oferecia diante da necessidade de se trabalhar com temas relacionados a cultura. Mais que isso eu estava diante de alunos que reconheciam que as culturas minorizadas precisavam ser trabalhadas e que novas visões de mundo em resposta a estas novas diferenças precisavam ser formadas e que em toda a cultura, existem culturas que precisam ser ouvidas.

Esta experiência foi marcante em minha carreira. Estava comprovada a eficácia do cinema na formação dos professores de E/LE. Esta atividade foi proposta a outros grupos e as respostas sempre foram surpreendentes. Se a academia durante tanto tempo se preocupou em formar leitores críticos, é preciso agora atentar para a necessidade de formar leitores críticos do mundo. As identidades tratadas nos filmes de Almodóvar também serão encontradas nas salas de aula. Nem todos são homens, heterossexuais, brancos, de classe média, cristãos. Estes profissionais experimentaram um contato mais profundo com identidades que fogem a este padrão universal.

Com esta atividade não perdemos de vista as três razões pelas quais, segundo Moita Lopes (1996) se aprende uma língua estrangeira: 1. para ter acesso a uma gama maior de informações, 2. entender como os outros vivem em outras partes do mundo, alargando nossos horizontes e 3. para desenvolver uma compreensão crítica das desigualdades sociais em todos os níveis, pelo contrário, permitimos que as três fossem significantemente alcançadas.

Através deste relato acreditamos abrir, sem fechar, uma discussão acerca da utilização do cinema na formação de professores de língua estrangeira e de educadores críticos e atentos para a construção de uma cultura da paz, onde o respeito e a tolerância se façam presentes.

 

Referencias

 

FERREZ, Joan. Vídeo e Educação. Trad. Juan Acuña Llorens. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

 

GOROVITZ, Sabine. Os labirintos da tradução. A legendagem cinematográfica e a construção do imaginário. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2006. p. 01-45

 

KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Estudos Culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: EDUSC, 2001. p.9-74.

 

MOITA LOPES, L.P. Oficina de lingüística aplicada: A natureza social e educacional dos processos de ensino/aprendizagem de línguas. Campinas: Mercado de Letras, 1996, p.37-62.

 

MORIN, Edgar. Educação e complexidade: Os sete saberes e outros ensaios. 4. ed. São Paulo: Crtez Editora, 2007.

 

____________. Os sete saberes necessários à Educação do Futuro. Trad. de Catarina Eleonora F. da suilva e Jenne Sawaya. 12 ed. São Paulo: Cortez Editora, 2007.

 

MOTA, K.M.S. Incluído as diferenças resgatando o coletivo – novas perspectivas multiculturais no ensino de línguas estrangeiras. In: MOTA, K. e SHEYERI, D. Recortes Interculturais na sala de aula de Línguas Estrangeiras. Salvador: EDUFBA, 2004, p. 35-60.

 

ORIENTAÇÕES CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO MÉDIO. LINGUAGENS, CÓDIGOS E SUAS TECNOLOGIAS. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/index.php?option=content&task=view&id=680&Itemid=704. Acesso em 01/07/06.

 

PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS. Terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: Língua Estrangeira. Secretaria de Educação Fundamental: Brasília: MEC/SEF, 1998.

 

SANTOS, Edleise Mendes Oliveira. Abordagem comunicativa intercultural (ACIN). Uma proposta para ensinar e aprender língua no diálogo de culturas.  2004.  Tese (doutorado em Lingüística aplicada) – Centro de Ciências humanas, Universidade de Campinas, (2004).