“A biodança é um sistema de integração humana, de renovação orgânica, dereeducação afetiva e de reaprendizagem das funções originais da vida. A sua metodologia consiste em induzir vivências integradoras por meio da música, do canto, do movimento e de situações de encontro em grupo”. (TORO, 2002). A definição de seu criador mostra como a complexidade e pujança da biodança está em elementos simples. Vejamos cinco dessas categorias (de difícil acesso em nossa civilização): instinto, movimento, contato, grupo, silêncio. Associando-as à definição do criador da biodança, importante destacar que as quatro características com as quais Toro define a biodança se ligam as cinco categorias aqui desenvolvidas de várias formas distintas, nesse texto serão exploradas apenas algumas possibilidades.

Ao falar de integração Rolando Toro fala da unidade psicofísica que o estilo de vida civilizado compartimentou. No modelo mecanicista do homem máquina, o instinto é substituído quase que exclusivamente por linguagem e pensamento. Para Toro, os instintos não são apenas vestígios de nossos antepassados, mas artefatos de nossa espécie que podemos lançar mão para nos reatualizarmos aqui e agora. O instinto por ser mais imediato faz com que nossas ações sejam “inteiras” no sentido de não passarem pelo crivo da consciência, não que esta seja ruim, mas sua hipertrofia em detrimento do instinto pode causar sérias seqüelas.

A cultura faz com que a natureza humana fique relegada ao ponto de praticamente inexistir. Toro cita Arthur Jores para destacar que de 2000 doenças catalogadas por esse médico psicossomático 1500 são decorrentes do estilo de vida civilizado, “doenças da civilização”. Toro propõe a Biodança como uma forma de amenizar este tributo. Ao vivenciar seus instintos o homem ficaria livre de muitas dessas enfermidades ao poder exercer plenamente seus potenciais genéticos atrofiados pela cultura. A biodança oferece a oportunidade da integração consigo, para que as pessoas não sejam seres dissociados de si mesmos, fragmentados, mas se sintam uma totalidade congruente que inclui consciência, linguagem, pensamento, vários outros processos psicológicos e também instinto.

Uma segunda dimensão integrativa é a realizada com a própria espécie, a integração biológica de se saber parte de uma tribo, de um grupo, da espéciehomo sapiens sapiens, nossa espécie. Embora essa constatação seja óbvia, Alain Finkielkraut destaca que nós somos os únicos animais que instintivamente não reconhecemos nossos semelhantes, de tal modo que a constatação que fazemos parte de uma mesma espécie é para Finkielkraut uma construção histórica frequentemente ameaçada como mostraram os transtornos do século XX. A biodança é, portanto, um convite a nos percebermos, nos respeitarmos e nos tratarmos como membros de uma mesma espécie, ou seja, como seres que temos, todos, semelhanças inatas.

A forma mais global de integração é aquela que cada um de nós pode realizar com o cosmos. Carl Sagan em sua série “Cosmos” dizia que nossos átomos são feitos do mesmo material das estrelas (basicamente carbono, oxigênio e nitrogênio) e Bill Bryson em sua “uma breve história de quase tudo”, defendeu que temos todos ao menos alguns milhares de átomos que também já foram de várias pessoas ao longo da história, pois, estatisticamente somos frutos de uma dança cósmica desde o começo dos tempos na qual os átomos estão constantemente se reagrupando.

Ao contrário de Finkielkraut Toro parece acreditar que essa possibilidade de se reconhecer como membro de uma espécie ou mesmo como ser cósmico, mais do que uma possibilidade é também um instinto. Mesmo que isso seja um exagero biologizante de Toro, isso não desmerece essa primeira característica da biodança, a de estimular a integração no plano simbólico (ontogenético ou mesmo sociogenético), se Toro estiver correto ainda haveria na biodança uma integração no plano filogenético. Seja como for a biodança desenvolve o sentimento de integração juntamente com emoções ligadas ao toque, à emoção, ao encontro, ao sentir-se vivo.

A renovação orgânica é um processo constante e inevitável. O próprio cosmos está em renovação, Heráclito de Éfeso já destacara como tudo é devir de tal modo que não “se entra duas vezes no mesmo rio”. Nós temos cerca de 50 trilhões de células que se renovam em média a cada sete anos como aponta a teoria dos setênios. Mais de noventa por cento dos átomos que compõem nossas células são renovados anualmente através de nossa respiração ou alimentação. Algumas células como as do intestino e do estômago se renovam a cada cinco dias.

A biodança é uma forma de interferir intencionalmente (ainda que frequentemente de forma inconsciente) nesse processo. A renovação orgânica é potencializada na biodança em grande parte por meio do movimento e do contato. O movimento intencional é uma das principais características que compartilhamos com os outros animais. Ao contrário de plantas, fungos, vírus, bactérias e protozoários nós nos desenvolvemos a medida que nos movimentamos intencionalmente para atingir nossas necessidades (o que compartilhamos com todos os animais) e nossos desejos (especificidade humana).

Contudo, em nossa sociedade o sedentarismo se tornou um problema de saúde coletiva associado às várias comorbidades, o Sistema Único de Saúde — SUS tem atualmente como um de seus maiores desafios realizar a transição de um modelo de saúde com foco em doenças crônicas e agudas (que prevaleceram no século XX) para um modelo de atendimento que enfoque as doenças crônicas, já que no século XXI essas passaram a ter uma incidência epidemiológica preponderante, para todas as condições crônicas o sedentarismo constitui fator de risco. À medida que nos movemos na biodança não encontramos apenas um antídoto para o sedentarismo, também exploramos nossos potenciais genéticos que fizeram com que nos movêssemos por todo o planeta nos últimos setenta mil anos.

Outro elemento importante são as carícias, o toque o contato. Nossa pele, que é o maior órgão do corpo possui a mesma origem embrionária do sistema nervoso central, tem infinitas possibilidades de sensitividade, podendo mesmo ser utilizada como canal para múltiplas formas de linguagem tão ou mais complexas do que uma língua estruturada como a portuguesa ou a alemã. Ainda assim, desperdiçamos esse manancial de sensações nos restringindo a vivências empobrecidas que vão de resmungos ou quando muito pálidos apertos de mão invés de abraços calorosos, ou quando trocamos as polifonias de um sexo tântrico por um sexo monocordicamente genitalizado, ou ainda quando deixamos de tocar a nós próprios, e mesmo no banho nossos dedos tocam menos nossos corpos do que o sabonete. Por meio do toque e da carícia a biodança estimula a renovação celular em áreas e de modos pouco usuais.

Uma quarta categoria a se destacar é o grupo. Aristóteles já nos definia como animais políticos. Ao longo da história sempre nos organizamos em grupos, coletivos, aglutinações. Com a consolidação das cidades após a revolução agrícola passamos a viver ironicamente em contingentes maiores, que, contudo não estabelecem vínculos necessariamente mais duradouros ou intensos. A biodança vai de encontro a essa tendência e propõe a formação de um campo relacional de alta freqüência. Mesmo fazendo parte de muitos agrupamentos familiares, profissionais, acadêmicos, nacionais é possível que um sujeito não desenvolva sentimento de pertença, vinculação, reconhecimento etc. A biodança forma grupos que desenvolvem precisamente esses sentimentos. Assim, em meio aos muros, concretos e arames farpados a biodança constrói salões de compartilhamento, oásis de vivências por meio do qual se efetua uma reeducação afetiva.

Outro elemento que se pode relacionar às características apresentadas por Rolando Toro é o silêncio. Nas atuais “sociedades da informação” a proliferação é a palavra de ordem, Derridá analisou como nossa civilização se desenvolveu a partir do paradigma logocêntrico, onde a palavra adquire uma importância central. O silêncio equivale na atualidade a não existir, daí a importância que a publicidade e o marketing assumiram em nosso tempo. A prática do silêncio na contemporaneidade é uma postura eminentemente subversiva que pode contribuir sobremaneira com a reaprendizagemfunções originais da vida. Na medida em que temos a oportunidade de ver, escutar, sentir, vivencia a “comovente sensação de sentir-se vivo”. Essa quarta característica foi a menos explorada por Toro, e é intimamente ligada à categoria do instinto, é possível, contudo pensá-la como uma das mais importantes características da biodança, tamanha sua sacralidade que Rolando Toro parece ter optado por estimular mais sua vivência invés de teorizá-la.


Originally published at lifecoaching984.wordpress.com on February 22, 2017.