A CURATELA E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA:

 A Esterilização do Curatelado[1]

Daniel Lima Cardoso

Mariana Pereira Nina[2]

Anna Valéria de Miranda Araújo Cabral Marques[3]

 

RESUMO

O presente trabalho almeja fazer uma análise a respeito da discussão existente na relação do curatelado com a possibilidade de esterilização, opção cogitada pelo curador em alguns casos, dependendo da deficiência do curatelado em questão.  Para essa análise, traremos os aspectos legais da esterilização, invocando os princípios envoltos no caso em debate, juntamente com o direito de personalidade do indivíduo portador de deficiência, de modo que seja abordado o principal princípio que envolve - ou deveria envolver - as condutas do curador e a suposta necessidade de esterilização: a dignidade da pessoa humana.

 

Palavras-Chave: Curatela. Dignidade Humana. Esterilização. Curatelado

1 INTRODUÇÃO

A dignidade da pessoa humana, sendo um dos pilares do estado democrático de Direito, está protegida pela nossa Lei Maior, em seu art. 1º, III, sendo um dos fundamentos e princípio de nosso país e servindo de embasamento para toda e qualquer pauta em análise no âmbito jurídico. Não existiria diferença no caso da curatela.

A curatela é um instituto designado a um indivíduo, para que este possa administrar os bens de alguém que não possui a capacidade para tal. Possui caráter assistencial sendo regida pelas mesmas disposições que a tutela, com algumas modificações, estando dispostas as suas características e condições no Código Civil em seus artigos 1.767 à 1.783.

A esterilização do curatelado, tema que se encontra no centro do presente trabalho, é considerada uma decisão polêmica, motivo de divergências principalmente por quem não possui o conhecimento a respeito dos direitos positivados em lei que envolve os deficientes que, por intermédio do ordenamento jurídico, devem ser tratados com igualdade perante as suas garantias de cidadão.

Desta feita, haja vista que o princípio da dignidade da pessoa humana é de relevância suficientemente clara para o Direito de Família, abordaremos a necessidade de sua observância no momento em que se decide optar por uma esterilização do indivíduo que sequer é capaz de tomar essa decisão de cunho pessoal.

2      DA CURATELA

Preconiza a cabeça do artigo 1.767 que estão sujeitos a curatela todos aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não detiverem o discernimento necessário para atos da vida civil; ou ainda, aqueles que por causa duradoura não puderem exprimir sua vontade.

Antes de definir o que significa tal instituto para o Código Civil, talvez seja mais prudente buscar definir qual o conceito, mais aproximado, de “deficiência mental” para o Código Civil de 2002.

Primeiramente, importante esclarecer que o fato de a pessoa ser “deficiente mental” não implica que esta não pode gerir sua vida social, assim esta pode ser totalmente incapaz, ou parcialmente, tal auferição somente poderá ser feita via processo de interdição.

"A curatela é o instituto utilizado para a supressão da capacidade de fato daquele que tem problemas psíquicos - tema deste estudo -, físicos, além de ser vertida, também, para o nascituro. Ela é instituída através de processo judicial de interdição, que apura o grau do comprometimento da doença, para então determinar a curatela total ou parcial do interditando."[4]

A partir deste ponto, vislumbrar-se-ão dois tipos distintos de incapacidade: relativa e total.

"capacidade de fato da pessoa natural pode ser restringida, total ou parcialmente, por variadas circunstâncias atreladas à idade e à doença, conforme já mencionado. A incapacidade de agir é mensurada em graus, razão pela qual a presença de tais fatores pode gerar a incapacidade total ou absoluta - que impede totalmente a prática de atos da vida civil -, ou a incapacidade parcial ou relativa - que demanda a assistência de um terceiro para acompanhar o relativamente incapaz na prática da maioria dos atos jurídicos." [5] 

O que se procura esclarecer aqui é que, para o Código Civil não importa qual a deficiência que a pessoa porta, mas sim, qual a sua capacidade de discernimento; no entanto, quando se menciona o instituto da curatela, esta característica não é tão determinante vez que a função da curatela não é cuidar do débil, mas sim, administrar seus interesses.

"A curatela igualmente é instituto de direito assistencial, para a defesa dos interesses de maiores incapazes. Assim como ocorre com a tutela há um múnus público, atribuído pela lei.

(...)

A curatela não se confunde com a representação e com a assistência por ser instituto geral de administração de interesses."[6]

Assim: “A estrutura do instituto demonstra que a curatela tem como escopo a proteção do incapaz no tráfego jurídico, através do estabelecimento da representação ou da assistência pelo curador, dependendo do comprometimento da doença na psique do indivíduo” (TEIXEIRA, 2009).

Portanto, tendo definido quem é considerado incapaz e quem estará sob o julgo do curador, passamos, no próximo capítulo, a tratar da esterilização do curatelado.

3      DA ESTERILIZAÇÃO DO CURATELADO

De acordo com o Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, Michaelis, esterilizar significa:

Sf (esterilizar+cão) 1.ato ou efeito de esterilizar; (...) 5.operação pela qual se faz estéril uma pessoa por ligamento ou seção da trompa uterina ou do conduto deferente, conservando-se porém as glândulas genitais.

Trata-se de uma questão bastante frágil e discussão interminável sobre se o curador pode, em atenção a sua tarefa de administrador dos bens do curatelado, requerer que este passe pelo procedimento de esterilização. Correntes há que defendem o direito do deficiente em relação a sua sexualidade, defendem assim, a dignidade da pessoa humana, alegando, em apertada síntese, que:

“(...) como é sabido, são vários os males mentais e ultra diversificados os seus graus. Isso significa que inúmeras pessoas que padecem de deficiência ou doença mental conservam a possibilidade de decisão sobre constituir família, procriar, exercitar como lhe aprouver a afetividade.”[7]

Em entendimento contrário, há aqueles que não veem na esterilização uma lesão a dignidade humana, mas tão somente, não é possível vislumbrar que uma pessoa portadora de deficiência consiga cuidar de uma criança, quando esta é a primeira quem necessita de cuidados. Aqui, não se leva em consideração tão-somente a capacidade física de procriar, mas, principalmente, a capacidade de gerir outra vida.

"Não enxergo no pedido violação a qualquer dos direitos individuais. Fácil e cômodo é deixarmos ao curador, ou ao estabelecimento onde se encontra internada a interdita, a tarefa de impedir que mantenha contatos sexuais. Não consigo deixar de ver nessa postura um certo ranço preconceituoso de limitar o exercício da liberdade sexual, como única forma impeditiva da gravidez. Impedir a gestação de alguém que só tem a capacidade reprodutora física e não tem condições de manter um filho sob sua guarda não configura a tentativa de purificação da raça referida pelo relator".(ApCv. 59.621.015-3. Des.Rel. Eliseu Gomes)

A esterilização tem como objetivo tornar infértil. É o caminho utilizado por pessoas que desejam finalizar a sua capacidade de reprodução, podendo ser feito por meio de cirurgia ou não. Quando se ouviu falar a respeito de tal conduta pela primeira vez no nosso país, foi considerado durante muito tempo um meio de mutilação física[8], mas depois foi posto sob a luz da liberdade de escolha na Constituição Federal de 1988:

"É certo que a promulgação da Constituição Federal de 1988 abriu caminho para a legalização da esterilização em nosso país. Com efeito, ao considerar a família como base da sociedade, o Estado garantiu a liberdade de seus integrantes, consagrando os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. Nesse contexto, o planejamento familiar tornou-se livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito (§ 7º do art. 226). 

Ocorre que a regulamentação de referido dispositivo legal somente se deu em 1996, com a aprovação da Lei n. 9.263, que foi fruto de amplo debate entre o Congresso Nacional e movimentos feministas.

Nos termos de referida lei, o planejamento familiar deve ser entendido como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal."[9]

A respeito do procedimento e da intenção que existe na esterilização, citamos quatro tipos desta: eugênica, cosmetológica, terapêutica e de limitação de natalidade[10]. A eugênica se caracteriza pela vontade de impedir a continuação de doenças hereditárias, a cosmetológica não é considerada legal, por ter o intuito de apenas impedir a gravidez, sem que haja qualquer outro motivo. Já a esterilização terapêutica é aquela que decorre de um estado de necessidade e a de limitação de natalidade busca impedir o nascimento de crianças por problemas econômicos-sociais. A compreensão desta classificação torna-se importante para a análise do capítulo seguinte, que procura analisar as intenções e a viabilidade da esterilização.

Nesta senda, fica bastante óbvio que o curador que procura o caminho da esterilização do deficiente, também procura um caminho de “menores preocupações”, vez que, estando estéril não pode mais o curatelado ter ou prover filhos; logo, o seu patrimônio – de responsabilidade do curador – não será alterado por eventuais questões como herança ou pensões alimentícias.

4          DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA X ESTERILIZAÇÃO DO CURATELADO

Antes de se adentrar na discussão que envolve os temas em questão, faz-se necessária a leitura da perfeita explanação de Maria Helena Diniz:

"A bioética e o biodireito andam necessariamente juntos com os direitos humanos, não podendo, por isso, obstinar-se em não ver as tentativas da biologia molecular ou da biotecnociência de manterem injustiças contra a pessoa humana sob a máscara modernizante de que buscam o progresso científico em prol da humanidade. Se em algum lugar houver qualquer ato que não assegure a dignidade humana, ele deverá ser repudiado por contrariar as exigências ético-jurídicas dos direitos humanos. Assim sendo, intervenções científicas sobre a pessoa humana que possam atingir sua vida e a integridade físico-mental deverão subordinar-se a preceitos éticos e não poderão contrariar os direitos humanos".[11]

Portanto, encontramos transparente a veracidade de que qualquer ato que afronta os direitos humanos deve ser severamente repudiado. O princípio da dignidade da pessoa humana se encontra sob a égide do Direito de Família, e no que tange a respeito da sua abrangência e do pensamento que é implantado por este princípio:

"Na medida em que a ordem constitucional elevou a dignidade da pessoa humana a fundamento da ordem jurídica, houve uma opção expressa pela pessoa, ligando todos os institutos a realização de sua personalidade. Tal fenômeno provocou a despatrimonialização e a personalização dos institutos, de modo a colocar a pessoa humana no centro protetor do direito".[12]

Neste sentido, encontramos a caracterização da personalidade - individual - no que tange a proteção por parte dos direitos, encontrando-se no topo da pirâmide metafórica de violações graves, a dignidade da pessoa humana. Nas palavras de SARLET: “temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano, (...) além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.” (Grifo nosso)

Portanto, como reagir em casos em que a pessoa não possui total capacidade de dissernimento? Quando não é ela quem se encontra posicionada para tomar decisões a respeito de sua própria existência? Quando possui um curador?

Ora, está palpável a qualquer indivíduo que possua um tato no que tange ao direito de personalidade e visível para quem possui diante dos olhos a severidade que se dá a esterilização, a imprudência existente ao se cogitar tal método radical, ao invés da busca por outros caminhos, que talvez por desconhecimento, não são levados em consideração.

A curatela possui como principal objetivo, a administração de bens do curatelado, estando disposto no Código Civil, as expressões “bens” e “negócios”. É passível o nosso entendimento de que a opção de se esterilizar o deficiente, seja levantada por aqueles que possuem curatelados com incapacidade total, como tratado seu conceito no primeiro capítulo deste artigo, sendo esta nossa suposição para se optar por uma solução extrema.

"Deve o Poder Público, ao nosso ver, fazer cumprir urgentemente com a previsão legal de atenção ao direito ao planejamento familiar para as pessoas portadoras de deficiência já estabelecido na Lei n° 7.853/89, trazendo em seu bojo os princípios estabelecidos na Lei n° 9.263/96: informação, orientação e acompanhamento na utilização de métodos contraceptivos que devem por óbvio estar adaptados às necessidades especiais das pessoas portadoras de deficiência. Urge, portanto, a criação de programa de planejamento familiar para pessoas com necessidades especiais, mormente para os portadores de deficiência mental. Acaso seja a esterilização indicada, entendemos deva ser a última instância de um processo técnico científico desenvolvido e não como" atalho" para enfrentamento da sexualidade e reprodução de portador de deficiência. Lembra-se, por oportuno, que o direito de constituir família deve sempre que possível ser preservando qualquer que seja a deficiência".[13]

 Acreditamos na possibilidade da esterilização em casos extremos, pois não devemos ter olhos fechados para casos em que realmente se faz necessária essa medida, seja quando a deficiência traga uma incapacidade que faça com que terceiros se aproveitem da saúde da pessoa, ou quando não existir qualquer condição ou outra saída. Assim sendo, realçamos a existência de outros métodos contraceptivos e acompanhamentos de planejamento familiar, que dependem apenas da boa vontade do curador de obter informações a respeito.

A maior dúvida no que tange a permissão dessa decisão é de que esta nos remeta a um momento em que a esterilização seja a alternativa buscada em massa, acabando por se tornar o caminho mais fácil, sobrepondo-se ao direito de personalidade, de filiação e liberdade de escolha – no caso dos deficientes relativamente incapazes – pois acreditamos na necessidade clara de observância desses direitos individuais e fundamentais, que não se encontram passíveis de serem decididos por nenhuma outra pessoa além da única que possui poder sobre eles, a própria pessoa.

5 CONCLUSÃO

 Por existirem outros meios contraceptivos, a esterilização mostra-se como ultima ratio no processo de planejamento familiar. Além de ferir, frontalmente, todos os avanços científicos e sociais garantidos constitucionalmente, fere o princípio da dignidade da pessoa humana.

Assim, entende-se que a esterilização deveria ser utilizada em casos tais que realmente fique comprovada, pela Justiça, a sua extrema e única viabilidade. Nesta visão, não caberá ao curador a decisão acerca da esterilização ou não do débil, mas sim a Justiça; deixando para que a mesma decida em quais casos esta medida poderá ser tomada.

Ressalta-se que restringe-se essa possibilidade porque, se esta decisão ficar a critério unicamente do curador, poderemos vivenciar uma propagação em massa da adoção desta medida, vindo a calhar uma banalização deste método que, definitivamente, deve ser sempre visto como última hipótese pois afronta diretamente as garantias intrínsecas e fundamentais do ser humano.

REFERENCIAS

 

BEVERVANÇO, Rosana Beraldi. Esterilização da pessoa portadora de deficiência. Disponível em: http://www.ppd.caop.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=386. Acesso em: 04/11/2011

DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 19 e 20.

DIAS, Berenice. Manual de Direito das Famílias – Princípios do Direito de Família. 5ª edição revista, atualizada e ampliada. 2ª tiragem. São Paulo Revista dos Tribunais, 2009. p.61

HENTZ, André Soares. Esterilização Humana: Aspectos Legais, Éticos e Religiosos. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/6544/esterilizacao-humana/. Publicado em: 09/2004

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume único. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Deficiência Psíquica e Curatela: Reflexões Sob o Viés da Autonomia Privada. Revista Magister de Direito das Famílias e Sucessões nº7, Dez/Jan de 2009

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação cível n. 59.621.015-3, 7ª Câmara Cível, Desembargador Relator Eliseu Gomes Torres, j. 6/8/1997.

 



[1] Trabalho apresentado à disciplina de Direito de Família da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco

[2] Alunos do 6º período noturno do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco

[3] Orientadora Mestre

[4] TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Deficiência Psíquica e Curatela: Reflexões Sob o Viés da Autonomia Privada. Revista Magister de Direito das Famílias e Sucessões nº7, Dez/Jan de 2009

[5] Id Ibidem

[6] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume único. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011, p.1177

[7] BEVERVANÇO, Rosana Beraldi. Esterilização da pessoa portadora de deficiência. Disponível em: http://www.ppd.caop.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=386.

[8] HENTZ, André Soares. Esterilização Humana: Aspectos Legais, Éticos e Religiosos. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/6544/esterilizacao-humana/. Publicado em: 09/2004

[9] Id Ibidem

[10] CHAVES, Antônio APUD HENTZ, André Soares. Esterilização Humana: Aspectos Legais, Éticos e Religiosos. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/6544/esterilizacao-humana/. Publicado em: 09/2004

[11] DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 19 e 20.

[12] DIAS, Berenice. Manual de Direito das Famílias – Princípios do Direito de Família. 5ª edição revista, atualizada e ampliada. 2ª tiragem. São Paulo Revista dos Tribunais, 2009. p.61

[13] BEVERVANÇO, Rosana Beraldi. Esterilização da pessoa portadora de deficiência. Disponível em: http://www.ppd.caop.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=386.